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Educação
24/06/2005

Íntegra de entrevista: Guiomar Namo De Mello

Guiomar Namo de Mello, 62, é formada em Pedagogia pela USP (1966), fez mestrado e doutorado em educação na PUC/SP (1976 e 1980), e pós doutorado no Institute of Education da London University (de 1991 a 1992). É diretora-executiva da Fundação Victor Civita. Foi professora da rede estadual de São Paulo, professora de Ensino Superior na PUC/SP, professora visitante na Unicamp e na Universidade Federal de São Carlos. Trabalhou como pesquisadora na Fundação Carlos Chagas e foi secretária de educação da prefeitura de São Paulo, de 1982 a 1985, durante a gestão de Mário Covas. Fez o ensino básico no Instituto Educacional Piracicabano (particular, mas com bolsa)

Você listou dez problemas, mas se você tivesse que indicar o problema principal, ou os dois principais problemas?

É muito difícil, né, dez não é pouco, porque infelizmente educação não é uma coisa unidimensional. Tudo que tem mais de uma dimensão não tem uma única solução, nem um único problema. Então eu acho que estes dez e a gente poderia até acrescentar outros são os mais importantes, não sei se daria para você melhorar a educação atuando só em cinco. Se atuando só em cinco não daria, então não são os mais importantes.

Mas a maneira que eles foram colocados, existe alguma hierarquia?

Não, não até porque um está dentro do outro o tempo inteiro, só que você precisa colocar numa ordem seqüencial uma coisa que não é seqüencial, ela é simultânea.

Antes de entrar, ainda numa área muita abstrata, quais soluções a sra. acredita que como política pública devem ser tomadas de maneira mais urgente, para trazer soluções a médio prazo?

Eu diria que em primeiro lugar a formação de professores. Não porque ela sozinha vá resolver, mas como ela demora muito tempo para produzir resultados, tinha que fazer ontem para começar a ter resultados em 2015. Ela tinha que ter começado ontem para a segunda década do século. É uma questão de fundo, que exige não apenas dinheiro, mas priorização, estratégia, visão estratégica e ela exige priorização sobretudo pra gente saber o que a gente tem que fazer primeiro e o que a gente tem que fazer depois, para não querer começar a fazer tudo de uma vez. Então eu vejo que a formação dos professores nas universidades, formação inicial dos professores é talvez o ponto nevrálgico, acompanhado, é óbvio, da formação em serviço desses que tão aí, que vai acontecer de uma forma muito menos organizada que a inicial.

E como a sra. avalia os programas de formação de professores que são postos em prática no Brasil, até especificamente do MEC e do governo do Estado?

Não existe programa de formação de professor do MEC. Toda formação inicial dos professores é feita pelas instituições de ensino. O máximo que o ministério faz é estabelecer regras, normas, diretrizes curriculares e tal; mas a gestão disto não é nem do ministério, nem das secretarias estaduais. Então a formação inicial de professores no Brasil tem tudo a ver com o ensino superior e toda a problemática do ensino superior.

Mas a política que existe na área federal e estadual principalmente de conceder bolsas...

Você está falando de outra coisa. Vamos separar. Tem dois tipos de professor: tem um professor que já está trabalhando e que você dá bolsa, você dá curso. Isso é formação, educação continuada. E tem outro tipo, tão importante quanto esse que é que todo ano um monte de gente faz vestibular para entrar no curso de formação de professores, como vocês fizeram de jornalismo. Ambas são importantes e elas são cruciais e estratégicas, porque quanto pior for a inicial, tanto mais dinheiro você tem que pôr na iniciada. Então hoje, no Brasil, toda ação de formação e capacitação de professores em serviço é enxugar gelo. Essas políticas têm uma eficácia muito relativa porque a formação de base dos professores não é atacada. Se supõe que o professor saiu da faculdade sabendo ler e escrever e contar, história do Brasil, física, química, matemática, tudo que precisa saber depois que você terminou uma faculdade. Isso não é verdade. Isso não é verdade para o caso dos professores como não é verdade para o caso dos jornalistas nem dos administradores de empresa nem dos médicos. Só que no caso dos professores é muito sério, porque aí eles vão reproduzir isso. O pior que pode acontecer com o jornalista é ele escrever uma reportagem errada, pouca gente lê jornal, tudo bem; agora o professor durante 25 anos vai afetar a vida de 30 alunos. Então eu digo enxugar gelo por causa disso, porque é uma coisa que você põe o dinheiro e ele desaparece, põe o dinheiro e ele desaparece. Por que? Aí você vai ensinar ao professor alfabetização --só que o professor não conhece os processos básicos de desenvolvimento cognitivo que fomentam a alfabetização. Aí você começa sobre desenvolvimento cognitivo. Aí você dá um texto de desenvolvimento cognitivo, você chega à conclusão que um professor não sabe ler um texto, para tirar suas idéias centrais. E não é o mal dos professores, é um mal do ensino superior de um modo geral, sobretudo privado, no Brasil. Então nós teríamos que, em curto prazo, primeiro, separar política de formação de professor da problemática do ensino superior comum. Porque aí tem reforma universitária, tem muita coisa rolando no ensino superior. Formação de professores não é só do interesse do ensino superior, formação de professores é do interesse da educação básica. Então o secretário Chalita, o ministro Tarso Genro e o prefeito da repimboca da parafuseta, todos os três estão interessados em formação de professor. Eles vão empregar esses professores, vão pagar salário, vão fazer carreira para eles e estão contando com esses professores para dar um bom ensino para os alunos das escolas que eles mantêm. Eu acho que a gente deveria pegar a questão da formação do professor e fazer essa questão ser partilhada entre ensino superior e educação básica.

Essa formação dos professores, você fala num processo de criação dos Institutos Superiores de Educação. Como seria?

