Publifolha
17/10/2009 - 13h55

Livro analisa as obras e traz biografia de Carlos Gomes; leia trecho

da Folha Online

A coleção "Folha Explica" tem, entre seus volumes, uma obra de fácil leitura sobre um dos mais importantes compositores brasileiros de música erudita de todos os tempos: Carlos Gomes.

Divulgação
Livro faz análise minuciosa de todas as peças do músico
Livro faz análise minuciosa de todas as peças do músico

O livro, cujo primeiro capítulo pode ser lido abaixo, faz uma análise minuciosa de todas as peças compostas pelo músico, analisa a ligação entre a ópera "Il Guarany" e o romance "O Guarani", de José de Alencar, e traz ainda a biografia de Carlos Gomes (1836-1896).

"Carlos Gomes" é assinado pelo crítico Lorenzo Mammì, professor de história da música no departamento de música da ECA/USP.

-Leia resenha "Livro retoma as mudanças na percepção consensual sobre o músico", de João Batista Natali, publicada à época do lançamento do livro

Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.

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Num ensaio incluído na coletânea "Carlos Gomes - uma Obra em Foco",1 Vicente Salles cita um auto das pastorinhas do Rio de Janeiro em que é aproveitada, com poucas modificações, a melodia do famoso dueto "Sento una Forza Indomita", do Guarany. A mesma melodia se reencontra em várias manifestações folclóricas, desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul. Parece improvável que Carlos Gomes (1836-96) tenha utilizado um motivo popular já existente, que um ouvinte da época reconheceria com facilidade. É Il Guarany, ao contrário, que se tornou tão popular, a ponto de se confundir com o folclore.

Está aí um paradoxo, que emperra toda avaliação serena da figura do compositor: sua música é famosíssima e, ao mesmo tempo, quase desconhecida. Não há coreto do Brasil em que não tinha sido executada a "Protofonia" do Guarany. Ao mesmo tempo, com exceção de duas boas gravações dessa obra e de uma do Colombo, não existe registro confiável nem edição rigorosa de suas óperas. De todas as composições eruditas produzidas no país, as suas --algumas delas, pelo menos-- são as que mais se enraizaram na memória coletiva. Mas sua imagem e sua colocação histórica, para além do mito, ainda são vagas e embaçadas.

Num momento decisivo da história do país, Carlos Gomes foi um ícone popular. Foi também o primeiro músico brasileiro importante a ter produzido uma música profana erudita, claramente distinta tanto da música de entretenimento quanto das composições cerimoniais ou litúrgicas. Num arco de cerca de 30 anos (da Noite do Castelo ao Schiavo), ele encarnou a possibilidade de uma música culta brasileira, que fosse ao mesmo tempo erudita e profana, patriótica e cosmopolita. No entanto, apesar do esforço dos musicólogos, ainda hoje não se chegou a esclarecer se sua obra pertence realmente à tradição musical do país ou se é apenas um episódio na história da ópera italiana que, por acaso, foi protagonizado por um brasileiro.

A partir da proclamação da República (1889), e talvez um pouco antes, o setor mais informado do público brasileiro já começava a se afastar de Carlos Gomes: com Leopoldo Miguez, Francisco Braga, Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald, surgia uma geração de compositores dedicada principalmente à música sinfônica e camerística de estilo romântico norte-europeu, o que significou uma ampliação considerável de horizontes, ainda que com certo retardo. O estilo operístico italiano, agora verista,2 ficava a cargo de personalidades menores, como Gomes Araújo, Gama Malcher ou Araújo Viana. Além disso, a ópera italiana, que já fora associada à corte, tornava-se o território privilegiado de um público de imigração recente, centrado em São Paulo, mais do que no Rio. É nessa época que "música italianada" se torna o oposto de "música nacional", como é ainda julgada por Mário de Andrade.

