Pensata

João Pereira Coutinho

14/05/2007

Hora de crescer

Não é fácil ser drogado: quando o produto desaparece, a privação instala-se, o corpo revolta-se e a lucidez abandona a criatura. Não falo de mim. Falo dos selvagens que, depois da vitória de Nicolas Sarkozy nas presidenciais francesas --uma vitória democrática, entendam-- saíram para a rua e, muito democraticamente, queimaram carros e agrediram policiais. Comentários?

Alguns, mais moderados, explicaram na imprensa europeia que os selvagens apenas manifestaram o seu "descontentamento" com os resultados. Não duvido. Mas duvido que queimar carros e agredir policiais seja a melhor forma de o fazer, exceto se estivermos a falar de certas classes de primatas, onde o desporto é habitual.

Outros, mais agressivos, denunciaram o fenómeno --no fundo, a intolerância antidemocrática das massas-- e perguntaram, com certa razão, o que diria a opinião bem pensante da Europa se a palavra "esquerda" fosse substituída por "direita". Imaginem o filme: a extrema-direita queimava 800 carros e agredia 80 policiais. Ainda estaríamos a falar de "descontentamento" democrático?

Respeito os meus colegas colunistas, mas regresso ao início: não é fácil ser drogado. E quando se sabe que as intenções de Sarkozy passam por emagrecer, e em certos casos liquidar, a monstruosidade inviável do estado social francês --a semana das 35 horas, um mercado laboral paralisado, uma altíssima carga fiscal-- entende-se facilmente que o problema das massas é o típico problema do drogado a quem lhe prometem retirar o produto. A privação instala-se, o corpo revolta-se, a lucidez abandona a criatura. Ele quer a sua dose, mas o "dealer" nega-lhe a dose. Como explicar isto? E como resolver isto?

As respostas são avançadas por Roger Kimball no último número da revista "The New Criterion". Ponto prévio: considero a "The New Criterion" a melhor revista mensal do mundo, embora entenda que o tom descaradamente "highbrow" da publicação seja um insulto para cabeças estreitas.

Kimball, com erudição e simplicidade, escreve longo ensaio sobre Hayek, o economista austríaco que venceu o Prêmio Nobel da Economia em 1974. E escreve sobre o lado menos conhecido de Hayek: a denúncia que o teórico fez das consequências psicológicas que uma forte dependência económica e social do Estado acaba por provocar no carácter dos indivíduos.

A denúncia surgiu em "The Road to Serfdom", livro de 1944 que transformou Hayek em estrela popular e que ainda hoje se lê com prazer e proveito. Desde logo porque Hayek procurava mostrar como um crescente domínio da economia pelo Estado representava uma forte ameaça à liberdade individual. Essa ameaça era identificada por Hayek no seu próprio país de acolhimento, a Inglaterra, onde uma mentalidade dirigista procurava chamar para as mãos do governo as rédeas da economia nacional.

Para Hayek, esse centralismo crescente não significaria, apenas, o empobrecimento da Grã-Bretanha, ou seja, a destruição de uma ordem espontânea de mercado onde os indivíduos podem agir livremente, seguindo regras de conduta justa e perseguindo os seus fins pessoais. Como o título do livro sugere, o crescente controlo da economia pelo Estado conduziria a democracia pelo caminho da servidão. Como na Alemanha ou na União Soviética.

Hoje, é possível ler o aviso de Hayek com algum desconto: a presença do Estado na economia não conduz necessariamente a uma abolição da democracia e à imposição de um regime ditatorial. As sociais-democracias europeias, que praticamente se transformaram na única linguagem política aceitável pelo "centrão" eleitoral, mostram como o equilíbrio entre o Estado e a iniciativa privada é possível, e se calhar desejável.

Mas um aspecto do trabalho de Hayek merece ser revisitado - e Roger Kimball fá-lo no artigo: trata-se da "servidão" psicológica que as economias fortemente dominadas pelo Estado acabam por infligir aos indivíduos. Hayek fala de uma "alteração de carácter" e, retomando Tocqueville, denuncia o que lhe parece ser uma "infantilização" dos seres humanos: um Estado que cuida deles do berço à sepultura, respondendo a todas as suas necessidades com patológico paternalismo, é também um Estado que lhes retira qualquer possibilidade de se tornarem adultos e responsáveis.

Nas noites de Paris, Lyon ou Nantes, não foi apenas a extrema-esquerda que saíu à rua. Foram crianças sem maneiras, que o Estado infantilizou durante longos anos de doentia protecção. Este atraso não se resolve com polícia. Resolve-se da única forma possível: terminando com a mesada e obrigado as crianças a crescer.
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

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