Publifolha
19/10/2008 - 15h15

PUBLIFOLHA: Conheça os elementos do sucesso da parceria entre Vinicius de Moraes e Tom Jobim

da Folha Online

"Vinícius de Moraes é um grande poeta. No entanto, isto não é condição para se fazer uma bela letra. Uma palavra, além do sentido verbal, tem uma sonoridade e um ritmo. Só um indivíduo como Vinicius, que conhece a música da palavra, que poderia ter sido um músico profissional, poderia ter feito as letras que fez." - Tom Jobim

Divulgação
"Vinicius de Moraes", de Eucanaã Ferraz, da série Folha Explica
"Vinicius de Moraes", de Eucanaã Ferraz, da série Folha Explica

Dotado de elevada consciência da sonoridade e do ritmo da palavra e de habilidade para adequar a escrita à melodia, Vinicius de Moraes possuía ainda outra qualidade excepcional: uma enorme capacidade para trabalhar em parceria.

O livro "Vinicius de Moraes", da série Folha Explica da Publifolha, que focaliza e interpreta a palavra do poeta tanto nos poemas como em suas canções, apresenta o início da parceria de enorme sucesso do "poetinha" com Tom Jobim, no espetáculo teatral "Orfeu da Conceição", de 1956. Leia o trecho abaixo.

Escrito por Eucanaã Ferraz, poeta e professor de literatura da UFRJ, o livro explica de forma crítica como a parceria foi a experiência nova que a canção popular parecia exigir na época.

O autor analisa os elementos técnicos da dupla, como o domínio de teoria musical que Tom possuía e o conhecimento de poesia, jazz e samba de Vinícius, para explicar a "indivisibilidade" entre letra e melodia de suas canções. Interpreta, do ponto de vista da sintaxe e da construção melódica, letras de canções como "Se todos fossem iguais a você", do repertório de "Orfeu", e "Eu sei que vou te amar".

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VINICIUS E TOM (& CIA.)

O início da parceria com Tom Jobim deu-se com Orfeu da Conceição, espetáculo em que o texto teatral de Vinicius é pontuado por temas incidentais compostos por Tom e canções da dupla (apenas a "Valsa de Eurídice" tem letra e melodia do poeta).32 Quando o musical estreou, em 1956, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a canção brasileira vivia um momento especial: "se da década de 20 aos anos 50 o trabalho dos compositores foi o de desenhar a fisionomia geral da canção popular brasileira, a partir dessa época a linguagem estava suficientemente consolidada para servir de base a novas experiências".33 Assim, o êxito do encontro entre Tom e Vinicius pode ser explicado também pelo fato de que tinham uma tradição consolidada com que trabalhar e porque o momento era propício a novos rumos. Acrescente-se a isso o fato extraordinário de que Tom Jobim dominava teoria musical e Vinicius de Moraes era um poeta moderno com obra já madura, e compreenderemos melhor algumas circunstâncias que fizeram daquela parceria a experiência nova que a canção popular parecia exigir.

Orfeu da Conceição apresentou pelo menos uma canção que se tornaria um clássico: "Se Todos Fossem Iguais a Você". Diferentemente das letras de Antonio Maria, Lupicínio Rodrigues ou Herivelto Martins, que faziam grande sucesso na época, na canção de Tom e Vinicius não há violência, traição, dores de amor sem remédio. A atmosfera é solar, intensamente feliz, e a idealização da amada, longe de ser um motivo para o distanciamento ou a dor, é um maravilhamento absoluto que, numa espécie de utopia, poder-se-ia espalhar pela cidade e pelo mundo.
Na verdade, a letra não trata do amor, mas da amada, reconhecida como um modelo de felicidade em si mesma:

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir, nem sofrer

Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você

A solaridade feliz, urbana, e a possibilidade de "amar em paz", que marcariam as letras das canções da bossa nova dali por diante, estão já neste sambacanção, bem como o aproveitamento de uma unidade melódica mínima que flui livremente.34

O passo seguinte de Vinicius e seu parceiro foi o disco de Elizete Cardoso, Canção do Amor Demais (1958), composto exclusivamente por canções da dupla.35 Responsável pelos arranjos, regência e piano, Tom optou quase integralmente por um tratamento orquestral. A faixa de abertura, "Chega de Saudade", traz pela primeira vez, em disco, o violão de João Gilberto; mas se nela há o respeito à rítmica do samba e a busca por uma sonoridade popular, sua introdução ostenta um trombone excessivo para o violão, que entra em seguida e logo é abafado pela orquestra, bastante convencional.