No universo cultural da República Velha, entre 1890 e 1930, Carlos Gomes representa a nostalgia do antigo regime e, ao mesmo tempo, o mau gosto de uma pequena burguesia de imigração recente. Não por acaso, defensores de sua música são os mesmos críticos que atacam as novas idéias, como Oscar Guanabarino. É nesse período, contudo, que a obra e a figura de Carlos Gomes se insinuam na cultura popular, através de uma cadeia ininterrupta de transcrições e manipulações, chegando até as pastorinhas, os ranchos, os sambas.3 É um processo observado muitas vezes: o que decai da cultura alta se contamina e ganha nova vida em produções sempre mais humildes e periféricas. No caso de Carlos Gomes, entretanto, há algo mais: para amplas camadas da população, Il Guarany mantém sua credibilidade como imagem sublimada e mítica do povo brasileiro --muito mais do que o nacionalismo sofisticado, mas um tanto escandinavo, de um Nepomuceno, por exemplo. A famosa cabeleira de Carlos Gomes é, assim como a basta barba de d. Pedro II, uma imagem popular com a qual nenhum presidente e nenhum compositor posteriores conseguiram competir.

Durante o regime de Getúlio Vargas (1930-45), a postura em relação a Gomes muda de novo: afinal, o compositor é uma glória da nação, o primeiro brasileiro a ter adquirido fama mundial. Mas em que sentido é uma glória, e em que sentido é nacional? Em 1936, centenário do nascimento do compositor, o embaraço se torna evidente. Quase todos os autores coletados no número dedicado a Carlos Gomes da Revista Brasileira de Música, ainda hoje uma referência obrigatória sobre o assunto, parecem pisar em ovos. Ênio de Freitas e Castro começa seu ensaio confessando a "profunda divergência entre a [sua] maneira de sentir a música e a que se pode atribuir a Carlos Gomes". Sílvio Deolindo Fróes declara logo que em 1895, quando conheceu Gomes, era discípulo de Franck e de Riemann, de maneira que a homenagem ao antigo mestre é prestada com o devido distanciamento. Para Octávio Bevilacqua, Carlos Gomes se dedicou ao teatro de ópera porque este era a única aspiração possível em seu ambiente cultural --uma aspiração, contudo, bem abaixo de sua potencialidade. Luiz Heitor aponta para elementos nacionais nas primeiras óperas de Carlos Gomes, que infelizmente teriam sido abandonados após sua mudança para a Itália. Mário de Andrade, certamente o mais sutil de todos esses comentadores, analisando Fosca, assinala elementos de wagnerismo aos quais, de novo infelizmente, Carlos Gomes teria renunciado nas obras seguintes, ante a hostilidade do público.

De triunfo brasileiro nos palcos do mundo civilizado, o compositor campineiro se tornava, assim, uma ocasião perdida. Perdida por ter se dedicado a um gênero tão artificial e empolado como a ópera, em vez de à música instrumental e camerística. Por ter abandonado, na ópera, o caminho da nacionalidade, em prol do cosmopolitismo europeu. Por ter escolhido, na Europa, a Itália em vez da Alemanha. Era uma maneira paradoxal de recuperar a figura do compositor, dentro de um esquema estético que buscava um paradigma moderno e, ao mesmo tempo, "autenticamente brasileiro". Moderno, Carlos Gomes a seu modo foi, pelo menos dentro dos parâmetros um tanto atrasados da música italiana da época. "Autenticamente brasileiro", certamente não, no sentido de que não há quase nada, em sua música, que não poderia ter sido escrito por um compositor de outro país.

Recentemente, Marcus Góes4 tentou defender a tese de que o sucesso do Guarany se deve a um novo tipo de melodização, que derivaria da modinha. Mas fica difícil ver algo de particularmente modinheiro nas árias do Guarany, e tampouco parece que alguém, no Brasil ou na Itália, tenha detectado esse aspecto na época. De fato, o que se entende por "modinha" é tão vago que fica mesmo difícil caracterizar alguma coisa por aí.

