Folha Online sinapse  
26/11/2002 - 02h58

Felicidade em quatro tempos

da Folha de S.Paulo

O Sinapse convocou a filosofia, a religião, a arte e a ciência para um encontro sobre felicidade. Inspirado na estrutura do livro de Eduardo Giannetti, participaram da conversa Mário Sérgio Cortella, 48, professor de filosofia e doutor em Educação pela PUC-SP; monja Coen de Souza, 55, primaz fundadora da Comunidade Zen Budista, com sede em São Paulo; Tom Zé, 66, músico e compositor; e Tales Ab'Saber, 37, psicanalista do Instituto Sedes Sapientiae. A seguir, um extrato do debate.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Da esq. para a dir., o músico Tom Zé, o filósofo Mário Sérgio Cortella, a monja budista Coen de Souza e o psicanalista Tales Ab'Saber


FELICIDADE 1
Da origem da palavra ao vazio do nirvana; da harmonia da roça ao princípio do prazer

Mário Sérgio Cortella - Será que felicidade é o espírito dos deuses? Em grego, a palavra é "eudaimonia". "Daimon" é a divindade protetora que cada um tem dentro de si. A idéia de "eudaimonia" é a de alguém que é impulsionado de dentro para fora. No latim, a expressão correspondente é "felice". Fertilidade e felicidade têm raízes conexas, você é feliz quando é fecundo.

Monja Coen de Souza - Na tradição budista existe um nirvana, estado de paz que só acontece quando há sabedoria. No nirvana você vence a dualidade, se torna uno com o que acontece e com o que é. Nesse uno, nada falta. A propaganda nos induz a ter desejos insaciáveis, mas quais são as minhas necessidades? Devemos ter poucos desejos. A questão da felicidade está conectada com esse conhecimento de si.

Tom Zé - Eu estava no mundo antes da propaganda chegar, pelo menos da maneira que a conhecemos. E, rapaz, conheci na infância não a felicidade, mas uma certa harmonia. Meu pai tinha loja [em Irará, BA], o homem da roça é quem comprava na loja do meu pai. Tínhamos um regime de três anos de seca e dois chovidos: no nosso glossário, três de miséria e dois de riqueza. Riqueza era muito diferente do que agora. Meu pai tinha um livro das contas dos fregueses. Nos anos de seca, quando esse freguês chegava, meu pai abria a conta dele e dizia: "Está aqui, o que você tem?". Ninguém tinha dinheiro. A loja não podia matar o freguês como o banco faz hoje. Naquele mundo, os juros eram pecado capital e vergonha, um assunto imoral, prática inconfessável. Nós o avaliávamos da mesma maneira como a igreja o condenava no Seiscentos. Então, se acertava uma coisa de o freguês tirar da loja o mínimo necessário para o inverno. Meu pai fazia o acordo com o freguês e todos sabíamos que, durante os anos de seca, não tinha brinquedo. Nunca vi bicicleta. Meu pai, que era considerado muito rico, comprava um queijo Palmira no Natal. Comíamos o queijo no Natal, no Ano Bom e acabava aí. Esse mundo era harmonioso, e a ética era interessante. Dinheiro não circulava, a palavra era o valor mais alto. Parecia uma vida harmoniosa da qual tenho saudade como se fosse coisa lida nos livros.

Tales Ab'Saber - Vou começar dizendo que, mais do que a felicidade como meta, a psicanálise é a disciplina do conhecimento das contradições. Se o princípio geral que moveria o homem seria o do prazer, num primeiro momento do Freud [1856-1939], esse princípio é contradito. É na tensão entre um movimento nunca realizado e o seu barramento que talvez esteja a sua verdade. Já na segunda tópica freudiana, tem-se uma coisa terrível: seríamos movidos pela pulsão de morte, o avesso do princípio do prazer. Esses são os temas da psicanálise. Mas tem um lugar para a felicidade. É um lugar tênue, a ser mediado. A felicidade é uma solução de compromisso, não a verdade do sujeito, embora seja para onde todo sintoma busque se orientar.

