Pensata

Alcino Leite Neto

02/11/2003

Esqueçam o que eu falei

Houve um tempo em que Luiz Inácio Lula da Silva não falava assim, pelos cotovelos. Também houve um tempo em que o atual presidente da República tinha melhores interlocutores.

Mexendo nos guardados, salta da gaveta um livreto editado em 1982 pela Brasiliense, "Félix Guattari Entrevista Lula". Este pequeno fascículo de 39 páginas deve ser hoje uma raridade.

A capa do livro de bolso, cujo copyright é do Partido dos Trabalhadores, é toda branca, com o nome de Guattari em azul e o de Lula em preto, em letras garrafais. Uma foto preto-e-branco em 3x4 exibe Lula com uma boina desengonçada, o semblante circunspecto e a vasta barba mal-feita.

Na página de abertura, outra foto, esta maior, mostra Lula abraçando Guattari, psicanalista francês, pensador, militante e ídolo de movimentos de esquerda alternativos, autor de um dos livros mais discutidos entre os anos 70/80, "O Anti-Édipo", escrito em parceria com o filósofo francês Gilles Deleuze. Guattari morreria uma década mais tarde, em 1992. Na época da entrevista tinha 52 anos.

O texto curto de apresentação do livro é do ensaísta Laymert Garcia dos Santos. Lula, que estava prestes a completar 37 anos, era apenas um líder sindical e presidente de um partido bastante novo, o PT (fundado pouco mais de um ano antes), para o qual convergiam as atenções pelo tanto que ele significava como oposição ao regime militar, mas também como renovação do discurso e da prática da esquerda.

A entrevista ocorreu em São Paulo, em 1º. de setembro de 1982. No Brasil, o governo militar declinava. No mundo, a conservadora Margaret Thatcher ganhara as eleições na Inglaterra (1979) e o republicano Ronald Reagan fôra eleito presidente dos EUA (1980). Mas as coisas pareciam favoráveis à esquerda, com a vitória dos socialistas na França (Mitterrand chega à Presidência em 1981), na Grécia (Papandreu vira primeiro-ministro em 1981) e na Espanha (Felipe González é eleito premiê em 1982).

Chamava a atenção internacional os sucessos das greves lideradas pelo sindicato polonês Solidariedade (liderado por Lech Walesa), a principal força de oposição ao regime soviético no Leste europeu, cujas manifestações eram comparadas ao movimento sindicalista no ABC de São Paulo.

Não era a primeira visita de Guattari ao Brasil, que depois voltou várias vezes ao país onde sempre teve um fiel grupo de seguidores. Seu entusiasmo com o PT era grande em 1982. Diz ele, na entrevista com Lula: "Eu tive, em Campinas, uma longa conversa com Jacó Bittar e com outros militantes operários, que, na época (em 1979), me falaram do projeto de se passar a uma ação política global, criando um novo partido. Hoje isso está feito. E até parece que os resultados foram bastante inesperados, pois, atualmente, reina no Brasil um clima inteiramente novo, já que muitos desejos de transformação, relativos a categorias sociais as mais diversas, parecem ter-se encarnado no movimento do qual o PT tornou-se articulador".

Lula ainda distinguia entre direita e esquerda e usava expressões como "classe operária" e "classe trabalhadora". Sua visão sobre o papel do PT parece bastante clara na época: "Ao longo de toda a nossa vida, temos (os trabalhadores) sido tratados como massa de manobra. O povo sempre foi induzido a acreditar que não existia para ele nenhuma possibilidade de se auto-governar e que seria preciso alguém que o dirigisse. (.) Uma das grandes tarefas do PT é, precisamente, desmistificar esse erro histórico, segundo o qual nós só servimos para trabalhar. E provar que a administração de um Estado não é uma questão técnica, mas sim política".

O PMDB era então a única "oposição" tolerada pelo regime militar. O surgimento do PT como força política punha em questão a liderança oposicionista do PMDB, que pregava o "voto útil" nas eleições estaduais daquele ano.

Guattari pergunta a Lula: "Vocês se recusariam, por exemplo, a participar de uma 'coalização de esquerda' (com o PMDB) para gerir o Estado de São Paulo?". Lula responde: "Eu não vejo como conseguiríamos conciliar interesses tão divergentes. Eu não acredito que o avanço de uma classe possa depender simplesmente do fato de que alguns de seus membros ocupem cargos oficiais".

