Folha Online Aqui jaz São Paulo
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02/12/2003

Bonde: Trânsito fora dos trilhos

BRUNO GHETTI
LÍGIA DINIZ

da Equipe de Trainees

- 1900 Os bondes elétricos começam a circular no centro
- 1974 A linha azul do metrô entra em operação
- 1996 Prefeitura implanta rodízio de veículos para amenizar o caos



Rua da Consolação, 1926. O ônibus acelera para chegar antes ao ponto e roubar os passageiros que aguardam. Ultrapassado, o bonde sacode e assusta as pessoas penduradas nas laterais. Por sorte, consegue escapar do acidente.

Os ônibus haviam chegado a São Paulo no ano anterior, de forma irregular, a fim de suprir uma demanda pública não atendida pelos bondes-e, involuntariamente, anarquizando o trânsito. (Qualquer semelhança com as lotações do século 21 não é mera coincidência.)

Na época, a companhia responsável pelo sistema de bondes elétricos, em operação desde 1900, era a canadense Light.

Ameaçada pela concorrência clandestina, a empresa recorreu à prefeitura. Em 1927, apresentou um plano para integrar os dois meios de transporte em troca do monopólio do setor e do aumento das tarifas. O projeto foi rejeitado, e a Light parou de investir na melhoria do sistema.

Era a época da construção de grandes vias, baseada no Plano de Avenidas do engenheiro Francisco Prestes Maia. A diretriz estava claramente estabelecida: o transporte sobre rodas significava o novo e devia ser priorizado.

Os ônibus, afinal, iam aonde nenhum bonde jamais estivera.

O paulistano, é verdade, dedicava enorme carinho ao sistema de trilhos. A cada novo modelo, respondia com um apelido afetivo.

Havia os "camarões" e os "lagostas", vermelhos, além dos "jacarés", que eram verdes, e dos "amarelões". Em 1947, chegou o modelo Centex, que circulava em linhas como Perdizes, avenida Angélica, Vila Clementino e Indianópolis, e logo passou a ser chamado de "Gilda", referência à curvilínea e glamourosa personagem de Rita Hayworth no cinema.

Em seu auge, no final da década de 40, o sistema de bondes atendia cerca de 700 km, com 455 veículos em serviço. Mas linhas como a de Pinheiros, que ligava o centro à rua Teodoro Sampaio, tinham só 19 carros em circulação.

Na década de 30, os ônibus traziam a liberdade da ausência de trilhos, o que possibilitava a criação de itinerários alternativos. Pressionada pela população, que superava o primeiro milhão, a prefeitura encampou, em 1934, o novo sistema e passou a pavimentar cada vez mais ruas.

Esse ciclo do transporte-asfalto permaneceu regulado pelas mãos de ferro da administração municipal até a década de 60 --em 1947, a prefeitura havia fundado a CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), para organizar bondes e ônibus.

A população paulistana, porém, crescia muito mais do que a oferta de condução --1,3 milhão de habitantes, em 1940, contra 3,7 milhões, 20 anos mais tarde.

O sistema público de transportes tornou-se insuficiente. Em 1951, empresas privadas já levavam na ilegalidade mais da metade do número de passageiros dos veículos da CMTC.

Em 1960, a prefeitura capitulou e abriu o mercado. No ano seguinte, os ônibus particulares transportaram 920 milhões de paulistanos, enquanto a CMTC só conduziu 350 milhões.

A cidade já sentia efeitos do boom da indústria automobilística. Aos poucos, o transporte individual atropelava o coletivo, e os carros invadiam as ruas, relata Waldemar Corrêa Stiel, autor de "História dos Transportes Coletivos em São Paulo".

Os lerdos bondes tornaram-se incômodos aos rápidos veículos sobre rodas. Em 1963, as linhas que ligavam o centro a Indianópolis foram desativadas, e a faixa exclusiva na avenida Ibirapuera, convertida em estacionamento.

O charmoso sistema acabou extinto em 1968, sem um veículo de trilhos que o substituísse. Havia a promessa do então prefeito, José Vicente Faria Lima (1965-69), de criar o metrô, mas este só chegaria à cidade dali a seis anos.

Enquanto isso, avenidas e viadutos eram abertos, uma espécie de prenúncio do trânsito caótico que ainda afeta São Paulo.

O engenheiro Adriano Murgel Branco, ex-diretor da CMTC, lembra que os primeiros ônibus inteiramente fabricados no Brasil estampavam como slogan a frase "O Bonde Atrapalha o Trânsito". "Mas era o trânsito que atrapalhava o bonde", lamenta.


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