FELICIDADE 2
A tormenta dos desejos, o particular e o coletivo e a cultura do excesso

Cortella - A felicidade é um estado permanente ou uma ocorrência episódica? É a ausência de turbulência? Como atinjo uma condição de não ser atormentado pelo mundo, por mim mesmo, meus deuses, meu desejo? É possível não ter tormenta? A psicanálise dirá que não. A filosofia diz que talvez só no "belo supremo", de Platão, só na política. Felicidade é possível? Não sei. A filosofia é especializada em colocar questões.

Monja Coen - Felicidade não é ausência de tormenta. A harmonia é criada da desarmonia. O equilíbrio é feito do desequilíbrio. No budismo se fala muito do vazio, e as pessoas têm a impressão de que é niilismo. Ao contrário. A minha tradição dá muita ênfase a esse vazio, que é cheio de tudo o que existe. Dentro do zen-budismo nós questionamos muito, também. A questão primeira é: quem é você? Entender quem é você não traz paz, traz revolução interna. Você não é seu nome, seu gênero, nem o que faz. Tudo começa quando a pessoa chega ao ponto de dizer: "Não sei". Quando não sei, volto ao vazio, aberto de possibilidades. A gente fala em sociedade de consumo, mas você quer voltar ao passado? Claro que não. Com o que temos hoje, como podemos criar melhores condições, uma política de paz, justiça social? Como ser feliz se alguém do meu lado está sofrendo e estamos interconectados a tudo? Minha felicidade pessoal depende da coletiva.

Tom Zé - Quando você fala, querida, o mundo está povoado por sábios, alguns muito consistentes e iluminados. Quando a gente volta para o mundo de agora, tem sete ou oito empresas fabricando produtos com os quais vão sugar o dinheiro dos países menores para desfrutar mais conforto. A publicidade cria os ideais de felicidade que resultam na ostentação. É o diabo. É a glória pessoal, o orgulho de ter um seguro de vida melhor do que o do vizinho.

Ab'Saber - Felicidade é ter um carro bacana e passar por cima da totalidade do seu irmão e de si mesmo. Essa é a doença mais grave da época, a normopatia, a adaptação sem inquietação. Mas onde há uma inquietação é possível uma felicidade, uma felicidade dialética, que inclui seu pólo negativo. A gente se sente feliz quando é capaz de observar esse horror da cultura capitalista do excesso, baseada no fetichismo, e não se confundir com isso.

FELICIDADE 3
O diabólico versus o simbólico, o amor de mãe e o problema da ganância

Cortella - Houve um sequestro semântico nos últimos anos: a idéia de repartir passou a ser entendida como dividir. Repartir significa partilhar, fazer com que o outro também tenha. Dividir é fragmentar. A organização econômica está apoiada na divisão, e isso vale em relação ao indivíduo, à sociedade, ao mundo. Quem divide é o adversário, o cindidor. O Tom brincava com a idéia do diabo: a palavra é uma tradução do hebraico, satã, e significa adversário. Em grego há a expressão "diabolo": "balo" é jogar; "dia" é separado. Diabólico é aquilo que joga separado, fragmenta, desune. "Simbólico" é tudo que agrega, toda estrutura de uma direção só. Hoje temos estruturas diabólicas, o humano fica dividido. A necessidade é de se pensar possibilidades de felicidade afastando o diabólico do cotidiano. Uma das maneiras é entrar de forma decisiva na convicção de repartir a vida. É possível no atual modelo? Não, porque é um modelo apoiado na ganância.

