Folha Online Aqui jaz São Paulo
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02/12/2003

Hipiramgua: Asfalto e lixo no lugar das várzeas

CAIO JUNQUEIRA LUÍS FERRARI
da Equipe de Trainees

- 1561 Primeiro caso do uso do Tietê para acessar o interior
- 1782 Primeira tentativa de secar a várzea do Carmo
- 1850 Primeiro registro de enchente urbana



O Brasil tem o maior rio do mundo, o Amazonas. Mas é o Ipiranga, um riacho com pouco mais de nove quilômetros, que aparece no primeiro verso do hino nacional. Graças, segundo algumas versões, a um desarranjo intestinal.

Cronistas do século 19 registraram que uma indisposição obrigou d. Pedro 1º a parar junto às margens do Ipiranga, minutos antes de proclamar a independência do Brasil, em 1822.

Mais de 180 anos depois de aceitar a poluição imperial, o córrego recebe diariamente esgoto clandestino. A sujeira é lançada por toda a extensão do riacho, que nasce no parque do Estado --já com coliformes fecais, apesar da Área de Proteção Ambiental-- e deságua no Tamanduateí.

Não bastasse a poluição, as enchentes crônicas são outro problema do córrego. Desde os anos 40, moradores de áreas próximas às avenidas por onde o Ipiranga passa tentam se proteger de inundações com comportas e válvulas.

O fato é que o Ipiranga recebe mais água do que pode suportar, ainda que o número de suas nascentes tenha diminuído de 24 para 20 com a construção da rodovia dos Imigrantes, em 1974. "Na infância, lembro do rio estreito e raso. Jogava uma moeda no leito e a avistava da margem", diz Natal Saliba, 74, historiador do bairro, onde mora desde que nasceu.

O aumento do volume do riacho histórico --e de todos os rios paulistanos-- teve início em 1930, quando as várzeas começaram a ser ocupadas. Coberto, o solo ficou impermeabilizado, e mais água corria para os rios.

A partir da execução do Plano de Avenidas proposto por Prestes Maia --que viria a ser prefeito de São Paulo de 1938 a 1945 e de 1961 a 1965--, a impermeabilização aumentou ainda mais, com a abertura de vias como Nove de Julho, 23 de Maio e Tiradentes --construídas em fundos de vale e sobre os rios Saracura, Itororó e Anhangabaú, respectivamente.

O despejo de lixo doméstico no Ipiranga e nas suas proximidades contribui para as inundações. A sujeira provoca entupimento das galerias pluviais e impede o escoamento das chuvas para o leito.

Para evitar enchentes, o riacho foi redesenhado e canalizado --seis obras nos últimos 60 anos.

Até o trecho que cruza o parque da Independência sofreu com uma intervenção paisagística, a construção de um espelho d'água. Acabou removido, já que provocava inundações ao reter lixo e barro, emporcalhando o local que deveria ressaltar.

Desde 1988, todos os prefeitos fizeram obras para alargar e aprofundar o córrego. Atualmente, a prefeitura trabalha no cruzamento da av. Ricardo Jafet com a r. Coronel Diogo, obra iniciada por Celso Pitta em 2000. Apesar de, há três anos, uma placa indicar 520 dias para a conclusão dos trabalhos, ela segue inacabada.

A situação no Ipiranga é tão grave que ocorrem enchentes mesmo sem chover. Quando o nível do Tamanduateí sobe com chuvas no ABC, uma "parede d'água" se forma no ponto em que deságua o Ipiranga. O córrego é represado e a água transborda do leito.

O Ipiranga entrou na história por acaso e não por acaso sofre com o descaso público. Como outros 3.000 quilômetros de rios e riachos paulistanos que nasceram tortos e agonizam subterrâneos.



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