Essa é uma solução, longe de ser a panacéia, quer dizer, não é ela que vai resolver o problema. Mas ela estaria entre as muitas soluções...nós podemos começar a falar de formação de professores aqui e não terminar. Vocês podem fazer um caderno especial só sobre isso, que tem pano para esta manga. A gente pode começar em D. João 6º, que mandou embora os jesuítas que ensinavam a ler e escrever e montou uma universidade. Então, quem ensinava a ler no Brasil? Nobody. Forget it. Se o jesuíta não ensinava o povo a ler e escrever, o povo não aprendia a ler e escrever. Então, essa coisa é muito antiga. Portanto a formação de professores precisava ter uma atenção especial. Ela precisa de uma política de longo prazo, sustentável, do Estado brasileiro. Não pode ficar à mercê dos governos de plantão, das mudanças políticas. E isto é possível, porque, apesar de ela afetar o município, o Estado e a nação ela está, grande parte dela, sob a asa da União, por causa do ensino superior. Quem pode legislar sobre ensino superior é o governo federal.

Agora, não existe um problema prévio, porque não é baixo o índice de professores que tem formação universitária, você também tem um problema...

Mas é exatamente o mesmo problema. Em primeiro lugar, formação universitária não garante qualidade para ninguém. O Brasil, há 50 anos tinha melhores professores que hoje, e hoje você tem muito mais que 50% dos professores com curso superior. Isso não é garantia. Mas, na medida em que você precisa dar curso superior aos professores, é uma oportunidade de dar um bom curso de formação inicial, porque ele é um curso para dar um diploma, e normalmente a gente identifica isso com uma formação inicial e, ao mesmo tempo, ele pode ser um bom curso de educação continuada, porque ele tem que ser destinado àqueles que estão trabalhando e ainda não têm. Já que os novos, você não vai começar a admitir novo sem curso superior, porque não tem sentido. Daqui pra frente não vai se admitir. Quer dizer, legalmente ainda pode. Mas há...a lei foi muito malfeita e muito mal-interpretada, então é uma casa da mãe Joana, mas a gente pode assegurar que a maioria dos secretários estaduais e municipais não querem mais professores que não têm nível superior, e estão certos, porque eles sabem que vai cair nas costas deles ter que financiar a formação de professor de nível superior, entendeu. Quando você pega um professor formado de nível superior no mercado, ele já arcou com o ônus da sua formação. Até porque ele vem da escola privada em 90% dos casos. Escola pública no Brasil não forma professor. Vocês sabem quantos professores tem no Brasil. 2 milhões e 700 mil?

Esse número é excessivo?

Não. São 60 milhões de alunos, nós temos no ensino primário mais que a população da Argentina inteira. São 34 milhões no ensino fundamental, quase 10 milhões no ensino médio, quase 5 milhões de adultos, 4 milhões de universitários e aí você tem necessidades especiais, indígenas, que compõem esse pacote entre os 58 e 60 milhões.

A gente interpretou mal então, porque está escrito na sua apresentação que "há mais professores do que o necessário".

Há, porque é muito mal planejado. Em primeiro lugar, porque em muitos casos você tem um número reduzido de alunos por turma, então você poderia racionalizar muito mais a distribuição dos professores. Em segundo lugar, as áreas. Falta professor de física, de química, de matemática, de biologia e sobra professor de outras áreas, porque não há nenhum incentivo para que os alunos façam curso de química e de física sobretudo para dar aula. Então há professor demais e há professor de menos, dependendo do modo como você olha a questão.

Ainda nessa questão dos professores, a carreira tomou um caminho de não optar por ter um maior salário em troca de outras vantagens, então sempre é levantado como um grande problema da educação a má remuneração dos professores. Você discordaria dessa formulação?

Eu acho que vocês deveriam fazer um levantamento e comparar com o que vocês ganham quando começam a trabalhar numa redação. É o jeito mais fácil que tem, certo? Considerando salário/hora. Porque o professor não trabalha oito horas por dia. Ele trabalha, no máximo, seis. Quer dizer são quatro horas, mais duas de hora atividade quando ele dá etc. Ele tem 45 a 60 dias de férias por ano. Ele se aposenta aos 25 anos. A cada 5 anos, ele tem direito a três meses de licença premium. Além disso, por exemplo, todo professor tem direito a um número X de faltas abonadas por ano. Quem é que abona falta na redação da Folha? Por que você acha que professor tem que se aposentar aos 25 anos e não o cara que trabalha no alto forno da Cosipe? Então, no salário que ele está recebendo todo mês já está embutida a provisão disso tudo. É um problema autuarial, não é um problema político nem ideológico. É uma atividade estável, não tem desemprego, por mais que se reclame eu nunca vi desemprego de professor, nunca vi professor pedindo para dar aula, ao contrário. Eu tenho visto professor ser caçado para dar aula.

A senhora critica que essa estabilidade do professor não lhe dá um incentivo para fazer com que seu trabalho seja mais eficaz, ele vai ganhar a mesma coisa independentemente do resultado do seu trabalho.

Em geral, as carreiras são assim, basta você ter tempo. Era como se você entrasse no jornal e fizesse sempre a mesma coisa. Daqui a vinte anos, você chegaria a diretor de redação.

A sra. acredita que é errado dar essa estabilidade para professores da rede pública?

Eu acho que a estabilidade deveria ser recredenciada e legitimada periodicamente, por exemplo, num exame de qualidade a cada cinco anos. Ou uma avaliação de resultados. Que seria feita pelo rendimento dos alunos. Por teste, como está se fazendo no mundo inteiro. Não é uma boa medida, mas em ciências humanas nunca vai se conseguir uma medida adequada. É como a medida do índice de circulação dos periódicos na área do jornalismo. É uma medida cheia de falhas, mas você sabendo as falhas que ela tem até você sabe como você vai usar. Os alunos estão aprendendo? Se os alunos estão aprendendo, o professor está ensinando. Se os alunos não estão aprendendo, o professor não está ensinando. Ponto. Na verdade, não deveria haver outro critério. Professor, pela lei, está ali para zelar pela aprendizagem do aluno. Ele não está ali para ensinar. A lei não diz que o professor ensina, a lei diz que ele zela pela aprendizagem do aluno.

A estabilidade tem que ser relativizada?

Deveria. Nenhuma carreira se sustenta com um critério totalmente cartorial, de tempo ou de título. Que aí eu vou fazendo cursinho e tirando certificado e não há avaliação de resultado. E todas as outras profissões tem avaliação de resultado. Fez uma matéria que não ficou boa, ele é chamado e tem que corrigir. A gente premia os que são melhores, dá aumento de mérito. Isso não existe no magistério, aliás não existe no funcionalismo público como todo.