Ab'Saber - Queria fazer um comentário sobre a infância que o Tom Zé rememora. Toda civilização passa ao redor de uma certa origem idílica, da infância, dos povos primitivos. É a noção de que houve um lugar em que as coisas tinham mais sentido. É uma formulação romântica, não por acaso. É num momento romântico que o capital, com suas dissociações, acelera o seu processo e aí se acelera o processo de localização de um lugar vivo, mas relativamente pacificado, que seria a infância. Há uma vertente da psicanálise que é o pensamento de Winnicott* sobre o amor materno. Amor materno é devoção, oferecimento, trabalho para o outro. É anticapitalista por excelência, porque é doação. O amor recebido pelo bebê é o que o torna passível de ser humano. O Adorno** dizia que o amor materno é a fonte de todas as utopias. As doenças mais radicais estariam nessa falha de amor materno.Todos necessitamos ser recebidos, necessitamos de um horizonte de humanidade. Está aí o filme "Cidade de Deus" mostrando crianças criadas diretamente com o todo, não mais mediadas por esse amor materno.

*Donald Woods Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista inglês, conhecido por suas teses sobre o desenvolvimento da criança.
** Theodor Adorno (1903-1969), filósofo alemão fundador da Escola de Frankfurt, formulador do conceito de "indústria cultural", para caracterizar a mercantilização e vulgarização da cultura.


Monja Coen - Acho que a questão vai além. No budismo, não há uma noção de sacrifício pelo outro. Não há outro, o outro sou eu. O ato de devoção em si se completa. Cria-se uma idéia de que o mundo vai mudar se tivermos um modelo ideal de família, a mamãe que acolhe. Não é nossa realidade. As crianças de "Cidade de Deus" não tiveram acolhimento, mas esse acolhimento não precisa ser da mãe. Somos responsáveis e temos que começar rapidinho a cuidar delas. Há um perigo de implosão no capitalismo, no que estão chamando de diabólico. Não é que o sistema não presta, o sistema é muito bom, mas está envenenado por ganância, raiva e ignorância.

Cortella - O capitalismo é sustentado na ganância. A pobreza não é um defeito eventual, é a essência. Para que alguém possa acumular, alguém não pode ter. A ganância não é um deslize, é essência.

Tom Zé - Não posso falar em felicidade. Tenho o hábito de sentir falta, nasci numa casa onde a falta era imposta à criança. Hoje não tenho falta de nada, sou casado, sou isto e aquilo. Entretanto, acordo com falta, tenho o hábito. Aí digo: "Nada me falta, que diabo é isso?". Só estou mostrando como a psicanálise, às vezes, é necessária.

Ab'Saber - Na psicanálise mais contemporânea, a questão é como aguentar a dor de existir. A única forma de suportar a dor é conhecê-la. Mas há uma força importante, que é o aspecto criativo do psiquismo humano, há a possibilidade de uma nova configuração das coisas, e essa abertura tem a ver com a idéia de felicidade. Não é apenas compreender e suportar a dor, mas há um gesto instaurador dos sentidos.

FELICIDADE 4
As energias da frustração, o status do pessimista e a defesa da promessa

Cortella - Há um impulso homicida no modo como o capitalismo está organizado. As energias da frustração são a mola central do consumo desvairado, e a frustração vai parar em grande parte no gatilho, e não na caixa registradora. Uma divindade chamada mercado é geradora de frustração, e não de felicidade. Por quê? Porque anuncia o simulacro como verdadeiro, a representação como apresentação. Aquilo não está presente, está representado e produz ansiedade, frustração e desespero. Tivemos no país, agora, um movimento de esperança: se alguém a apresenta e ela salta no nosso colo, a gente a quer. Não importa que seja vã esperança. O que não pode ser é espera vã.

