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24/09/2002 - 02h48

Caldo inaugura a história do restaurante

JOSIMAR MELO
especial para a Folha de S.Paulo

Se existe uma instituição moderna que de jovem não tem nada, é o restaurante. Não é tão velho como pode parecer tal como o conhecemos, quase nada tem a ver com as estalagens da Antiguidade ou as tabernas medievais. Mas também não nasceu ontem: o perfil do restaurante moderno vem da segunda metade do século 18, portanto, há quase 250 anos.

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Os estudiosos concordam que o surgimento desse tipo de estabelecimento aconteceu em Paris e que ronda a época da Revolução Francesa, de 1789. Os primeiros surgiram poucas décadas antes. Mais tarde, deu-se um crescimento numérico expressivo.

É justamente essa época a enfocada no livro "A Invenção do Restaurante", da inglesa Rebecca L. Spang (Record, 435 págs., R$ 43, leia trecho), a ser lançado em outubro. Da mesma forma que outros autores que analisaram a história da gastronomia, ou da França, ela registra o surgimento dos primeiros estabelecimentos de serviço de refeições privadas em locais públicos, e constata o seu florescimento na nova ordem estabelecida após a revolução, na França do século 19. Mas a principal contribuição do livro se dá quando ela estabelece uma divergência com o senso comum dos historiadores quanto ao papel exato que a revolução teria jogado para a disseminação dos restaurantes.

A análise mais difundida sobre essa relação é a de que a Revolução Francesa teria sido o estopim do crescimento dos restaurantes em Paris. Por dois motivos. Primeiro, porque, ao produzir a fuga ou execução dos aristocratas (que tinham chefs de cozinha a seu serviço), colocou no desemprego esses profissionais, que foram obrigados a estabelecer-se por conta própria, democratizando o acesso dos plebeus às delícias até então exclusivas da mesa dos nobres. O segundo motivo seria o fato de que, com a abolição das guildas (associação de auxílio mútuo constituída na Idade Média entre as corporações de operários, artesãos, negociantes ou artistas) e a instituição do livre comércio, qualquer um passou a ter direito de montar seu estabelecimento e vender sua comida, sem restrições. Rebecca Spang se opõe a essa visão. "O restaurante não precisou da revolução para instalar-se na vida de Paris", diz ela.

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Mas antes de falar das divergências, convém notar como "A Invenção do Restaurante" destrincha fatos que em outros autores são passagens menos detalhadas. A origem do restaurante moderno até mesmo do seu nome não está nas casas de refeição existentes em meados do século 18. Estas eram as tabernas, onde se bebia e comia o prato que houvesse, em mesas comunais e horários determinados; as "tables d'hôte dos traiteurs" (fornecedores de comida pronta que os fregueses consumiam em casa ou em seu quarto de hotel, mas que ocasionalmente recebiam os clientes em seu estabelecimento, em sua mesa, desde que fosse um grupo grande e com hora marcada); ou os cafés, que serviam apenas alguns poucos petiscos.

Não é daí que veio o nosso restaurante, mas sim de pequenos estabelecimentos conhecidos como "casas de saúde", onde se vendia um caldo restaurador ("bouillon restaurant") para pessoas fracas ou debilitadas ou que pelo menos se consideravam assim. Nessas casas se vendia, portanto, esse restaurador de forças, o "restaurant", que por extensão terminou virando o próprio nome do estabelecimento (dicionarizado como tal, pela primeira vez, em 1835).

Quem os frequentava eram pessoas de posse, supostamente sensíveis, e às quais era preciso dar uma atenção e um conforto que, nas tabernas, elas não encontrariam. Ali era possível tomar a refeição a qualquer hora consumi-la sozinho em sua mesa ou em salas privativas. A comida tinha também suas particularidades: somente caldos ou pratos leves, em tamanho contraste com os servidos nas casas de refeição.

O relato coincide com vários outros existentes. Em português é possível encontrá-lo no livro de Jean-François Revel "Um Banquete de Palavras" (Companhia das Letras); na "História da Alimentação", organizada por Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (Estação Liberdade); e no "De Caçador a Gourmet", do brasileiro Ariovaldo Franco (Senac). A diferença é que, enquanto todos esses referem-se ao pioneiro dos "caldos restauradores" como sendo um certo Boulanger, também conhecido como Champ d'Oiseaux (Franco) ou ainda Chantoiseau (Flandrin e Montanari), Rebecca Spang vai fundo na identificação do personagem: Mathurin Roze de Chantoiseau, que se atribuiu o título de "autor" do restaurante com seu estabelecimento de 1766 na rue des Poulies (atual rue du Louvre), depois transferido para a rue Saint Honoré (no edifício d'Aligre).

