Pensata

Sylvia Colombo

09/03/2007

Cadáver Road Show

Não é o Cirque de Soleil, nem o Olodum, trata-se de uma exposição de cadáveres chineses que, por mais inusitada que pareça, está longe de ser uma novidade. Afinal, assim como a trupe canadense e o coletivo de percussão baiano, ela é uma em meio a tantas "montagens" e reinterpretações da idéia que a originou e que estão viajando mundo afora. "Corpo Humano - Real e Fascinante" --em cartaz na Oca, no Ibirapuera-- resulta de um desdobramento da banalização das mostras com peças humanas reais que tomou o circuito internacional nos últimos doze anos.

Tudo começou na década de 70, quando o sinistro dr. Gunther von Hagens --também apelidado de sr. Frankenstein-- criou e patenteou a técnica da polimerização --ou plastificação, que envolve a troca da água das células por um material de silicone-- de corpos de seres humanos com a intenção de criar peças artísticas a partir deles. A primeira mostra realizada pelo anatomista alemão, "Body Worlds", entretanto, aconteceria apenas em 1995, em Tóquio, depois excursionando pela Europa. Trazia, entre outras construções bizarras, um homem carregando sua própria pele, um outro sobre um cavalo segurando seu cérebro em uma mão e o do cavalo em outra. E, ainda, um homem rezando, ajoelhado, segurando o próprio coração nas mãos.

Renato Stockler/Folha Imagem
Público visita a exposição Corpo Humano na Oca, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Público visita a exposição Corpo Humano na Oca, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Houve uma dupla reação. Primeiro por conta das insuficientes explicações sobre a origem dos corpos --sabia-se apenas que tinham vindo da China e que se tratavam de doações voluntárias. Depois, por levantarem a discussão sobre o que se pode e não se pode fazer com restos mortais de seres humanos e de animais.

Em 2003, uma comissão do governo do Quirguistão (atenção, não é o Cazaquistão...), tentou investigar a acusação de que Von Hagens usara indevidamente corpos de pacientes mortos de um hospital psiquiátrico do país. Não conseguiu reunir evidências suficientes e a história morreu aí. Em janeiro de 2004, a revista alemã "Der Spiegel" levantou a lebre sobre a possibilidade de serem presos políticos chineses, acusando Von Hagens de contrabando de corpos. O alemão apresentou provas das doações e conseguiu proibir judicialmente a publicação a voltar a falar do assunto. Mas a polêmica continuou, principalmente depois que dois corpos com buracos de bala na cabeça foram retirados da mostra.

Com relação à disposição das peças, Von Hagens continuou ouvindo críticas, tanto que resolveu deixar de apresentar seu espetáculo na Alemanha e levou-o para cidades no Canadá e nos EUA, onde sua "turnê" se encontra atualmente (mais informações em www.bodyworlds.com).

Renato Stockler/Folha Imagem
Espectadores tiveram de enfrentar uma longa fila para comprar ingressos e entrar na mostra
Espectadores tiveram de enfrentar uma longa fila para comprar ingressos e entrar na mostra
Os norte-americanos acabaram limpando a barra desse modelo de mostra, pelo menos em parte. Ao criar "Bodies", o dr. Roy Glover, da Universidade de Michigan, optou por uma alternativa exclusivamente didática e científica. Em vez de posições e situações inusitadas, apresentou os corpos em posições mais comezinhas, como envolvidos em afazeres domésticos ou praticando esportes --no Brasil, a maioria está exposta como nas nossas tradicionais aulas de biologia escolares, na vertical, com os braços estendidos para baixo, parecendo pendurados num cabide. Mesmo a versão de Glover, entretanto, sofreu bombardeios por continuar usando os tais corpos chineses misteriosos. O professor defende-se da mesma forma, apresentando comprovação de doações vindas do Dalian Medical University Plastination Laboratories, na China. Onde esse instituto conseguiu os cadáveres, entretanto, permaneceu sendo um mistério.