Você acha que contribuiria, é uma proposta até do ex-ministro Cristovam Buarque e também do Gustavo Ioschpe, que houvesse uma lei de responsabilidade educacional que motivasse os governantes a fazerem que os professores cumprissem metas?

Mas a lei já existe. Como assim?

Como existe a lei de responsabilidade fiscal que torna inelegível...

Sim, mas aí cada governador pode fazer a sua lei e estabelecer as suas metas. Tem, cada Estado tem o seu plano...eu não sei em que ponto estão essas coisas, mas os planos estaduais e municipais estão aí rolando. Quer dizer, como você faria uma lei que obrigasse num país como este igual? A lei de diretrizes e bases é o máximo que você consegue ir, porque o Brasil é muito grande, o Brasil é um continente, quer dizer, historicamente, isto aqui tem Santa Catarina, que parece a Suécia, e tem o interior do Nordeste que parece a Uganda, é difícil.

Enfim, há necessidade de que se distribuísse de maneira mais clara a diferença das diferentes esferas federativas. Entrando nessa questão, como todos os Estados são diferentes, federalizar a educação básica seria uma solução?

Difícil, como você vai federalizar, ao contrário, o movimento é municipalizar, para que a educação básica fique mais perto, o centro da educação básica fique mais perto. Você já imaginou? A gente não poderia ser uma república. Só se a gente fosse um império. Aí eu concordo. Se a gente puder ser um império, aí sim a gente poderia ter uma educação federal. Não sendo império, nós não temos outra forma senão estabelecer um pacto federativo e descentralizar. E olha, aqui mesmo está escrito que o Fundef já fez o principal caminho. O principal caminho está feito, da municipalização.

Uma opinião do secretário Chalita é que a responsabilidade e as políticas públicas são municipalizadas, mas não os recursos. A sra. concorda com isso?

Olha, eu acho que o papel de todo dirigente é dizer que não tem os recursos descentralizados, então eu acho que vale para todos, desde São Paulo até outros. Agora, o Fundef foi uma maneira de fazer o recurso ir para onde está a criança --porque não adianta descentralizar o recurso, eu tenho que descentralizar de maneira focalizada. É o modo de financiamento mais adequado que a gente já encontrou. A melhorar tem muito, mas os termos da equação estão presentes. O problema é você fazer as contas de chegar, porque não adianta...você sabe quais são as incógnitas e quais são os termos da educação, mas você tem que executar. A equação só se resolve no momento que você executa. Eu acho que nós tivemos um avanço grande com o Fundef, a organização dos Estados e dos municípios no Consed e nas Undimes é uma outra forma de pactuar políticas. Agora, isso tudo é muito lento, isso tudo é muito eivado de interesses políticos. E jamais eles são explicitados. Eu posso dizer isso para você, mas eu não posso provar.

A substituição do Fundef pelo Fundeb é necessária?

Antes de substituir alguma coisa, você tem que saber de onde vai vir o dinheiro. Porque o Fundef está destinado apenas ao ensino fundamental. Fundeb quer destinar recursos para o ensino médio e a educação infantil. A proposta do ministério --você não pode dizer se é boa ou má, você tem que analisar a proposta concretamente-- era duas coisas: a primeira era acabar com a DRU. Vocês conhecem essa historinha? Então, existe uma coisa na legislação brasileira, que é a vinculação de recursos para educação. Dinheiro da educação é manutenção e desenvolvimento do ensino. Durante o governo do FHC foi aprovada uma medida provisória que se chama DRU, desvinculação dos recursos da união, que diz o seguinte: a União pode desvincular o que está vinculado até um total X para efeito de superávit primário, essas coisas aí que eu não entendo totalmente. Quem perdeu muito com isso foi o MEC, porque é onde estão as vinculações mais fortes. Então, de onde o Tarso Genro estava esperando levantar o dinheiro? Primeiro, acabar com aquilo que acabou com a vinculação. Então seria, daonde vem o dinheiro? Essas coisas que eu acho que a imprensa não consegue prestar serviço, ela não consegue explicar para o leitor num modo simples, para ele entender de fato o que se passa. Porque fica parecendo assim: o Tarso Genro quer Fundeb e o ministério [da Fazenda] não quer. E não é isso, não é a Fazenda que não quer. Precisa saber se o país agüenta, porque o PT fez um baita estardalhaço quando foi aprovada a DRU. Só que agora ele não quer acabar com a DRU. O Palocci não aceitou. Então era acabar com a DRU e aumentar a arrecadação. Aumentar a vinculação. O Palocci não aceitou nenhuma das duas, o que o Lula fez? Botou R$ 3,2 bilhões no Fundeb e ia ser pago X por mês, X num ano, X no outro, X no outro. Se você for ver, isso que vai ser pago, já era dinheiro que vinha de qualquer jeit. Então meu caro, tanto faz dar na cabeça como debaixo do chapéu. O Fundeb é uma ficção até hoje. Eu gostaria que tivesse dinheiro para ter um Fundeb, ninguém é contra o Fundeb; mas a verdade é que não tem, e todas as vezes que a gente pensou nisso, a gente pensou na dificuldade que seria, por exemplo, com o caso da educação infantil. Tem equívocos na educação brasileira que são, assim, um desastre do ponto de vista da gestão estratégica de longo prazo. Por exemplo, você considera que educação básica é desde que o neném nasce, de zero anos até o final do ensino médio é educação básica. De repente você diz: todo professor tem que ter nível superior. Isso significa que quem vai trocar fraldinha de neném também tem que ter nível superior. Então tem que ter carreira, tem que ter salário. Quer dizer, em vez de cuidar para que você pudesse ter uma carreira de professor mais enxuta e realmente pagar um pouquinho melhor, você amplia a carreira com o mesmo dinheiro. O que vai acontecer? Se o prefeito agora, em vez de pagar 500 por mês, vai ter que pagar 800 por mês para as creches do município? De onde ele vai tirar o dinheiro? A caixa continua a mesma. Eu por exemplo fui contra que os professores de educação infantil precisassem ter nível superior. Vamos por etapas, vamos primeiro trabalhar na universalização do ensino fundamental, que já está, mas que precisa de dinheiro para melhorar de qualidade. Não adiantou pôr todo mundo na escola, tem que investir. E se houvesse alguma prioridade, deveria ser para cima, deveria ser para o ensino médio. Porque a criança pequena, existem alternativas mais baratas para você cuidar. É ruim, só que não tem dinheiro para cuidar de todo mundo com os padrões da Suécia.
Até porque, eu fui secretária de educação do município, se você faz um convênio para uma pessoa tomar conta das crianças é uma coisa, agora, se você vai construir uma escola do município, tem que ter X metros quadrados por criança. Índice da Organização Mundial da Saúde baseado na Holanda. Tem que ter....a coisa vai num crescente, faz um baita prédio, você inaugura com todos os professores, um bom atendimento. Volta lá cinco anos depois...não tem dinheiro para manter.

