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27/04/2004 - 02h44

Dez passos para conhecer Dorival Caymmi

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Folha de S.Paulo

A biografia por enquanto definitiva do patrono musical da Bahia é "Dorival Caymmi - O Mar e o Tempo" (Editora 34, 632 págs., R$ 75), escrita pela neta Stella, filha de sua filha Nana. Stella agrupa uma documentação impressionante, com dados bibliográficos detalhados, abundantes depoimentos do biografado, raro material fotográfico, discografia, lista completa de gravações de Caymmi por ele próprio e por outros intérpretes, entre outros quindins de iaiá. A guloseima à parte é a mirada familiar da autora, sem por isso se desviar de conflitos ou possíveis lados sombrios de Caymmi.

Dorival Caymmi foi dos primeiros artistas brasileiros a lançar discos "long play" (ou LP), quando o bolachão de vinil ainda era menor que o formato que se tornou padrão a partir dos anos 60 (nos primeiros, cabiam em geral oito músicas). O primeiro, "Canções Praieiras", saiu em 1954 e compilava a melancolia marítima de "O Mar", "Pescaria (Canoeiro)", "A Lenda do Abaeté", "Saudades de Itapuã", "Quem Vem pra Beira do Mar". O segundo, "Sambas de Caymmi", seguiu-o em 1955, centrando-se quase totalmente nos sambas-canção, mais uma ou outra faceirice (como "Vestido de Bolero"). O terceiro, "Eu Vou pra Maracangalha" (1957), privilegiou o nacionalismo festivo e quase infantil de "Maracangalha", "Fiz uma Viagem", "365 Igrejas" e "Roda Pião", além de dupla que viraria a cabeça de João Gilberto, "Samba da Minha Terra" e "Saudade da Bahia".

Em LP grandão, Caymmi estreou com "Caymmi e o Mar" (1957), de capa épica e versões grandiloqüentes de canções de tormenta marinha, como "O Vento", "Noite de Temporal" e a teatral "História de Pescadores", com papéis vocais interpretados por Sylvia Telles e Lenita Bruno. Logo a seguir, em 1958, houve mais um disco histórico: seu encontro musical com o falso baiano (porque era mineiro) que reinventou a Bahia e abriu a comporta para a explosão de Caymmi: Ary Barroso. Caymmi cantava clássicos de Ary, que tocava versões instrumentais dos sambas de Dorival.

Convivendo com a revolução da bossa nova, Caymmi, num primeiro momento, manteve suas convicções e seu pique praieiro. Concebeu dois de seus maiores álbuns, "Caymmi e Seu Violão" (1959) e "Eu Não Tenho Onde Morar" (1960). Em seguida, entrou em processo de adaptação e relações diplomáticas com a bossa. Uniu-se ao maestro Tom Jobim para "Caymmi Visita Tom" (1964), em que, além de tudo, introduzia na música seus três filhos (e futuros cantores e/ou músicos) —Nana, Dori e Danilo. Por fim, casou seu samba fundador com as bossas e afro-sambas de Vinicius de Moraes, no falso ao vivo "Vinicius/Caymmi no Zum Zum" (1965). Os discos com Tom e Vinicius, lançados pelo selo Elenco, foram reeditados em CD pela Universal, no ano passado.

Da associação da idéia de Bahia com os imaginários de Caymmi, na música, e de Jorge Amado, na literatura, surgiu um suspiro a mais de criatividade discográfica. "Caymmi" (1972) voltava de forma vibrante aos temas baianos, num ambiente já de pós-tropicalismo e ancorado em tipos que pareciam pular diretamente das ruas de Salvador (ou das páginas de Amado) para a MPB. São dali "Oração de Mãe Menininha" (que Gal Costa e Maria Bethânia cantariam em um dueto histórico, no show e disco "Phono 73") e "Dona Chica", entre outras regravações. Três anos depois, Gal Costa daria vida musical a "Gabriela" de Jorge Amado (a que Sônia Braga dava vida televisiva, na novela da Globo). O autor da canção-símbolo "Modinha para Gabriela" ("Eu nasci assim/ eu cresci assim/ e sou mesmo assim/ vou ser sempre assim, Gabriela/ sempre Gabriela") era Dorival. A trilha sonora foi reeditada pela Som Livre em CD, em 2001.

Entendendo a liga que sua voz fizera com a musicalidade de Caymmi em "Modinha para Gabriela", Gal Costa lançou em 1976 "Gal Canta Caymmi", o primeiro e mais genial dos tributos ao pai grande. O repertório de carinhos afro-brasileiros e sambas-canção de dor de cotovelo foi um banquete para a voz de Gal e o virtuosismo excepcional de músicos como João Donato, Antonio Adolfo, Roberto Menescal e Dominguinhos. O disco existe em CD Universal.

Você não encontrará avulsos os discos mencionados acima, a não ser nos casos especificados. Em 2000, no entanto, todos os discos Odeon foram reunidos dois a dois numa caixa de sete CDs, pela EMI —isso inclui todos os álbuns solo citados, o inusitado "Caymmi Também É de Rancho" (1973) e dois discos de 1986 e 1987, com toda a família (Dorival, Nana, Dori e Danilo). Preciosidade à parte é uma série de faixas-bônus, muitas das quais extraídas de discos de 78 rpm dos anos 30, 40 e 50. A EMI já havia retirado a caixa "Caymmi Amor e Mar" de circulação, mas a devolveu na onda das comemorações dos 90 anos. Custa R$ 115 no site da Som Livre (www.somlivre.com.br)

A propósito também dos 90 anos, acaba de ser lançado pela Warner o CD "Para Caymmi, de Nana, Dori e Danilo - 90 Anos", em que os três filhos relêem com delicadeza e alto grau emotivo 20 temas do cancioneiro caymmiano.

O mais rigoroso ensaio analítico dedicado a Caymmi pertence ao poeta, antropólogo e escritor baiano Antonio Risério. É "Caymmi - Uma Utopia de Lugar" (Perspectiva, 183 págs., R$ 23).

Por fim, existe um "Cancioneiro da Bahia" (Record, 221 págs., R$ 28) editado em livro de letras e partituras de Caymmi, com prefácio de Jorge Amado, ilustrações de Clóvis Graciano e pequenos textos descritivos e informativos sobre as lendas da Bahia e as canções de seu contista.

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