Exemplo contrário é "Outra Vez", canção na qual a simplicidade está sublinhada pelo violão, bem destacado, de João Gilberto, e pela voz de Elizete, clara, elegante, em conformidade com o despojamento da letra de Vinicius. O mesmo se dá em "Estrada Branca", na qual a economia é perfeita, com apenas voz e piano criando a atmosfera de solidão e concentração que melodia e letra exigem.

Consta que Elizete Cardoso, pouco antes da gravação do disco, mostrou-se preocupada, já que algumas letras lhe pareceram intelectualizadas, "quase eruditas".36 No entanto, ao cantar "Chega de Saudade", fez com que a rima "louca"/"boca" se transformasse em rima perfeitamente consoante, deformando-a em "louca"/"bouca", quando poderia ter aceitado a imperfeição entre as rimas ou, simplesmente, cantado "loca"/"boca", mais em conformidade com a fala. Está claro que Elizete percebeu tanto a sofisticação intelectual das canções quanto a sua modernidade "antimusical",37 desconfiando da primeira e recusando o quanto pôde a segunda. Tais atitudes dão bem a medida do quanto aquelas canções, aparentemente em perfeito acordo com a tradição, podiam causar estranhamentos. Ouvindo, porém, as gravações de Elizete, reconhecemos que a novidade das letras de Vinicius e das melodias e traçados harmônicos de Tom não levavam, obrigatoriamente, à bossa nova, e podiam servir a tratamentos bem diversos.

Outro bom exemplo é o disco de Lenita Bruno, Por Toda Minha Vida, que, lançado um ano após o de Elizete, trazia igualmente canções compostas por Tom e Vinicius.38 Arranjos e regência ficaram sob a responsabilidade do maestro Leo Peracchi, que regera a orquestra no musical Orfeu da Conceição. Músico de formação erudita, ex-professor de Tom, Peracchi criou arranjos camerísticos, sóbrios, em conformidade com as interpretações de Lenita, cantora lírica que emprestou às canções um caráter clássico, marcado pela sobriedade.

As letras de Vinicius serviam, desse modo, tanto à inflexão dramática e aos vibratos de Elizete Cardoso quanto ao canto lírico de Lenita Bruno, porquanto os textos não trazem marcas ostensivas de ruptura com a tradição, marcando-se antes por uma adoção do que se poderia chamar de uma modernidade clássica. Algumas letras optam mesmo por uma atualização de imagens flagrantemente românticas, como "Serenata do Adeus", que dialoga diretamente com a tradição brasileira da seresta, atualizando seus conteúdos: o lamento à luz do luar, o transbordamento sentimental, a fala dirigida à amada. E se não há certo vocabulário consagrado pelos seresteiros, como "merencória" e "convulsos", ou mesmo termos mais bizarros, como "estrelejado", é preciso registrar o uso do verbo "refulgir". Trata-se, portanto, de uma recriação da atmosfera seresteira, cabendo observar que nas letras de Vinicius - não só naquelas em parceria com Tom Jobim - a experiência com a literatura em nada tem a ver com efeitos de rebuscamento, vocabulário nobre, efeitos imediatamente reconhecidos como sofisticados ou de extração erudita. São, ao contrário, marcas de uma poesia moderna, na qual o lirismo se dá de modo concentrado, num jogo bem estruturado de anáforas e emprego de estruturas sintáticas semelhantes, rimas internas, paralelismos, metáforas renovadoras dos mecanismos líricos tradicionais, associações inesperadas, polissemias, tensão entre a intensidade afetiva e a recusa de seu transbordamento, daí resultando um perfeito equilíbrio entre uma atitude poética que articula a novidade e a tradição.

Exemplo de recurso aparentemente simples mas extremamente expressivo é o uso da repetição, que Vinicius manejava muito bem nos seus poemas, e que na letra de "Eu Sei Que Vou te Amar" cria frases intensas e envolventes:

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

A letra tem uma construção rigorosa, na qual se manipula a repetição e suas variações sutis, como num jogo de encaixe, como se construção melódica e sintaxe textual se fizessem por um sistema modular. A canção faz-se toda com a intensidade das convicções, e se as afirmações retornam insistentemente, tal retorno mostra diferenças sutis, porquanto as imagens se desmembram e se rearticulam em função dos movimentos da linha melódica. A repetição, longe de ser uma redundância, é expressão de uma certeza, de uma evidência já determinada pela melodia, como se esta, antes da letra, sugerisse a permanência, a duração, a intensidade de um afeto, que a letra apenas descobre e torna inteligível por meio da palavra.