Todo problema é que não tem dinheiro novo. Por exemplo, se você sabe que você tem um patrimônio de 10 mil reais, e se você usa 3.000 reais que você nunca usou, não posso dizer que isso é dinheiro novo para você. É dinheiro velho, você só está decidindo onde você quer usar. O PT votou contra o Fundef, mas em 99 apresentou o que seria correto para o partido, que é uma PEC que estende o Fundef para a educação infantil e para o ensino médio. Essa PEC está no Congresso. Quando assumiu o governo, o MEC com Cristovam Buarque falou em retomar a proposta, que era um ponto de honra para um governo petista e tal, mas o Cristovam não apresentou.

Ele disse que tem o projeto na Casa Civil desde 2003 e que o ministro não encaminhou.

Bom, isso eu não sei. O Tarso Genro realizou estudos e concluiu o que todos nós sabemos: para beneficiar a educação infantil e o ensino médio, é preciso mais dinheiro. Não dá para dividir mais o que vai para o Fundef. Após estudos, Tarso saiu com a seguinte solução: acabar com a DRU. Significa voltar a vincular os recursos previstos na Constituição, o que no caso da educação seria 18%. E segundo, aumentar a vinculação dos impostos da união para a educação de 18 para 22,5%. Com isto, daria plenamente. Acontece que o Palocci não quis nem ouvir falar de acabar com a DRU e muito menos de aumentar os recursos supostamente vinculados. Ou seja, a proposta do MEC foi derrotada, embora eles vão continuar afirmando que foi uma vitória e a imprensa faz essa divulgação. Como prêmio de consolação, Lula decidiu aprovar R$ 4,3 bilhões para o novo Fundeb, tão logo ele seja aprovado pelo Congresso. De onde virão os R$ 4,3 bilhões se não vai haver dinheiro novo?

Eu não entendi porque o MEC afirmou que foi uma vitória...

Por causa dos R$ 4,3 bilhões. O que saiu foram os R$ 4,3 bilhões. E como tudo que sai na imprensa no Brasil é verdade, virou verdade. De onde vai vir esse dinheiro? Ele seria distribuído em parcelas até integralizar os 4,3 bi prevendo para 2006 uma parcela de R$ 1,9 bilhão. O governo federal põe seus recursos próprios de educação de várias fontes e para vários tipos de custos. Essa discussão é difícil porque é difícil saber. O governo usa como sendo dinheiro da educação. E a sociedade não tem mecanismos para acompanhar a execução orçamentária como deveria. Porque se a gente pudesse acompanhar a execução orçamentária, a gente saberia que R$ 1 bilhão que está indo para a merenda não é da educação, é da seguridade social. Não pode contabilizar como educaçao. 1 bi para a merenda, que é da seguridade social, mas vira e mexe alguém quer debitar na conta dos recursos vinculados da educação. E isto aconteceu com o Delfim [Neto], aconteceu desde que vocês nasceram, e eu já discuti com tudo que foi ministro, sempre acontece. Com o Fernando, com tudo. É um vício da Fazenda, querer enfiar na educação aquilo que não é da educação; e é um problema dos educadores saberem como se executa esse orçamento, por exemplo. Se a imprensa não sabe, se a sociedade não sabe, pelo menos que os educadores tivessem meios. R$ 470 milhões vão para o programa de apoio à Educação de Jovens e Adultos. R$ 430 milhões vai para o programa federal de apoio ao Ensino Médio, que é a contrapartida do Brasil para o empréstimo do BID no Ensino Médio. Dinheiro da cota federal do salário educação que vai para o transporte escolar, construções etc. Quer dizer, todos esses programas são até de antes de FHC, não é que são do tempo de FHC. São programas que já existem. Portanto, é dinheiro velho! Todos os que já são experientes nesses assuntos afirmam que o Brasil vai incluir tudo que já existe em dinheiro velho no montante, este percentual apresentado como novo. Todos concordam também que essa discussão no Congresso será bem complicada, porque há muitos interesses em jogo e a maioria dos parlamentares não domina o assunto. Há várias informações complementares como a PEC do PSDB que contrapõe Fundeb com a proposta de três fundos separados. Essa é uma outra emenda que corre. Tem uma PEC da senadora Heloísa Helena que torna obrigatória a educação infantil da creche à pré-escola, como se não bastasse você colocar que a creche e a pré-escola são da educação básica e portanto elas têm que ter tudo que a educação básica tem, ainda a Heloísa Helena quer tornar obrigatória a creche. Daqui a 50 anos, se a gente estivesse num Estado socialista, a gente ia ver como eu vi na URSS: todas as creches vazias. Cadê as crianças? As mães não querem. As mães querem amamentar e tomar conta das crianças em casa -- durma com um barulho desses.

Guiomar, eu queria só entender se com esse dinheiro velho que vai ser colocado no Fundeb, se ele ao invés de ser um avanço pode acabar sendo um retrocesso em relação ao Fundef?

