Folha Online Aqui jaz São Paulo
Aqui jaz São Paulo
02/12/2003

São Paulo sem horizontes

VIRGILIO ABRANCHES
da Equipe de Trainees

Fúria desenvolvimentista no começo do século 20 deixou cidade sem perspectiva; com dinheiro e sem planejamento, capital não soube definir o que queria ser no futuro e foi abandonada em meio ao progresso

"São Paulo não pode parar." O bordão dos anos 40, quase uma ideologia, talvez explique com qual horizonte São Paulo se expandiu: nenhum. A cidade não parou para procurá-lo.

A partir da década de 20, a fúria desenvolvimentista da enriquecida capital não deu espaço para pensar no futuro. Foi importante ter carros, ostentar arranha-céus e expandir o setor industrial. Mas não pareceu importante imaginar como cada carro, arranha-céu ou indústria influiria na cidade.

A professora de filosofia Constança Marcondes Reis, da PUC de Campinas, estudou o assunto. Segundo ela, dar diretrizes para a metrópole, abrindo seu horizonte enquanto ela cresce, é fundamental para que se revertam aos habitantes as benesses do progresso.

"Mas nós temos pouca tradição, pouco senso histórico de preservação. Temos uma perspectiva imediatista da construção, da utilização do espaço", diz.

Desenvolvimento e crescimento não são sinônimos. O segundo muitas vezes resulta do primeiro. O desafio das cidades é equacionar isso com planejamento.

Em São Paulo, a expansão desordenada, sem perspectivas, alterou até o clima da região, segundo Marcondes. "Era muito mais fria, chovia muito mais."

A "terra da garoa" foi apenas uma característica que São Paulo enterrou enquanto cresceu.

Cidade palimpsesto

Especialistas apelidaram a capital paulista de "a cidade palimpsesto", alusão ao pergaminho no qual se raspava o escrito para utilizá-lo novamente. Ao escrever sua história, o município apagou --e ainda apaga-- o seu passado.

O sistema de transporte público, por exemplo, foi suplantado pelo individual --o que restou de coletivo foram preferencialmente os ônibus, que hoje estrangulam o trânsito. São Paulo tinha 600 quilômetros de vias no começo do século passado. Hoje tem 15 mil. A média de crescimento é de 14 novos quilômetros a cada mês.

O patrimônio histórico não foi preservado. Exemplo claro é o vale do Anhangabaú. O projeto urbanístico da praça, do começo do século 20, tinha um conceito europeu. Originalmente era um espaço onde as pessoas que trabalhavam em volta iam passear. Mas o vale passou por intervenções na década de 50 e no final dos anos 80 e início dos 90, quando tomou o aspecto de hoje em que, dificilmente, se pode dizer que é um lugar de passeio. Os ambulantes e a violência proliferaram.

O meio-ambiente também foi desrespeitado. As áreas centrais foram desmatadas no passado e hoje o processo continua na periferia. Entre 1991 e 2000, bairros como Jardim Ângela e Tremembé desmataram, cada um, cerca de 410 hectares de cobertura vegetal, o equivalente a quase 40 estádios do Morumbi.

Os rios, nos quais um dia se pôde pescar e nadar --o Tietê já foi palco de uma tradicional travessia a nado que concorria, em importância, com a corrida internacional de São Silvestre --, viraram depósito de lixo e esgoto.

O que contribuiu para que São Paulo se desenvolvesse foi sepultado pelo desenvolvimento. Uma cidade ingrata com ela própria.

"Provinciana"

Nestor Goulart Reis, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diz que isso ocorreu porque São Paulo era conservadora do ponto de vista político e urbanístico, o que lhe tirou referências de crescimento. "Apesar de a cidade enriquecer, a vida política de São Paulo é muito provinciana. Nota-se pelo distanciamento da administração pública da vida intelectual."

Nos últimos anos, a movimentação da sociedade paulistana pela preservação da cidade dá sinais do que pode ser uma reação. No entanto, o fato de esse processo ser recente e muito pequeno, permite que Reis compare como as elites tratam o patrimônio público das cidades. "No Rio de Janeiro, se querem mexer em algo na região da zona sul, há uma reação imediata. Isso não acontece nos bairros pobres de lá. Em toda São Paulo, o tratamento dado pelos governantes é o mesmo dos bairros pobres do Rio."

Raquel Glezer, professora do departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, também faz a comparação. "Salvador e Rio começaram como cidades reais, com corpo administrativo metropolitano. Não é o caso de São Paulo, que começou a receber funcionários reais em meados do século 18. As estruturas sociais e administrativas são diferentes."

Reis diz que a São Paulo que se destrói, que faz opções erradas porque não pensa no que quer ser no futuro, é fruto de uma mistura da pequena capacidade de reação da população com um pensamento retrógrado da elite. "A classe dominante pensa que tem raízes rurais. Depois de 150 anos, ainda não descobriram que vivem em um país urbano", diz. "Cada um que enriquece vai para o Morumbi e constrói uma casa neocolonial."

Jose Rosael/ Acervo do Museu Paulista - USP



Dois tempos No alto, o quadro "Inundação da Várzea do Carmo", pintura a óleo de Beneditó Calixto feita em 1892, com a São Paulo do final do século 19. A imagem retrata a paisagem, à época, dos fundos do Pátio do Colégio. Acima, o mesmo espaçõ fotografado em 2003. Onde antes estava o merdado municipal hoje há barracas de ambulantes. O córrego Tamanduateí foi canalizado e nao pode mais ser visto

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