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25/02/2003 - 03h26

Veja os passos para entender a Farroupilha e a cultura gaúcha

LUÍS AUGUSTO FISCHER
especial para a Folha de S.Paulo

Boa parte dos escritores gaúchos se debruçou sobre o tema da Guerra dos Farrapos. A coisa começou com a Sociedade Partenon Literário, agrupamento de convicções republicanas, fundado em 1868, que promoveu a interação dos letrados locais e contou com mulheres em seus quadros desde o início (a Academia Brasileira de Letras, fundada nos últimos anos do século 19, só admitiu mulheres em 1977). Vale ler a antologia organizada por Regina Zilberman e outros, intitulada "O Partenon Literário: Poesia e Prosa" (Instituto Cultural Português, 1980).

Bento Gonçalves
O primeiro grande escritor a tratar do tema foi João Simões Lopes Neto, autor dos geniais "Contos Gauchescos" (a primeira edição é de 1912, mas há várias disponíveis no mercado hoje, como as da Imago, da Globo, da Ediouro e da Martin Claret). Simões Lopes Neto descobriu o caminho das Índias da narrativa de tema rural no Brasil: passou a palavra para um velho e experiente peão de estância, Blau Nunes, que conta as histórias a partir de sua experiência pessoal. Um conto notável é o "Duelo de Farrapos", sobre o duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires, a que Blau assistiu abismado.

Tarcísio Meira interpreta o capitão Rodrigo
Entre todos os relatos, os literários ocupam uma posição central na consolidação da cultura sul-rio-grandense, que, por sua vez, vive muito da experiência da Farroupilha. A obra de leitura mais fluente é, sem dúvida, o relato de Erico Verissimo que se encontra no primeiro volume de sua trilogia "O Tempo e o Vento". Vale a pena ler "O Continente", recém-republicado pela editora Globo (2 vols., R$ 45 cada um), em que se lêem as aventuras de tipos humanos fortes, como Ana Terra, cuja vida transcorre antes da guerra, e o capitão Rodrigo (na foto, interpretado por Tarcísio Meira em série para a TV), espécie de síntese do tipo ideal gaúcho —valente, algo fanfarrão, mulherengo, sedutor com todos e disponível para a guerra (ele luta na Farroupilha).

Divulgação
Outros escritores tematizaram a mesma guerra, antes de Letícia Wierchowski, a autora de "A Casa das Sete Mulheres" (Record, 511 págs., R$ 48). Pelo menos dois merecem leitura atenta: Luiz Antônio de Assis Brasil, que, em seu romance "A Prole do Corvo" (Movimento, 186 págs., R$ 23), organiza um relato anti-épico, com um protagonista que odeia a guerra, mas é obrigado a lutar, e Tabajara Ruas, que, em seu "Os Varões Assinalados" (Mercado Aberto, 543 págs., R$ 43), escreveu o épico realista mais parecido com a narrativa cinematográfica que se possa conceber —só há ação e fala, sem nenhuma introspecção dos personagens, num relato que refaz quase passo a passo os principais movimentos da guerra. (Não por acaso seu livro serviu, e muito, para os autores da minissérie global.) Tabajara Ruas foi também co-diretor, com Beto Sousa, do correto filme "Netto Perde Sua Alma", baseado em romance homônimo de Tabajara (Record, 160 págs., R$ 18), que transpõe para a tela a vida do general que proclamou a República do Piratini.

Como leitura introdutória, de caráter historiográfico, o melhor livro é o de Sandra Pesavento , historiadora e professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, publicado em 1985 (150 anos após o início da revolução) sob o título "A Revolução Farroupilha" (Brasiliense, 80 págs., R$ 12,80). Trata-se de livro bem informado, de texto fluente e focado nos principais episódios, suas causas e seus efeitos.