O que é importante no caso do Fundeb é preservar o dinheiro do ensino fundamental. O que tem que ir pra educação infantil e pro ensino médio tem que ser essas coisas que vão sendo tiradas daqui, dali e tal. Porque se a gente colocar tudo no mesmo saco, nós vamos perder o que a gente já ganhou no ensino fundamental. Eu acho isto muito preocupante. Porque o ensino fundamental precisa de um investimento pesado na melhoria da qualidade. E melhoria de qualidade é caro. Educação é caro. Caro. Os EUA gastam US$ 6 mil por ano por aluno. Não digo que a gente vá gastar isso, nunca chegaremos a isso, até porque lá tem custos que são um absurdo. A educação americana tem um monte dos vícios que têm a educação brasileira. Mas a gente teria que estar chegando a algo perto de US$ 1000 por ano, para que a gente pudesse ter um mínimo de qualidade. Hoje nós não temos 500.

A sra. critica nessa apresentação uma desproporção nos investimentos no ensino superior comparados com a educação básica.

Não é só investimento, investimento também; o coração do Brasil é do ensino superior. Porque só aparece o que é da elite e a elite toda fez curso. Na própria imprensa. Reforma universitária é página nacional. Caiu a escola de primeiro grau fica lá na editoria de cidades, manda um foquinha, o mesmo que cobre o buraco da rua. Por quê? Porque jornalista tem curso superior, só isso. E os filhos dos jornalistas não tão nessa escola que cai.

O Gabriel Chalita concorda com isso, ele diz que se investe 14 vezes mais com ensino superior e ele apontou que na Coréia são 2,5 e na Espanha 2 vezes mais.

E a coisa é mais trágica se você fizer a seguinte conta: quantos estão na educação básica e quantos estão no ensino superior. Quanto vai para o ensino superior e quanto vai para a educação básica no total, somando tudo, Estado, município, inclusive iniciativa privada, pode contar aí até a mensalidade das escolas privadas, não têm problema. Você vai ver que uma porção ínfima da população se apropria de uma fatia muito maior, proporcionalmente, do que a grande maioria. Eu acho isso uma situação injusta, eu acho que isso é uma questão da cultura da elite brasileira, que sempre foi predatória, e que nunca quis saber do pobre. Você não sabe como é difícil botar pobre na escola nesse país. Você só encontra dificuldade. Escola para pobre é um horror. Este país é um país feito para a elite. Vai ver o estacionamento da USP. Dá um pulo lá na Politécnica, na História, na Geografia...não tem um lugar para estacionar, tudo de graça. Quem paga escola superior nesse país? Pobre.

Vai fugir completamente, mas a sra. acha que seria cabível para cobrar ensino superior..O Ioschpe cita como medidas cobrar mensalidade nas universidades públicas e acabar com a dedução nas escolas privadas, pois isso empurraria uma certa fatia da população para a escola privada e essa fatia luta pelas melhorias.

Eu acho que essa pode ser uma luz no fim do túnel que não é uma saída, mas é uma locomotiva em sentido contrário. Para você cobrar do aluno do ensino superior o que realmente corresponde ao custo dele é uma exorbitância, você não consegue. Então você teria que cobrar do aluno do ensino superior um custo que descontasse, para que este pobre aluno também do ensino superior, não é porque ele entrou no ensino superior público que ele vai ter que pagar a conta que começou com D. Pedro, com D. João 6º, tá certo. Por que o que você tá pagando no custo aluno? Você está pagando um corpo docente, que se aposenta aos 25 anos e que recebe salário integral. Por que a própria USP está em crise? Porque, daqui a pouco, os aposentados vão ser uma folha maior que os ativos. Como é que você investe em qualidade? Como é que você manda o aluno fazer mestrado no exterior? Como é que você investe em tecnologia? Porque esse é o papel da universidade. Então, o aluno teria que pagar aquilo que fosse melhoria de qualidade. Eu fui a semana passada dar uma aula à noite na USP. O mesmo lugar onde eu estudei. Além de estar igual, está pior. Não tem bebedouro, os bebedouros estão todos quebrados. Como é que pode uma coisa dessas? A melhor universidade da América Latina não tem um lugar para o pobre aluno beber um copo d'água, quanto mais um café. É isto que se pode chamar de uma universidade? Isso é coisa que onera o custo do aluno e não volta para o aluno. Porque quando você paga, você exige o serviço. Quer um bebedouro em ordem, quer um banheiro decente, quer uma lanchonete boa funcionando, uma máquina de fazer café expresso. A impressão que dá é que há um descaso pelo aluno, também dentro da universidade pública. Eu concordo que dê para pagar universidade pública, descontadas as coisas que são culpa do Estado mesmo. Quem pariu Mateus que o embale. A folha de aposentados é muito pesada? Não vem contar com o aposentado para cobrir a aposentadoria. Quer dizer, quem inventou esta aposentadoria que pague. Ou então deixa a Previdência estourar.

O aluno, para pagar universidade pública, concordo, para investir em biblioteca, melhorar a infra-estrutura informática, mandar professor para fazer curso no exterior porque depois isso resulta num benefício para o aluno. Mas não para sustentar um corpo docente que dá 6 horas de aula por semana e ganha 40. E nunca ganhou prêmio Nobel. Que porra de pesquisa é esta? Agora, esse país miserável do jeito que é pode pagar 34 horas de um professor de dedicação explosiva, numa pesquisa que nunca ninguém cobrou, ninguém sabe de onde vem, para onde vai, o que se faz com o resultado, quem se beneficia disso...concordo inteiramente com o Chalita. Em gênero, número e grau.

A sra. acha que há necessidade, para que se separasse o foco de uma coisa e outra, que se criasse o Ministério da Educação Básica para mudar o foco da discussão, como sugere o ex-ministro Cristovam Buarque?

