Folha Online sinapse  
27/01/2004 - 02h52

A filosofia dos objetos

FERNANDO EICHENBERG
free-lance para a Folha de S.Paulo, de Paris

Numa noite, em uma reunião com amigos, um conhecido do professor de filosofia Roger-Pol Droit, 54, lhe indagou, despretensiosamente: "Como vão as coisas?". Em vez de se dissipar como um hábito de boas maneiras, a anódina pergunta permaneceu alojada no pensamento do pensador francês. Droit não sabia do estado das coisas, respondia a si mesmo, decidido a dar uma leitura literal à corriqueira pergunta.

Divulgação
O pensador francês Roger-Pol Droit
Pensador curioso e inquieto, pesquisador do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e cronista do jornal "Le Monde" desde 1972, Droit resolveu tentar compreender a relação do ser humano com os objetos que o circundam, essas "coisas" do cotidiano para as quais o olhar torna-se automático e invisível, sem reflexão. Criou assim um jogo filosófico singular.

Durante um ano, Droit perscrutou objetos comuns para saber o que poderia descobrir de cada um deles. O resultado dessa insólita experiência foi o livro "Dernières Nouvelles des Choses" (Últimas novidades das coisas), em que analisa, de forma criativa, lúdica, poética e filosófica, objetos comuns do nosso dia-a-dia, como o aspirador de pó, a frigideira, a máquina de lavar, o guarda-chuva, o despertador ou os óculos escuros.

Em obra precedente, "101 Experiências de Filosofia Cotidiana" (lançada no Brasil pela Sextante), Droit propunha pequenas tarefas que pudessem deflagrar questionamentos filosóficos. "Agora, foi realizada uma só experiência com cerca de 50 objetos. O ponto comum é o fato de ser algo entre a brincadeira e a seriedade, o divertimento e a reflexão", explicou, ao receber o Sinapse no seu novo apartamento, ainda com suas "coisas" em estado desordenado, sinal da recente mudança.

Com o lançamento, o pensador, que já realizou para a Unesco um estudo sobre ensino de filosofia, justifica sua idéia de que refletir não é algo pesado. "Há uma imagem austera e carregada da filosofia universitária que é preciso mudar. Na escola, o aluno deveria aprender a conduzir sua reflexão, a examinar argumentos, a não se deixar influenciar pela propaganda, a submeter as coisas à critica."

Droit acredita haver idéias nos objetos mais banais, mas só se eles forem encarados de maneira particular. Um molho de chaves tem tudo a ver com o amor, e a máquina de lavar roupas ensina sobre a transmigração das almas (leia explicações no quadro ao lado). "As coisas são objetos feitos pelo homem. Eles falam de nós mesmos, de nossa relação com os outros."

Essa reflexão também representa uma forma de filosofia ao alcance de todos, para Droit. "O jogo que fiz consistiu em deixar vir associações de idéias sobre este ou aquele objeto. E cada um poderá, sobre o mesmo objeto, ter idéias diferentes das minhas."

"Dernières Nouvelles des Choses", editora Odile Jacob, 266 págs., 19,50 euros
O significado dos objetos, segundo Roger-Pol Droit

Clipe
"É um objeto que não observamos e, à primeira vista, desinteressante. Mas ele mantém coisas unidas e evita que elas se dispersem. É um objeto que faz seu trabalho de forma fiel e séria. O clipe, à sua maneira, é um tipo de figura da ética."

Guarda-chuva
"A primeira idéia, evidentemente, é a de que ele serve para nos proteger da chuva. Mas ele protege muito mais do céu do que da água. É um pequeno teto portátil, que nos protege do infinito."

Congelador
"Entre budistas de uma certa região, existe a crença de infernos frios. O congelador tem também um tipo de tráfego misterioso com a vida. Penso nos embriões congelados, na questão de como a vida pode ser detida, conservada pelo frio."

Secretária eletrônica
"Nesse objeto muito simples e útil, as pessoas que falam com você não estão presentes. Escutamos o recado estando presentes e sabendo que o outro que fala está ausente. É um sistema de organização da ausência."

Carrinho de supermercado
"Ele refletiria uma imagem de nosso espírito hoje, uma imagem confusa, na qual tudo está embalado e empilhado desordenadamente. Nós não paramos de receber objetos, informação, mercadorias, publicidade. Depois, despejamos tudo nas caixas registradoras e empacotamos novamente."

Máquina de lavar roupa
"Muitas religiões inventaram mitologias com ciclos: depois da morte, as almas são lavadas, desprovidas de todas as suas memórias e sujeiras e refeitas como novas. Na máquina de lavar, colocamos as roupas sujas e, ao final de um ciclo, recuperamos roupas que não têm mais memória."

Fotocopiadora
"Origina-se da idéia de que tudo se duplica. Estamos num mundo no qual as coisas proliferam, há cada vez mais objetos e instrumentos de destruição, mas que coincidem com o fato de que tudo pode sempre ser duplicado, dobrado. Evidentemente, há um parentesco do sistema da fotocopiadora com a biotecnologia, a clonagem humana."

Porta
"Não sabemos o que há atrás de uma porta. Há esse sentimento de poder mudar de mundo, de universo. Uma porta significa a passagem, o espaço livre, mas a tábua que tapa esse buraco também se chama porta. É possível dizer que a porta é o que impede de passar pela porta."

Chave
"Além de ser um objeto que perdemos com freqüência e que temos dificuldade em localizar, também fala da relação que temos com os outros. Dar suas chaves a alguém e retomá-las é o começo e o fim de todas as histórias amorosas. Pode-se dizer também que amar alguém é abrir portas no outro e deixar o outro abrir certas portas em nós mesmos."

     

Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).