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Está
tudo na voz
Deixo a política por alguns dias e me preparo para assistir
Roberto Carlos em Recife. Depois de um ano afastado da vida artística
pela morte da mulher, Maria Rita Simões, RC retoma a carreira
com um show no Geraldão, ginásio de esportes da capital
pernambucana, no sábado, 11 de novembro.
Como voltará Roberto? Trará de volta a voz solta e natural,
como se podia ouvir em "Por isso corro demais", de 1967?
Confira você mesmo, na Usina
do Som, como é boa aquela interpretação,
passados tantos anos.
Em mais de três décadas, Roberto nunca havia interrompido
o trabalho duro. As composições dos últimos anos
não são inspiradas, embora o método de criação
pareça ainda ser o mesmo. Ele e Erasmo montam uma espécie
de filme na cabeça. Em uma entrevista que está no site
planetarei,
Erasmo conta como é.
Mas desde a Jovem Guarda Roberto é perfeccionista e continua.
Cuida pessoalmente de cada detalhe do CD anual e da turnê que
o acompanha. Se Roberto tem manias, a principal é ser obcecado
pela própria carreira. E ele não hesita em pagar o preço
- na forma de transpiração.
Creio que a obsessão pela qualidade é uma das coisas
que ele compartilha com João Gilberto. Outra é o nome
composto, com direito a eco interno: João Gilberto/Roberto
Carlos. Fico a me perguntar, até que ponto a semelhança
não é proposital.
Sabe-se que Roberto começou a carreira, por volta de 1960,
imitando João Gilberto. Consta que até hoje ele nutre
enorme admiração pelo criador da bossa-nova. Quem sabe
o jornalista Mario
Sergio Conti, que fez excelente reportagem com JG para a Folha,
pudesse nos esclarecer se a admiração é mútua.
Aposto que sim.
Ouvi dizer que na intimidade, Roberto até hoje imita João
Gilberto - e parece que a imitação é maravilhosa,
além de divertida. Ao final, ele sempre acrescenta que João
é inimitável.
Entendo quase nada de música. Mesmo assim arrisco afirmar que
os dois, mais Caetano Velloso, são os grandes intérpretes
masculinos da MPB pós-ópera. Quer dizer, quando os cantores,
na década de 50, deixaram de impostar a voz.
O poeta e ensaísta Augusto de Campos matou a charada: "Apesar
do iê-iê-iê ser música rítmica e animada,
e ainda que os recursos vocais, principalmente de Erasmo, sejam muito
restritos, estão os dois Carlos, como padrão de uso
da voz, mais próximos da intepretação de João
Gilberto do que de Elis e muitos outros cantores de música
nacional moderna, por mais que isso possa parecer paradoxal".
O trecho acima pertence a um ensaio chamado justamente "Da Jovem
Guarda a João Gilberto", que foi importante para a minha
geração. Apareceu primeiro no Correio da Manhã,
em 1966, e foi republicado no livro O
Balanço da Bossa.
Nós o lemos na década de 70. Ele explicou porque sentíamos
Roberto como parte da linha evolutiva da música popular, apesar
de já caminhar, então, para o bolero, deixando o rock
para trás.
Se está tudo na voz, no jeito de cantar, então não
importa qual o gênero das canções. Rock, balada,
samba, fox, valsa e até bolero - estilo de que até hoje
não consigo gostar, e que me distancia do RC atual --, no fundo
não importa. Interessa a interpretação. Como
acontece com João Gilberto.
Outra coisa em comum: Roberto e João fazem questão de
cantar canções cuja letra sejam claras e simples.
Muita gente, com razão, reclama dos arranjos de Roberto Carlos,
hoje assinados pelo maestro Eduardo Lages, que dirige o RC-9 há
décadas. Diz-se que o arranjo estraga as canções.
Pode ser.
Penso que eles tem quase só a função de servir
como um suave pano de fundo flutuante para a voz de Roberto. "A
voz", como se costumava chamar Frank Sinatra, com quem RC parece-se,
a meu ver, cada vez mais. O importante é a voz. O jeito de
cantar.
Vou a Recife na esperança de reencontrar o encanto vocal de
Roberto Carlos. Achei estranho o seu modo de entoar no último
CD, de 1998, nas canções que foram gravadas ao vivo
(nas de estúdio, não). Ele parecia amarrado em público.
Sei que para chegar às pérolas de RC precisarei abstrair,
assim como os arranjos, os temas religiosos. Mas me dizem que eles
agora estarão amenizados.
Tenho pena de que a dupla Roberto e Erasmo não demonstre a
mesma capacidade de produzir canções que, embora banais
como todo o pop, produziam pequenas centelhas de significado superficial
e cotidiano. Quem sabe "Amor sem limite", o nome da nova
canção e do show tragam um Roberto Carlos renovado,
apesar da tristeza pela qual passou.
Na semana que vem conto a vocês.
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