Olha, eu posso estar errada, mas isto é uma visão de império, gente! Isto aqui não é um império. O MEC não gerencia educação básica. O que adianta eu ter um ministério da educação básica, se o ministério não tem escola? A educação básica está na mão dos Estados e municípios. O que você precisa ter é um ministério que exerça o papel estratégico de monitorar, de avaliar, de prover assistência técnica e de compensar diferenças. Aí sim, aí é outra coisa. Digamos que o governo dissesse: olha, o Piauí é um Estado pobre demais, nós estamos dando compensação para que eles possam alcançar o mínimo para ter um pouco de igualdade com o Sudeste, o Sul etc. mas em compensação este dinheiro federal vai condicionado a dois pontos: isto, isto, isto, isto, isto e isto. Aí sim, o MEC, na minha opinião, pode fazer este papel. Há uma questão estratégica que começou a existir no Brasil com Paulo Renato. E que infelizmente este ministério ainda não conseguiu armar. Eu digo infelizmente porque eu não torço contra. Eu acho que a educação padece com isto independentemente do partido que esteja no governo. Porque o Paulo Renato, bem ou mal, conseguiu uma presença nacional. O que ele fez? Paulo Renato não gerenciava a escola, mas ele lançou um enorme programa de capacitação e serviço de professores, financiado com dinheiro do governo nacional. Isso é uma coisa que o ministério pode fazer. Eu diria que se o ministério cumprisse a obrigação de garantir qualidade na formação do ensino superior de professores, ele já teria contribuído muito.Porque não adianta ter um Ministério da Educação Básica, você pode ter um império, você pode ter um negócio que nem aquele do "Star Wars", se na hora que o professor fecha a porta da sala de aula, ele não tiver primeiro capacidade, segundo vontade, de fazer um trabalho sério, não há ministério que resolve. A não ser que você resolva ser stalinista e você diga, como na URSS: às 10 h todo mundo vai estar lendo esta página do livro, aí tudo bem.

Entrando nessa questão quase micro, a sra. critica o sistema de repetência. A sra. é a favor da progressão continuada?

Eu sou inteiramente a favor. Inteiramente. Em tese, as coisas são feitas imperfeitamente como imperfeitos são os seres humanos que as fazem. A idéia é boa, os defeitos que ela teve na minha opinião precisam ser corrigidos, quaisquer que tenham sido, mas você não pode jogar a criança com a água do banho. Não tem outra solução para essa situação do Brasil. Os defeitos que eu posso apontar, como eu não estou no dia-a-dia da sala de aula, eu sei os defeitos que as pessoas me contam. São todos defeitos que, na minha opinião, são menos graves. Que foi imposta autoritariamente, tudo bem, então vamos voltar, fazer uma discussão democrática, não tem outro jeito. Democracia é sacrificada, é demorada para caramba. Agora, não vamos retroceder, enquanto nós estamos discutindo a democracia, deixa as crianças passarem. As pobres das crianças vão ter que repetir só porque nós não acertamos as nossas diferenças democráticas? Pelo amor de Deus! O pior que pode acontecer com uma criança é repetir de ano. É pior que não aprender. É pior. Na Inglaterra, nunca consegui convencer...até hoje tem um grupo lá na Inglaterra que não acredita que uma criança reprova em geografia num ano, repete tudo e no ano seguinte ela passa em geografia e fica em matemática. Os ingleses nunca conseguiram entender a lógica disso. Incrível que a família no Brasil, a imprensa não abre a boca para uma coisa dessa. Imagine se você tem um filho que perde um ano porque reprovou em matemática e no ano seguinte ele perde um ano porque reprovou em língua portuguesa. Ponha-se na pele. Você não vai na escola perguntar: se ele só reprovou em matemática, porque ele fez de novo língua portuguesa e agora ele passou em matemática e não passou em língua portuguesa? O que vocês estão fazendo com esse meu filho aqui? Sabe, que raio de trabalho é esse? Você vê em medicina muita gente morrendo por descuido médico, mas dá muito mais ibope você falar do médico que errou do que você falar do professor que errou. Porque esse professor errou, a escola errou. Mas pergunta nas suas relações se caiu a moeda de alguém que esse sistema de promoção, não é que ele é injusto, ele é ilógico! Não tem sentido!

Uma tecla que a sra. bate muito é o papel da imprensa, que informa errado. Os problemas na realidade são maiores, ou menores que o noticiado, são outros problemas?

Primeiro, acho que a imprensa no Brasil não quer ter muito trabalho. Não quer triturar um problema antes de falar com a fonte, prefere que a fonte dê dado. A imprensa no Brasil gosta de citar entre aspas. Na minha opinião, a imprensa não deve citar entre aspas -- a imprensa ouve e escreve do jeito que o leitor entende. Não preciso legitimar o meu texto a cada parágrafo com "afirmou a professora doutora Guiomar Namo de Mello, diretora da Fundação Victor Civita". Você falou comigo, você formou um senso comum sobre o seu tema. Isso é uma questão. Trabalho. Horas b. Horas bunda na cadeira na frente do computador, trabalhando, pesquisando, lendo dados. Segundo: a imprensa precisa de mais treino, em alguns casos. Financiamento de educação é uma matéria complexa. Teria que ter alguém que se especializasse por gosto ou por obrigação, passasse a entender melhor disso e que na redação fosse responsável a olhar tudo que saísse sobre financiamento de educação. Isso de dinheiro novo, dinheiro velho tem a ver com execução orçamentária, tem a ver com leis que ocorreram antes de vocês terem nascido. Então alguém tem que ter a história disto. Comigo aconteceu um negócio desses aqui outro dia, no site. Abro o site e vejo lá: 20 mil escolas no Brasil não têm banheiro. Puta manchete, né. Aí chamei o menino e falei: escuta, quantos por cento da matrícula representa isto? Não sei. Então você vai fazer conta. E levantou, no dia seguinte eu perguntei: quantos por cento da matrícula, ele falou 4% da matrícula. Então você troca essa manchete para 4% dos alunos brasileiros estudam numa escola que não tem banheiro. E não muda? É uma coisa tão simples quanto isso. De lógica, de ler o dado e de transformar o dado. Tudo bem que você quer uma manchete. Mas você não pode, em benefício de uma manchete, martelar a realidade. Você não pode dar uma paulada na cabeça da realidade só porque você precisa de uma manchete. E são coisas desse tipo que vão contribuíndo para tornar a educação, primeiro, uma coisa chata. Educação, essa história é conversa de cricri, de criança e criada, de instituto de beleza. Contribui para tornar a educação uma coisa opaca, pouco transparente para a população. Você imagine se todos os jornais desse país resolvessem dar para este tipo de reprovação o destaque que eles deram para o Roberto Jefferson, ou o destaque que eles estão dando para a abertura da Daslu. Você viu, a Folha hoje saiu em todas as páginas. Por que as agências de publicidade nunca foram chamadas atenção disso? Porque entre elas e o veículo não existe também nenhuma clareza sobre a questão da educação. Aqui a gente vê isso todo dia. Outro dia veio aqui um pessoal de um remédio de marcar piolho para fazer um concurso. Eu falei, tudo bem, a gente pode fazer um concurso, mas o professor nesse país é muito reativo. Ele é muito sensível, se eu peço para ele um concurso de redação, eu tenho 600 mil exemplares, eu não garanto quanto vai chegar. Chegaram 28 mil redações, os caras quase enlouqueceram para corrigir redação. E 28 mil em educação não é nada, eu achei um índice de retorno baixíssimo. A agência não tinha noção do tamanho das coisas. Eu toda vez que vou fazer palestra em educação começo com os números. Pode não ter nada a ver com número, mas isso aqui é aquele mapa que você põe no deserto do Saara com aquele pontinho: você está aqui. Só para você se localizar. Vamos ver qual é o tamanho dessa encrenca para a gente não ficar achando que qualquer solução é solução, é panacéia. Então, a questão da imprensa é séria, a imprensa tem que estudar mais, a imprensa tem que estudar mais objeto, mas tem que ter mais acuidade na interpretação de dados, na interpretação de afirmações etc. e eu acho que a imprensa tinha que ter olho para transformar aquilo que não é importante em importante. Dar a devida importância, quer dizer. Quando eu era secretária, a gente teve epidemia de hepatite em uma escola. Tinha 750 alunos e tivemos oito casos graves, quase 70 alunos com problema.
E desinfetamos caixa d'água, colocamos copo descartável, guardanapo e o problema estava sob controle, mas cansei de levantar 6h para falar no "Bom Dia São Paulo" sobre hepatite. Até um dia à noite o menino me ligou tarde. E eu falei: tem uma doença que vai atacar mais de 100 mil crianças da cidade no final desse ano. O fracasso escolar, a repetência. Mas isso não é notícia. Então, é mais notícia a epidemia de hepatite de uma escola do que o fracasso de 100 mil crianças. Eu concordo que o episódico, a imprensa precisa disso. Toda vez que a gente reclama disso com o Roberto Civita, ele diz: mas isso é assim , não tem jeito, a imprensa precisa disso. Mas será que não tem um jeito de tornar o que não parece importante importante? Quer dizer, o que é mais importante? E por que não dar destaque para a educação básica do jeito que você dá para o ensino superior?Isso é triste.

