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25/11/2003 - 02h52

Rubem Alves: O sorteio é mais justo

RUBEM ALVES
colunista da Folha de S.Paulo

Marcelo Zocchio
Terminei meu último artigo com a palavra "continua", para mostrar que ainda restavam estocadas a serem desferidas contra o dragão devorador de inteligências.

Eu fizera uma proposta insólita e aparentemente absurda: de que os vestibulares fossem substituídos por um sorteio. Mostrei que, com o sorteio, os inúteis e caros cursinhos desapareceriam. Mostrei ainda que o sorteio libertaria as escolas de sua escravidão aos padrões de conhecimento impostos pelos vestibulares, ficando então livres para verdadeiramente educar. E, ao final, indiquei que o sorteio quebraria a "opção preferencial pelos ricos" que caracteriza o atual sistema, dando chance aos pobres. Agora, os argumentos finais.

4. Os ricos, vendo que a loteria é cega e ignora a riqueza e vendo que os seus filhos não são sorteados, liberados que estão de todas as despesas que tinham anteriormente com os cursinhos, passariam a dispor desses recursos para criar excelentes universidades particulares, sem que o governo tivesse necessidade de fazer qualquer investimento.

5. Eu sou pai. Meus filhos tiveram de frequentar cursinhos e fazer vestibulares. Sei do sofrimento dos pais. Dói muito ver o filho ser reprovado depois de ter passado um ano miserável estudando como um louco coisas que não fazem sentido e serão esquecidas, tais como: "Calcule o logaritmo neperiano da enésima potência da própria base"; "O fenômeno da trissomia é provocado pela: (a) simples deleção dos cromossomos; (b) não-disjunção das cromátides; (c ) não-reversão que ocorre na diacinese; (d) translocação do cromossomo na mitose"; "Quais os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas?".

Primeiro, vem o sentimento de injustiça, vendo o processo de tortura inútil a que o próprio filho é submetido. Depois vem o sentimento de inveja... "Meu filho entrou em medicina na USP. E o seu? O meu não passou. Terá de fazer cursinho de novo..."

Dostoiévski, se minha memória não falha, comentando sua experiência de prisão, disse que havia imaginado uma maneira de enlouquecer os presos: bastava submetê-los ao trabalho forçado de esvaziar uma piscina levando a água em baldes para uma outra. Depois de cheia a segunda piscina, eles teriam de fazer a mesma coisa com ela: esvaziar para encher a primeira. Infinitamente.

Fazer o cursinho de novo, a mesma coisa... É terrível ver o filho vivendo a maldição de Sísifo... Com o sorteio, o pai, ao ver que o filho ficou de fora mais uma vez, dá-lhe um abraço e diz: "Vamos tomar um chope?".

Estou consciente da objeção que paira no ar: sem o terror dos vestibulares, os ensinos fundamental e médio se deteriorariam, pois seriam apenas "pro-forma", já que o aprendizado seria irrelevante para o ingresso nas universidades. Mas esse é um perigo facilmente evitado.

O término do ensino médio seria marcado por uma exame nacional, preparado e aplicado pelo Ministério da Educação. O objetivo desse exame seria verificar se os alunos haviam atingido o nível mínimo de aprendizagem exigido. Não seria classificatório. Haveria apenas os conceitos "aprovado" e "reprovado". Todos os aprovados teriam atingido o patamar de conhecimento julgado suficiente. Poderiam entrar no sorteio. Os outros não. Tal exame seria, ao mesmo tempo, um instrumento para avaliar a qualidade de ensino nas escolas.

Já foi sugerido que, para evitar o vestibular, o ingresso nas universidades deveria se basear no histórico escolar do aluno. Para mim, isso seria um desastre. Eu não entraria. Como já confessei, fui mau aluno. E afirmo que, com honrosas exceções, os professores que tive não mereciam que eu aprendesse o que eles diziam estar ensinando.

Currículos escolares de que escolas seriam dignos de crédito? De todas? E as burlas? Como impedir que escolas inescrupulosas oferecessem históricos escolares fajutos, com entrada garantida na universidade? Para evitar tal possibilidade, seria necessário criar um clube de escolas de elite, cujos históricos escolares seriam dignos de crédito. Somente os históricos escolares de alunos de tais escolas seriam aceitos. Mas escolas de elite são caras... Só os ricos poderiam pagar. Tal sistema produziria uma brutal discriminação contra os pobres, pior que aquela que atualmente existe. A emenda seria pior que o soneto...

Rubem Alves, 70, é psicanalista e educador. Sobre suas idéias a respeito dos exames vestibulares, recomenda o livro que escreveu para crianças "No País dos Dedos Gordos" (Edições Loyola).
Site: www.rubemalves.com.br

     

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