Surgiram, então, outras mostras inspiradas na do dr. Von Hagens, também usando a técnica da plastificação, na Coréia do Sul, no Japão, na Espanha e nos EUA. A que está no Ibirapuera é uma das organizadas por Glover. Traz 16 cadáveres de homens e mulheres e 225 órgãos e pedaços de corpos (tipo bustos), o que, obviamente, multiplica o número de pessoas mortas envolvidas.

Em duas visitas realizadas de manhã, durante esta semana, tentei identificar um padrão de reação das pessoas. Não encontrei. Mas algumas foram surpreendentes. Várias, especialmente mulheres, cruzavam as mãos e olhavam com certa tristeza para as peças. Se estivessem no enterro de algum parente provavelmente agiriam do mesmo jeito. Outros, geralmente os de roupas esportivas, que provavelmente estavam fazendo seu exercício no parque e resolveram parar para dar uma olhada na exposição, traziam caras de espanto. Como quem entra num cinema sem ver direito sobre o que é o filme em cartaz e topa de repente com uma produção qualquer de terror sangrento.

Caio Guatelli/Folha Imagem
Montador de exposição observa um corpo humano morto preservado
Montador de exposição observa um corpo humano morto preservado
Confesso que estava preocupada em ver reações de crianças. Quando vi a mesma exposição em Nova York, em agosto do ano passado, o filho de 4 anos de uma amiga, ao ver de perto tantos corpos e pedaços de carne, de repente, começou a fazer perguntas sobre o que era a morte e o que ia acontecer depois dela. Minha amiga teve que interromper o passeio para tentar explicar ali mesmo para o garoto algo que talvez ela somente o faria num outro momento mais apropriado.

Não vi crianças pequenas em ambas as ocasiões. Mas adolescentes, um monte, em excursões escolares. Na primeira sala, a zoeira costumeira, depois alguns olhos começaram a se arregalar. Piadinhas não faltaram. O saudável bom humor e espírito de porco típicos da idade. Comparavam músculos em fatias com peças de açougue, reparavam no corte das unhas de uma peça feminina. E, obviamente, comentavam o tamanho dos órgãos reprodutores masculinos à mostra. Momento surreal: uma professora, admoestando uma garota que fazia uma brincadeira sobre a magreza de um dos corpos, soltou a seguinte frase: "Devemos ter respeito. Essa foi uma pessoa como nós. Agora aconteceu de ela estar nessa situação". Putz, que situação...

Um casal buscava a seção dos músculos. Achou um dos corpos (o que está totalmente fatiado, camadas de tecido e músculos expostas) e o rapaz começou a explicar para a moça onde ele ia ser operado. "Aqui no joelho, eles vão pinçar o músculo." Não foram os únicos atrás de explicações para as doenças. O corpo que traz as intervenções cirúrgicas --e que parece saído de um filme do canadense David Cronenberg-- presta-se bem a essa função. Um monitor usa exemplos futebolísticos. "O Nilmar [jogador do Corinthians] foi operado aqui", indicando um ponto no joelho. "Nossa, meu tio morreu disso", uma mulher contava à amiga diante do fígado com cirrose, colocado ao lado do fígado normal. "Olha, o pulmão do seu pai já deve estar assim", uma senhora para a filha, diante do pulmão do fumante (realmente medonho por sinal...), ao lado do qual colocou-se uma caixa de vidro com os dizeres: "Abandone o seu cigarro nessa galeria e pare de fumar agora". Alarmista, é verdade, mas a causa vale.

No geral, a exposição, que causou filas de espera de duas horas e meia durante o último fim de semana, provoca "mixed feelings". Descontando o apelo sensacionalista (frases nas paredes: "O corpo nunca mente" ou "Ver é saber") com que apresenta sua função didática --recomendações de dieta e exercícios fecham o passeio-- trata-se de um confrontamento pessoal no mínimo perturbador.

Impossível não sair dali com as mesmas dúvidas que o filhinho da minha amiga.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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