Guiomar, a sra. comentou quando era secretária que a construção de escolas obedecia parâmetros internacionais e eu pensei no CEU e eu vou ter que fazer a pergunta. A sra. acha que é uma política pública sustentável?

Não, eu acho que o CEU é mais um ingrediente da nossa sopa de letrinhas. Faz tempo que começou a nossa sopa de letrinhas. Começou com os Cieps nos Rios de Janeiro nos anos 80, depois passou a ser Ciacs, depois passou a ser Caics. No meio disso, aqui em São Paulo, teve o Profic, que era do mesmo que é secretário hoje. E depois o CEU, que é sopa de letrinhas, não resolve o problema. Você quer ver os mitos que nós temos em educação? Faz uma conta: você tem uma criança que tem 4 horas de aula por dia durante 800 dias. Agora se você tiver todas essas crianças em 5 horas por dia? Aí você multiplica isto por 8, os dois, em oito anos. 32.000 horas. Agora você pega 9 anos em 4 horas por dia. Dá menos do que você dar uma hora a mais. E todo mundo está aumentando em um ano o ensino fundamental. Quando você poderia dar mais tempo aumentando em uma hora a permanência na escola. Em vez de eu ter as crianças 8 anos em 4 horas, eu tenho as crianças 8 anos em 5 horas por dia. Eu tenho mais tempo de trabalho escolar total do que se eu tiver as crianças 9 anos 4 horas por dia. E custa muito mais. Sobrecarrega o colégio. Porque eu coloco dentro do Fundef uma geração escolar a mais. Eu poderia ter o mesmo resultado se eu tornasse obrigatório o último ano da pré-escola, sem precisar aumentar um ano do ensino fundamental. Tem muitos jeitos de eu fazer. A criança fica na escola, se eu contar desde que nasce, ela fica na escola 17 anos seguidos. Esses 17 anos eu posso dividir como eu quiser. Se eu não conseguir ensinar tudo que eu tenho que ensinar em 17 anos, eu estou perdida. Agora, pode ser que eu consiga ensinar a maioria das coisas nos últimos quatro, e que eu tenha que ir muito devagar antes. Depende. Eu, gestor, tenho que tomar minha decisão estratégica. Certo? O que eu quero priorizar. Então eu posso dizer: não, na educação infantil, até o último ano, eu vou fazer uma coisa mais barata. E no último ano, eu vou investir para começar o processo de alfabetização e mais oito de ensino fundamental. Então eu terei nove anos de um trabalho escolar regular, sistemático etc. E depois, o ensino médio. E o ensino médio eu não vou fazer obrigatório, a maioria do pessoal com ensino fundamental pode trabalhar e ganhar algum, então outras coisas. Mas nós queremos tudo. A África do Sul também foi assim. O dia que acabou o apartheid, não é que os brancos passaram a ter escola pior, não, os negros queriam ter as escolas iguaizinhas às dos brancos. Todas de mármore com coisas enfeitadas em dourado. Resultado? Para ninguém. Agora são processos políticos, que às vezes é difícil. Eu estou impaciente, já. É muito tempo enxugando gelo. A minha paciência histórica tende a diminuir com o tempo.

De maneira bem rasa, você vê possibilidade de solução de uma educação pública no Brasil de qualidade num médio prazo?