Um entre muitos "restauradores" (restaurateurs) que se seguiriam, Roze de Chantoiseau viraria um símbolo da nova ordem gastronômica ao ser processado pela corporação dos "traiteurs" por ter servido pés de carneiro com molho, extrapolando, assim, os limites de seus caldos medicinais (somente os "traiteurs" poderiam servir aliás, preparar cozidos). Ele ganhou a causa (alegou que o molho era colocado depois, sobre os pés de carneiro, portanto não era um cozido...) e, com isso, iniciou o caminho para que os restaurantes fossem pouco a pouco ampliando suas ofertas culinárias, ao mesmo tempo em que mantinham suas vantagens de conforto e privacidade sobre a concorrência.

Hoje, a forma do restaurante nos parece tão habitual que é difícil imaginar que seja tão recente. No entanto, o inusitado desse tipo de estabelecimento era enorme para a época, como se pode ver neste relato de um viajante impactado por sua primeira experiência, em Paris: "Ao chegar à sala de jantar, observei com espanto diversas mesas dispostas lado a lado, o que me fez pensar que estivéssemos esperando por um grande grupo, ou talvez, indo jantar à 'table d'hôte'. Mas minha surpresa foi ainda maior quando via pessoas entrarem sem cumprimentar umas às outras e sem parecer conhecer umas às outras, sentarem sem olhar umas para as outras e comerem separadamente sem falar umas com as outras ou sequer oferecerem repartir sua refeição" (Antoine Joseph Nicolas Rosny, "Le Péruvian à Paris", 1801; citado n' "A Invenção do Restaurante").

É igualmente curioso ler na "Fisiologia do Gosto", de Brillat-Savarin (Companhia das Letras), a Meditação 28, onde, além de explicar com minúcias o que é um restaurante (o livro saiu um 1826), o autor estende-se e enumera as várias vantagens do restaurante (ao lado de desvantagens, também), como se fosse o manual de instruções de um equipamento pouco conhecido.

Associated Press
Restaurante Le Grand Vefour

É esse formato que vai se consagrar em casas que terão grande prestígio em Paris no final do século 18 e nas primeiras décadas do século 19: além do Chantoiseau, que Diderot chamava "o restaurateur da rue des Poulies" (do qual gostava, mas achava caro), o Beauvilliers (de 1782, que, segundo Brillat-Savarin, foi "durante 15 anos o melhor restaurateur de Paris"); o Trois Frères Provençaux, com seus pratos do sul mediterrâneo; o Véry (onde Lucien de Rubempré, personagem das "Ilusões Perdidas" de Balzac, gasta seu orçamento de um ano num único jantar); o Rocher de Cancale (famoso pelas ostras e pelos frutos do mar em geral); o Grand Vefour, até hoje na ativa (e com três estrelas no guia Michelin) no Palais Royal (rue de Beaujolais, 17; tel. 00/xx/33/1/42.96.56.27), que, na Paris daquela época, era o fervilhante centro da cidade e dos restaurantes.

Teria a Revolução Francesa dado o grande impulso a esses estabelecimentos, como muitos autores defendem? Comenta Rebecca Spang, em seu livro: "Durante quase duzentos anos, o lugar-comum da história citou o desenvolvimento do restaurante como um resultado incidental e inesperado dessa revolução. Dos escritores de guias de viagem de 1800 a um jornalista americano que cobria o bicentenário da Revolução, dos irmãos estetas franceses Jules e Edmond Goncourt ao marxista britânico Eric Hobsbawn, os rumores e o pensamento convencional uniam de modo indissolúvel a origem dos restaurantes aos motins políticos, econômicos e culturais de 1789".