No meio da entrevista, Guattari faz uma das perguntas mais polêmicas: "O programa econômico do PT prevê uma reapropriação coletiva de grandes meios econômicos, como bancos, complexos industriais, para liberá-los do domínio dos monopólios nacionais e das multinacionais. Isto não implicaria numa certa concepção subjacente das futuras relações entre o Estado, a economia e a sociedade? Que forma, segundo você, deveria tomar essa coletivização? A de uma nacionalização de caráter estatal, ou a de um processo mais auto-gestionário?".

Eis a resposta de Lula: "Se eu devesse responder de pronto a tal questão, eu diria que as coisas se orientariam mais em direção a um sistema de estatização. Entretanto, é preciso estar com os pés no chão, e saber que os processos de transformação não se dão porque queremos, mas sim em virtude das forças políticas sobre as quais eles se apóiam. Se, numa primeira etapa, nós pudéssemos fazer uma nacionalização, isso já seria muito importante, mas o objetivo final continua sendo a estatização. Mas é preciso que as coisas estejam claras: essa estatização só terá sentido no quadro de um Estado democrático, onde o povo poderá gerir e administrar suas indústrias e seus bancos em benefício da coletividade e não em benefício das burocracias do Estado. Nós devemos ser realistas; as propostas do Partido dos Trabalhadores não podem ser sonhadoras: hoje, nós não temos nem delegados sindicais, nem comissões de fábrica. Se nós conseguirmos obter isto, já será um passo decisivo, que poderia ser seguido de outros passos, nos aproximando desta forma de uma co-gestão, do acesso à contabilidade das empresas, com poder de decisão para discutir projetos e investimentos. Em seguida, chegaríamos à etapa de nacionalização, e acumularíamos forças para passar enfim à estatização. É como se estivéssemos subindo uma escada de 16 degraus: se não subirmos um a um, arriscamos cair e quebrar a perna. Nós não queremos ir com sede ao pote. Nós queremos é matar nossa sede! Por isto, precisamos ter cuidado!".

Guattari indaga logo em seguida: "Você não vê, portanto, no alto de sua escada, um modelo constituído, de tipo soviético, chinês ou cubano?".

Lula: "Não, de forma nenhuma. E, aliás, nem francês, nem sueco!".

A entrevista continua, com Guattari perguntando sobre a participação de minorias no PT, sobre o modo como o partido encara a relação com intelectuais, sobre a guerra das Malvinas e a intervenção americana na Nicarágua e em El Salvador. "O que é preciso, na verdade, é criar condições que nos permitam não depender nem do imperialismo americano nem do imperialismo soviético", diz Lula a dada altura.

Guattari quer saber então se o PT mantém relações privilegiadas com a Internacional Socialista, que, aliás, se reuniu em São Paulo no último mês. Lula responde: "Não. No PT nós não nos preocupamos em estabelecer compromissos com nenhuma das internacionais existentes. Aliás, enquanto estivermos em fase de crescimento, as questões ideológicas não poderão ser colocadas em sua amplitude, no PT. Seria prematuro se engajar a nível internacional. Nós esperamos estabelecer relações estreitas com todas as forças democráticas do mundo e isto só será possível se não fizermos opções ideológicas de cúpula, antes que a base faça suas próprias escolhas".

O psicanalista agradece as respostas, mas então é Lula ele mesmo que deseja entrevistar Guattari, a respeito da política européia. Tem curiosidade com o desenrolar do governo socialista de Mitterrand na França.

A análise de Guattari é bastante precisa, vislumbrando nos sinais emitidos em 1982 o destino que a história reservaria ao PS francês: "Após um período (pós-eleitoral, na França) que podemos chamar de 'estado de graça', porque foi vivido em meio à surpresa e à espera de grandes mudanças, com medidas de revalorização do nível de vida das categorias mais desfavorecidas e, sobretudo, medidas para a salvaguarda das liberdades (supressão dos tribunais de exceção, libertação dos presos políticos, abolição da pena de morte etc.) o governo pouco a pouco se atolou na crise: ele se debate e não consegue resolver a inflação, o desemprego, a fuga dos capitais, a paralisação dos investimentos, a queda das exportações etc. E vem, progressivamente, gerindo o país quase como o teria feito um governo conservador. O fundo da questão é que o Partido Socialista não tem uma verdadeira política de transformações sociais. Ele se preocupa com o dia-a-dia e se comporta, cada vez mais, como um partido clássico".

Tudo isso são lembranças de 1982, que saltam da gaveta de guardados, sem nostalgia, para esta coluna de 2003.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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