Eu vejo. Acho que até os próximos 15, 20 anos a gente vai conseguir. Porque tem muita coisa boa acontecendo, muita escola, tem muita capacidade sendo construída. Quando eu digo capacidade, assim, houve época que praticamente a gente não tinha proposta pedagógica consistente fora do ensino particular. Escola pública tava...hoje a gente tem, a gente tem o Fundef, que é uma conquista importante. Se houver o Fundeb com recursos, tanto melhor. Eu acho que a gente tem uma legislação, a gente já tem normas. Eu vejo assim, pode ser que seja excesso de otimismo, wishful thinking, eu acho a educação brasileira está no grid de largada. Até chegar no grid largada tem muito trabalho. Mas você não vê nada, porque a corrida nem começou. Teve o trabalho do carro, de ajustar o carro. Um monte de coisa boa, um monte de coisa ruim. Mas ele desperta um debate na sociedade americana que não acontece aqui. Olhar um pouco como a empresa americana cobre educação, é outra coisa interessante. É admirável a cobertura que o jornalismo americano dá para educação, é muito interessante, vale a pena ver. Eu acho que assim se forma um jornalista de educação -- tem que ser altamente interessado no assunto. É um assunto altamente complexo, que toma tempo. Não vejo como alguém pode dar conta de educação, cidades, sabe vai fazer tudo ruim, tudo malfeito. Pega um texto de educação e pega um texto de um Nassif, de um outro economista aí, você vai ver essa diferença. Pode ter na educação, na saúde, em tudo mais, textos de fôlego, um pouco mais analíticos, um pouco menos mancheteiros, um pouco menos focados no episódico, no pontual, mais preocupados com a tendência com a coisa geral.

Guiomar, a sra. é a favor de políticas de ação afirmativa para alunos do ensino público?

Não concordo, porque acho que não é por aí, você teria é que abrir o acesso do ensino superior, tanto privado quanto público para todos os alunos, e ao mesmo tempo melhorando a qualidade pelo menos do ensino médio. Agora, o ensino superior no Brasil é muito problemático, ele é pouquíssimo diversificado. Você não precisa que todo mundo entre no curso de engenharia. Entre engenharia e trocentos cursos tecnológicos tem muita coisa. E a maioria dos cursos não precisa de preparação de cinco anos. Quando a gente fala isso pros advogados, só falta eles te mandarem para o inferno. Mas para bater minuta, petição, para dar entrada no fórum, não precisa fazer cinco anos de curso. Você pode fazer três, começar a trabalhar num escritório de advocacia, aprender, depois voltar. Você já volta incorporando uma experiência. A lei brasileira dá toda saída para fazer isso. Os advogados ficam indignadíssimos, mas eu votei a favor de diminuir a duração do curso de direito no Conselho Nacional de Educação. Esse ensino superior bolorento, encardido, não tem condições de preparar um jovem para viver no mundo de hoje. Você não precisa de cotas, precisa de diversidade de ofertas. Curso de direito de três anos, que dá acesso a isso. Não pode, por exemplo, fazer criminalística, mas pode fazer outra coisa. Olha hoje, tem moda, tem gastronomia, tem cuidados pessoais, estética. Tudo isso são profissões que surgiram nos últimos...agora que existe. E a gente tem uma estrutura universitária que não consegue absorver isso, ela não tem nenhuma agilidade. O único que tem alguma agilidade é o privado, não é que faça direito. E acho que em vez de fazer cota, o que você devia era subsidiar a demanda. Não adianta mexer na oferta. Em educação é quase uma lei. A oferta em educação fica sempre engessada se você não mexer na demanda. Em vez de você ficar dizendo que a USP vai abrir 30% de vagas para negros, dar prioridade para negro ter bolsa para estudar. É uma ação afirmativa, mas é muito melhor. Negro e pobre tem prioridade. O melhor é que o aluno possa escolher onde ele quer estudar. Eu quero estudar na Oswaldo Cruz, eu vou, eu tenho bolsa. Ah, a Oswaldo Cruz é uma escola muito ruim? É? Não diga. E o que faz o MEC que não toma providência para que a escola seja boa. O MEC desconfia daquilo que ele é o legitimador, veja que interessante. O ensino particular superior no Brasil vive às custas do público no sentido de que é um acordo de cavalheiros --o público cada vez menos. Eu fui deputada estadual. Para ter curso noturno na Unicamp, a gente teve que votar. Já viu ter que pôr na Constituição do Estado que universidade pública tem que ter vaga à noite? Em vez de você fazer isso, vai lá na Oswaldo Cruz e diz: meu senhor, essa escola é muito ruim, agora se o senhor melhorar a qualidade, eu dou bolsa para os alunos estudarem aqui. Vai ficar assim ó. E o cara da iniciativa privada vai correndo melhorar. Tanto que o próprio Provão, que não tinha esse objetivo, já foi uma melhoria grande no ensino privado. Uma vez um repórter me disse no "Roda Viva": a gente vai fazer uma festa num dia que o ministro fechar uma escola. Eu não, vou fazer uma festa no dia em que a gente fechar uma cadeia, ou uma unidade da Febem. O ministro não é para fechar escola, o ministro é para obrigar a escola a ser boa. Ele tem mecanismos. Fiscaliza e não dá bolsa para esta escola. Aí se o aluno quiser fazer uma escola ruim, aí é um problema dele. Criar um ISO 9000 da educação. Esta escola tem o selo do MEC; ela é uma boa escola, uma escola de qualidade, aqui você pode entrar com a bolsa que o MEC te paga que você é aceito. Nessa escola o MEC subsidia os seus estudos. Eu tenho falado isso há tanto tempo porque eu acho que até gastou, ninguém nem escuta. E o próprio pessoal do ensino privado parece que não tem interesse. Agora, você vê, por exemplo, formação de professores. Tem 700 mil professores, parece, que não têm ensino superior. Com a nossa capacidade instalada, só para os que estão em serviço, a gente demoraria 80 anos. Alguma coisa tem que fazer. Ensino a distância, ensino de massa.
Minha amiga da USP tem um medo desses cursos que ficam proliferando por aí. Mas, meu amor, onde é que eles vão estudar? A USP não recebe, você tem medo dos cursos? Eu não tenho, eu tenho medo de gente que entra na cadeia, eu tenho medo de danceteria que distribui droga, de escola eu não tenho. É ruim a qualidade? Bom, tem outra? Afinal de contas essa escola vive do fato que a USP não abre vaga. Quem entra nessa escola é gente que não consegue vaga no ensino público. Ou você acha que pobre tem vocação masoquista e vai fazer escola privada só porque quer?
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