E prossegue, em outra parte: "O que todos esses escritores de algum modo não notaram (ou talvez tenham considerado irrelevante) é que, naturalmente, os restaurantes haviam surgido realmente no início da década de 1760". Segundo ela, poucos chefs de cozinha de famílias aristocráticas, depois da queda da Bastilha, abrem seus próprios restaurantes. E na verdade, diz Spang, o período imediatamente pós-revolucionário (marcado por rituais de banquetes coletivizados) será francamente desfavorável para esse tipo de estabelecimento, que privilegia o recolhimento (no lugar da coletividade) e o caro refinamento (no lugar da distribuição equitativa dos bens). "Os banquetes políticos e as ceias fraternais eram outras formas de, na década de 1790, chamar mais atenção para o ato de comer em público (...). Funcionavam como espaços de solidariedade e uniformidade, não de idiossincrasia e preferência."

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No período de furor jacobino, até mesmo as placas com dizeres em outras línguas, na porta dos restaurantes, eram motivo de processos e prisões. Somente após o Terror, e na consolidação do primeiro império de Napoleão Bonaparte (a partir de 1799), os restaurantes viverão seu pleno florescimento. Agora, até mesmo o Estado (possivelmente para distrair a atenção do povo com os problemas econômicos e militares) incentiva a discussão das artes; e a gastronomia passa a ser encarada abertamente como uma questão não de saúde, mas de paladar, de prazer e de estética.

Rebecca Spang se debruça sobre outros personagens que circundam o mundo dos restaurantes, sempre munida de extensa documentação (um quarto do livro é composto de notas ao texto). O sibarita Grimod de la Reynière, autor do "Almanach des Gourmands" (publicado anualmente entre 1803 e 1810), é um deles. Precursor da crítica de restaurantes e da literatura gastronômica que se tornaria um gênero à parte, promotor de banquetes memoráveis (alguns deles temáticos), La Reynière leva a extremos a fruição da mesa por si mesma, concentrando-se no gosto, no prazer puro, não somente destituído de qualquer ilação social ou política, como até se opondo a elas (ele se diverte proclamando a superioridade do prazer gastronômico sobre todos os outros, os encantos das mulheres inclusive). Já outro personagem estudado por Rebecca Spang, Brillat-Savarin, mais humanista, tira a gastronomia do isolamento e a integra aos prazeres sociais.

São personagens que, como os restaurantes, aliás, foram produto histórico de uma época turbulenta e rica, a da Revolução Francesa, a qual voltando ao prato quente deste artigo pode ter ou não produzido diretamente a disseminação explosiva do restaurante, mas, sem dúvida, abriu uma nova era em que essa instituição, hoje tão moderna quanto antiga, pôde se tornar um acessório indispensável da cultura e do modo de vida da atualidade.

Josimar Melo, 48, é crítico gastronômico, diretor do site Basilico.com.br, professor de história da gastronomia na Universidade Anhembi-Morumbi, curador do evento Boa Mesa... ou seja, aquele seu velho hobby do passado (cozinhar, comer, beber) virou trabalho pesado.
E-mail - josimar@basilico.com.br

Para saber mais:
- Restaurante Le Grand Vefour: rue de Beaujolais, 17, Paris, França, tel.: 00/xx/33/1/42.96.56.27, grand.vefour@wanadoo.fr
- "História da Alimentação", de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (org.) (Estação Liberdade, 1998, 885 págs., R$ 79)
- "Um Banquete de Palavras", de Jean-François Revel (Companhia das Letras, 1996, 336 págs., esgotado)
- "Fisiologia do Gosto", de Brillat-Savarin (Companhia das Letras, 1995, 352 págs., R$ 39,50)
- "De Caçador a Gourmet", de Ariovaldo Franco (Senac São Paulo, 2001, 270 págs., R$ 30)

Leia mais:
- Leia trecho do livro "A Invenção do Restaurante"

Links relacionados:
- The Food Timeline - www.gti.net/mocolib1/kid/food.html
- Culinary History Timeline - www.gti.net/mocolib1/kid/food1.html
- History of Food - www.eurohealth.ie/nutrit/hist1.htm
- "The Invention of the Restaurant" - www.hup.harvard.edu/catalog/SPAINV.html
- Rebecca L. Spang - www.ucl.ac.uk/history/staff/spang.htm
- Editora Record - www.record.com.br
- Guia Michelin - www.viamichelin.com
- Companhia das Letras - www.companhiadasletras.com.br
- Editora Senac - www.sp.senac.br/editora
- Estação Liberdade - www.estacaoliberdade.com.br
- Franco - www.francoangeli.it

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