Tom Zé - Hoje o feliz é o tolo. Só o descrente ocupa o status social. Nessa alegria da vitória do PT, quando eu era entrevistado, era como se dissessem: "Puxa, que vergonha, você alegre? Que inocência é essa?". Visto do ângulo da televisão, há dois Brasis: um que tem vocação para a felicidade, e outro, mania de infelicidade. O primeiro é encontrado nos programas agrícolas. É um mundo generoso e otimista. Os protagonistas inventam soluções funcionais para os problemas da velha agricultura. Esses nossos atores, em seus engendramentos, transmitem a ideologia do labore felice. Enchem nossos corações de um tipo exemplar de alegria, dão a todos vontade de usufruir esse seio fértil de mãe-terra mitológica, mãe-terra que deles parece ser a padroeira. O Brasil-com-mania-de-infelicidade aparece mais tarde, em noticiários nos quais impera a "teoria da informação", praticada por todas as imprensas com seu preceito de que "notícia é notícia ruim". Infelicidade é status, sinal de traquejo intelectual e trato cosmopolita. Quem não é pessimista é apontado, pejado, vergastado como ingênuo. O homem tem vergonha de ser feliz.

Ab'Saber - Para habitar esse mundo a gente tem que ser crítico, desencantado e sem direito às doçuras espontâneas da felicidade? Claro que não. Aconteceu no Brasil, sim, um momento feliz. Não pelas promessas, provavelmente irrealizáveis. Algo na vitória do Lula já é verdade, não é promessa. É uma novidade psíquica, certas estruturas neuróticas caíram, aspectos dissociados e diabólicos foram superados. Agora, na situação que o país está, governo é outra história.

Cortella - O problema não está em prometer, está em não fazê-lo. Promessa é essencial à existência. Sem utopia, não haveria a possibilidade de imaginar que as coisas fazem sentido, e a política é um dos modos de se fazer sentido, um caminho para produzir felicidade coletiva. Felicidade é tanto mais intensa quanto mais coletiva for.

Monja Coen - E nós fomos para a política. Entretanto, volto para o meu nirvana, que independe da política. Embora seja necessário o nosso bem-estar físico, existe um estado de felicidade que todos já pressentimos e sabemos que não está fora de nós. Não depende do pão, da roupa, do afeto físico. Podemos ter tudo isso e continuarmos insatisfeitos. Felicidade satisfaz todo o ser, e não pedaço dele. Independe dessas coisas externas, mas necessárias. Chega de falar mal dos outros. Nossa felicidade só depende de colocarmos energia-vida na direção da transformação que queremos.

Cortella - A gente não pode deixar longe a noção de felicidade como fertilidade. O fértil é aquele que mantém a vida. É a marca da bioproteção, da capacidade vital. Sem a possibilidade da felicidade, sem a projeção utópica, sem o arremessar para adiante, a gente não se move. A felicidade é algo a ser repartido, não é exclusivo, privatizável.

Ab'Saber - Estamos condenados a uma certa tormenta. Agora, há civilizações de mais mal-estar e menos mal-estar. O problema, monja, é que enquanto a gente reflete —e nossa reflexão é muito frágil—, o capital avança com estrutura de controle. O mecanismo diabólico é concreto. Não é individual, é suprapessoal.

Monja Coen - É preciso desenvolver a consciência. Que cada um faça o seu pouquinho: consumo consciente, capacidade de ouvir o outro, não-violência. Temos que voltar a valores comuns, falar de ser humano para ser humano, de coração para coração. Que as pessoas se unam nessa nossa utopia, na terra pura que chamamos no budismo. Acredito que caminhamos nessa direção.

Cortella - O Kant [filósofo, 1724-1804] usa uma idéia de felicidade como a estrela polar que, para o navegante, é só a referência. Ele não quer chegar à estrela polar, nem chegará. É utopia, portanto. A sabedoria não está em recusar o horizonte e se aquietar, mas em saber que você é um ser de busca, e não de encontro. Hoje, o sistema-vida está em processo entrópico, se consumindo. Mas já há essa consciência em muitos locais do planeta, por isso minha visão é otimista. Há recusas a que essa entropia seja admissível. Às vezes, a recusa vem do fanatismo religioso, quando diz: não quero esse modo de vida. Embora fanático, é um alerta. Tem a reação de "Cidade de Deus", que, embora seja violência, é uma reação. Há a necessidade de não termos uma visão nem catastrofista nem triunfalista. Não estamos no ápice da construção do paraíso terreno, não somos o supra-sumo da criação.

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