Há muita bibliografia sobre esse fato histórico. Há volumes de leitura insatisfatória por seu manifesto ufanismo , como "História da República Rio-Grandense" (Sulina, esgotado), de Dante de Laytano —um livro concebido como sucessão de pequenas leituras que foram feitas em rádios do Estado, em 1935, para as comemorações do centenário da revolução. No outro extremo, há livros radicalmente anticelebratórios, como "Bento Gonçalves, o Herói Ladrão" (LGR, esgotado), do historiador Tau Golin, da Universidade de Passo Fundo, passando por "Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos" (Graal, 198 págs., R$ 26,50), do brasilianista Spencer Leitman.

Essa profusão de livros se explica, em grande parte, pela imensa significação que a revolução teve no Rio Grande do Sul . Desde os tempos da propaganda republicana, na década de 1880, aparecem regularmente livros que buscam recontar os feitos heróicos daquela que foi uma guerra perdida, mas, paradoxalmente, prenhe de razões defensáveis. Também se explica pelo surgimento do Movimento Tradicionalista Gaúcho, criado por jovens logo depois da Segunda Guerra Mundial, em 1947. Um deles foi Barbosa Lessa, escritor que deixou obras como "Rio Grande do Sul, Prazer em Conhecê-lo" (Age, 191 págs., R$ 22), espécie de guia afetuoso, apesar de historicamente ingênuo, sobre a formação do Estado.

Para apreciar o tradicionalismo mais de perto, de modo a avaliar seu conservadorismo estético e mesmo político, o qual por sua vez tem o mérito de representar uma forma de resistência local contra a "mcdonaldização" do mundo atual, vale a pena ir ao site do Movimento Tradicionalista Gaúcho: www.mtg.org.br.

Um bom site para entender a Revolução Farroupilha e mesmo a cultura gaúcha em geral é o www.riogrande.com.br, organizado pela jornalista e historiadora Lígia de Azambuja Gomes Carneiro, que faz uma boa síntese dos temas e das leituras existentes.

Mais um livro: o "Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul" , organizado por Rui e Zeno Cardoso Nunes e editado pela Martins Livreiro (552 págs., R$ 45). Vale a pena consultar também o excelente "Porto Alegre: Guia Histórico", de Sérgio da Costa Franco (Editora da UFRGS, 439 págs., R$ 35), pesquisador atento que, ao explicar os nomes das ruas da capital gaúcha, faz verdadeiras súmulas sobre os combates e os personagens da revolução.

A música popular gaúcha não costuma tratar diretamente do mundo farroupilha, que parece de fato restrito ao universo dos livros. Mas há pelo menos um grande compositor popular, dos mais sofisticados, que, ao comentar em suas canções aspectos do modo de ser gauchesco, acaba tocando no assunto. Trata-se de Vítor Ramil, que, em disco de 1984 recentemente relançado em CD, apresenta uma canção em que menciona a loucura do italiano Giuseppe Garibaldi ao levar seus barcos para a guerra pelo meio do campo. Visite o site www.vitorramil.com.br e passeie pela bela obra do compositor e escritor, especialista em recriar um dos gêneros musicais mais populares do sul: a milonga.

Procure ter em mente que a cultura gaúcha de fato se considera um fenômeno mais ou menos à parte no conjunto da cultura brasileira, o que se explica, naturalmente, pelo copioso passado de guerras e pela proximidade com os países do Prata, de onde provinha o grosso da informação cultural que circulava no Sul, muito mais do que do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Por isso, se a cultura gaúcha lhe parece um tanto marcada por traços ufanistas, não estranhe: sua sensação corresponde à verdade. Para ilustrar essa característica mistura de bravata com coragem, vale também tentar ouvir o hino estadual , criado durante a Guerra dos Farrapos e, por estranho que pareça, muito tocado e cantado em toda parte ainda hoje. Em seu estribilho ouvimos: "Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra". Releve, leitor, esse misto de arrogância com auto-suficiência. Isso acontece porque no coração dos gaúchos bate uma experiência histórica notável, a Revolução Farroupilha, que de vez em quando é bastante bem aproveitada, em ficção ou na vida republicana.

Leia mais
  • Caminho das Pedras: Uma república pré-republicana
  • Leia um dos "Contos Gauchescos"

         

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