Pensata

Vinicius Mota

30/04/2006

Opus Dei, o lado de dentro

O Opus Dei, movimento católico fundado no final da década de 1920 pelo padre espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975), tornou-se um frenesi. Dan Brown concentrou todas as caricaturas detratoras da entidade em "O Código Da Vinci" e no personagem Silas, o matador albino que se regozija da dor auto-infligida antes de sair a assassinar em nome de Deus. O espalhafato promete ganhar um novo round com a estréia, marcada para o próximo dia 19 no Brasil, da versão hollywoodiana do livro _com Tom Hanks no papel principal e, interpretando Silas, o britânico Paul Bettany, o intelectual de província branquelo e mala-sem-alça justiçado, para o deleite de todos nós, por Nicole Kidman no final de "Dogville".

Mas a polêmica não se restringe ao campo da ficção pop. Na sucessão de João Paulo 2º, comentaristas do mundo todo alimentaram o mito dos avassaladores poderes secretos do Opus Dei, e a escolha-relâmpago de Joseph Ratzinger decerto os encheu de orgulho, ao emprestar verossimilhança à hiperbólica narrativa.

Até sobre a sucessão presidencial brasileira a brisa de mistério e conspiração que envolve a prelazia veio soprar. Boatos e reportagens tangenciam a vinculação entre o tucano Geraldo Alckmin e o grupo religioso. (Acredito em Alckmin quando nega pertencer à entidade, laço que, se existisse mesmo, já se teria tornado público. Não é preciso esforço jornalístico para saber que o ex-governador é um católico conservador, mas apenas o fato de declarar-se favorável a políticas públicas de controle da natalidade o coloca em relação tensa com o tipo ideal do integrante da Obra.)

Quem quiser fugir da mitologia em torno do Opus Dei, que já atinge o status daqueles dispositivos culturais mais eficazes que censura para barrar o acesso à informação, tem basicamente dois caminhos. O primeiro é consultar o grande acervo de literatura e bancos de dados formado ao longo de décadas por dissidentes do grupo de Escrivá. São pessoas que em geral vivenciaram o cotidiano mais íntimo da prelazia durante anos e, depois de terem com ela rompido, relataram as agruras por que passaram. Um dos relatos mais conhecidos é "Tras el Umbral" (1992), da espanhola Maria del Carmen Tapia, que por 18 anos serviu à Obra e atuou no círculo próximo do fundador da entidade. Na internet, o serviço Opus Dei Awareness Network (Odan) foi criado pela dissidente americana Tammy DiNichola e por sua mãe para reunir e intercambiar informações críticas sobre as atividades da prelazia pelo mundo.

No Brasil, onde a Obra aportou em 1957, há meses foi lançado "Opus Dei - Os Bastidores" (Verus Editora), dos ex-integrantes Jean Lauand (35 anos de Opus Dei), Dario Fortes e Marcio Fernandes da Silva; também estão frescos "Memórias Sexuais no Opus Dei", de Antonio Carlos Brolezzi, e "Opus Dei - A Falsa Obra de Deus" de Elizabeth Silberstein (mãe de um integrante do grupo). O site Opuslivre é local de encontro dos críticos brasileiros da prelazia na rede mundial de computadores.

A amostra que li desses relatos me basta para descartar o Opus Dei como opção de vida, recomendar a amigos que façam o mesmo e sugerir aos jovens pretendentes ao ingresso na entidade que leiam ao menos parte dessas narrativas antes de dar o passo definitivo. Mas o leitor está convidado a formar o seu próprio juízo e, para tanto, deveria consultar também os serviços de comunicação oficial da Obra, aos quais o portal no Brasil dá acesso e cujo grau de informação ao alcance do público já serve para relativizar a imagem de organização sobretudo secreta que a prelazia ostenta.

O que esse conjunto de testemunhos sobre o cotidiano duríssimo nos centros do Opus Dei faz com mais força é configurar o cenário torturante em que estão imersos os numerários. Numerários, na economia da entidade, são aqueles que deixam as suas famílias e vão viver em residências da prelazia. Fazem voto de castidade, utilizam o silício agarrado à coxa por ao menos duas horas diárias (exceto nos domingos, em dias santos e em períodos específicos), autoflagelam-se com a disciplina enquanto pronunciam uma prece curta. Obedecendo a uma estrita separação física entre os sexos, numerárias costumam dormir sobre tábuas colocadas nos colchões; os homens, com uma certa freqüência, passam a noite deitados diretamente no chão duro; e todos permanecem calados do momento em que procedem ao exame de consciência de cada noite até a missa matinal do dia seguinte. Muitos numerários são profissionais que trabalham fora dos centros da Obra e, nesse caso, comprometem-se a doar ao grupo religioso toda a fatia do seu salário que não seja consumida em despesas pessoais.
Os indivíduos que se submetem a essa rotina (cuja dureza apenas foi esboçada no parágrafo acima) decerto desenvolvem traços psíquicos peculiares os quais deixo aos profissionais da área descrever e que a Obra atribui às manifestações mais puras da fé cristã. Tal carga de repressão por vezes explode aqui e ali, dando vazão a uma dissidência particularmente ácida.

A descrição do cotidiano de algumas ordens religiosas tradicionais da Igreja Católica certamente não deixaria nada a dever ao Opus Dei. Não é apenas nem fundamentalmente para atender à demanda dos numerários que as dóceis freiras do convento das carmelitas descalças de Santa Teresa, em Livorno (Itália), fabricam, entre outros artefatos do gênero, a cruz de cravos para o peito (vendida a US$ 7,50, em valores de 1997) e o cilício de três cintas com cravos de ferro para o tronco (US$ 15) _a preferência dos membros da Obra recai sobre o cilício de uma cinta para a perna (US$ 5).

A comoção especial em relação ao Opus Dei talvez venha do fato de os numerários serem leigos aos olhos da igreja. Ao optar pela vida regrada dos centros da Obra, o jovem não parte para abraçar a batina, como ocorre em uma ordem religiosa, nem a jovem se tornará freira. Essa inserção heterodoxa da prelazia é estranha aos olhos da tradição milenar católica e atrai a artilharia não só de mães e pais de jovens atraídos para suas fileiras mas também de outros setores da própria igreja, notadamente os jesuítas. Uma das mais dolorosas ofensas à Obra (que em parte ganha sentido pela rotina espartana a que são submetidos os numerários) é tachá-la de "seita", colocando-a em choque com a essência da igreja.

Os numerários, porém, são minoria no Opus Dei; constituem 20% dos 85 mil integrantes da prelazia em todo o planeta. Se sua atuação é fundamental para a manutenção até mesmo administrativa da organização, essa parte não pode ser tomada, sem mais, pelo todo, como a concentração e o apelo das críticas sobre o dia-a-dia desses abnegados servidores da prelazia muitas vezes leva a crer.

Setenta por cento dos membros são pessoas que levam uma vida comum, conhecidas como supernumerários. Para eles foi concebida a empreitada de Escrivá. Por isso, para começar a compreender o impacto religioso e cultural da Obra, no contexto da explosão de movimentos católicos entre os leigos deflagrada após o Concílio Vaticano 2º (1962-1965), é preciso recorrer a um segundo tipo de fonte, necessariamente mais distanciada do calor da polêmica. Trata-se de estudos como "Opus Dei - Os Mitos e a Realidade" (Campus), também recentemente lançado, do célebre vaticanista norte-americano John Allen Jr. Mas esse já é o assunto, se Deus quiser, da coluna da semana que vem.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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