Talvez a questão se esclareça se deixarmos de colocar a identidade nacional como algo fixo, depositado no repertório popular, que os compositores eruditos podem ou não atingir, e passarmos a considerá-la um processo histórico, que se caracteriza por uma seqüência de escolhas estéticas. Não resta dúvida de que Carlos Gomes quis escrever, pelo menos em alguns momentos de sua vida, óperas nacionais. Nacionais, porém, não em referência ao folclore, como seria a música nacionalista posterior, mas em relação a um espírito nacional em formação, ao qual uma nova música, erguendo-se acima das tradições locais, deveria dar voz.

Foi nacional como era nacional Giuseppe Verdi (1813-1901), que nunca cita melodias populares italianas. Se Gomes não foi um Verdi brasileiro, isso se deve em parte a limites de seu temperamento (e não tanto a limites técnicos, que aos poucos foi superando) e em parte à fragilidade do projeto cultural em que se apoiava e que era, substancialmente, o do Segundo Reinado. Sua popularidade no Brasil sempre dependeu de seu sucesso no exterior, e não sobreviveu a este. Não havia, no país, um público burguês suficientemente amplo e estável para sustentar uma produção nacional --não no campo da ópera séria, pelo menos. Além disso, o teatro lírico italiano, a cuja tradição Gomes se filiava, já estava em crise na época em que o compositor obteve seus primeiros sucessos. Esse teatro ressurgirá temporariamente com o verismo, a partir de 1890, quando o autor do Guarany já estava em franca decadência. Como outros compositores ativos na Itália, e talvez mais do que os outros, Gomes desempenha então papel de artista de transição; do qual não se sabe dizer se é o último seguidor de Verdi ou o primeiro precursor de Mascagni (1863-1945).

A trajetória de Carlos Gomes --sair do ambiente acanhado de Campinas para se tornar uma celebridade européia e, finalmente, morrer quase esquecido em Belém, de volta aos confins do mundo civilizado-- tem algo de heróico e emblemático. É, em versão extremada, o percurso daquela classe social em rápida ascensão no Segundo Reinado que Gilberto Freyre definiu com os termos associados do "bacharel" e do "mulato".5 Nem patrões nem escravos, nem portugueses nem aimorés: a camada social que mais naturalmente se identificava com o mito indianista de Peri. Dessa burguesia frágil e ousada de intelectuais, e de sua conquista afoita da modernidade e da cultura européia, Gomes foi a expressão mais vistosa --com certeza, o resultado mais eficiente e prestigioso da política cultural de d. Pedro II. Nisso, foi profundamente nacional-- não por atingir um atemporal Espírito do Povo, mas por aderir plenamente a uma situação histórica concreta. Se há algo incompleto em sua vida, não é por não ter conseguido se ligar com a verdadeira natureza de sua nação. É, ao contrário, ter ficado inevitavelmente ligado a ela, a sua situação histórica e a seus limites. Para além de suas qualidades estéticas (que existem, embora não sejam excelsas), a obra de Carlos Gomes é um elemento imprescindível para a compreensão da música e da cultura brasileira, mesmo daquela que parece ter lhe voltado definitivamente as costas.

1 - "Carlos Gomes: Passagem e Influência em Várias Regiões Brasileiras". Em: aa.vv., Carlos Gomes - uma Obra em Foco. Rio de Janeiro: Funarte, 1986; p. 7
2 - O verismo foi uma corrente literária italiana próxima ao realismo francês de Émile Zola. Seu maior representante é Giovanni Verga (1840-1922). Em música, é considerado verista o estilo de Mascagni, Leoncavallo e, em parte, Puccini.
3 - Cf. o artigo já citado de Vicente Salles.
4 - Carlos Gomes, a Força Indômita. Belém: Secult, 1996.
5 - Sobrados e Mocambos, v. II, cap. 11. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

"Carlos Gomes"
Autor: Lorenzo Mammì
Editora: Publifolha
Páginas: 104
Quanto: R$ 18,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

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