Vinicius foi um letrista excepcional porque reconhecia as sugestões melódicas, compreendendo, digamos, seus conteúdos afetivos, e por saber convertê-los em idéias, palavras para o canto. Tal consciência e lucidez, que estão na base da criação, aparecem iluminadas numa sutil expressão metalingüística quando, na afirmação categórica "e cada verso meu será []", o texto volta-se para si mesmo, confirmando sua obsessão formal e, conseqüentemente, seu conteúdo emotivo.

As letras de Vinicius de Moraes estão marcadas por essa espécie de espontaneidade construída, na qual o trabalho formal nunca rompe com a naturalidade da canção. E se, de fato, a música de Tom Jobim conformou exemplarmente a sensibilidade viniciana, cabe lembrar que, antes dessa parceria, Vinicius compusera uma série de 13 canções de câmara com o maestro e compositor Claudio Santoro (1919-89), e que, de acordo com o formato clássico e intimista proposto, escreveu letras nas quais se destacam a extrema simplicidade, a síntese e uma certa brandura sentimental. Da série de canções, que lembram os lieder românticos e formam um conjunto orgânico e de grande beleza, veja-se um único exemplo, "Acalanto da Rosa":

Dorme a estrela no céu
Dorme a rosa em seu jardim
Dorme a lua no mar
Dorme o amor dentro de mim

É preciso pisar leve
Ai, é preciso não falar
Meu amor se adormece
Que suave o seu perfume
Dorme em paz rosa pura
O teu sono não tem fim

Tal simplicidade e capacidade de concentração, que não impedem o vigor lírico-emocional, resultaram, sem dúvida, de um projeto estético levado a cabo conscientemente por Vinicius tanto na poesia quanto na canção. E não há dúvida de que essa economia logo chegaria a um alto padrão em "Modinha", "Canta, Canta Mais", "Insensatez", "Por Toda a Minha Vida", "É Preciso Dizer Adeus", "Só Danço Samba", "Garota de Ipanema".

32 O elenco era formado por atores e/ou cantores negros, entre eles Haroldo Costa, Lea Garcia e Abdias Nascimento, e trazia ainda o cantor Ciro Monteiro interpretando Apolo, pai de Orfeu. O espetáculo teve direção geral de Leo Jusi, cenário de Oscar Niemeyer, figurinos de Lila Moraes e coreografia de Lina de Luca. Na orquestra, regida por Leo Peracchi, Luiz Bonfá executou o violão de Orfeu. Foram desenhados quatro diferentes cartazes para a peça, assinados por Djanira, Carlos Scliar, Raimundo Nogueira e Luiz Ventura. Todo o registro fotográfico (ensaios e apresentação) ficou a cargo de José Medeiros, que à época trabalhava na revista O Cruzeiro. No mesmo ano, a Odeon lançou o disco com as músicas (cantadas por Roberto Paiva) e o "Monólogo de Orfeu" (recitado por Vinicius de Moraes). Em 1958, o musical - agora sob o título Orphée Noir - foi para as telas num longa-metragem dirigido pelo francês Marcel Camus. Para a trilha, Tom e Vinicius compuseram "Felicidade", "Frevo de Orfeu" e "O Nosso Amor", às quais se somaram "Manhã de Carnaval" e "Samba de Orfeu", de Luiz Bonfá e Antonio Maria. Ver Cancioneiro Vinicius de Moraes: Orfeu. Songbook I. Músicas de Antonio Carlos Jobim & Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro: Jobim Music, 2003).
33 Luiz Tatit, O Cancionista. São Paulo: Edusp, 2ª ed., 2002, p. 160.
34 Sobre a concepção musical de "Se Todos Fossem Iguais a Você", ver as observações de Lorenzo Mammì em Cancioneiro Jobim. Rio de Janeiro: Jobim Music/Casa da Palavra, 2000; p. 16.
35 Apenas três canções não são em parceria: "As Praias Desertas" e "Outra Vez" são apenas de Tom; "Medo de Amar" tem letra e música de Vinicius.
36 Sérgio Cabral, Elizete Cardoso, Uma Vida. Rio de Janeiro: Lumiar, s.d.
37 O termo "antimusical" apareceria, adiante, em "Desafinado", canção de Newton Mendonça e Tom Jobim.
38 Lenita Bruno foi a primeira intérprete de "Eu Sei que Vou Te Amar", "Sem Você", "Soneto de Separação", "Por Toda a Minha Vida" e "Cai a Tarde".

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"Folha Explica Vinicius de Moraes"
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Publifolha
Páginas: 114
Quanto: R$ 17,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

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