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Educação
24/06/2005

Íntegra de entrevista: Maria Alice Setúbal

É diretora-presidente da ONG Cen­pec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitá­ria). Estudou em escola particular.

Quais são os principais problemas do ensino básico brasileiro?

Por um lado, todos os problemas são prioridades e temos muito o que fazer. Mas o principal, sem dúvida, é caminhar para a melhoria da qualidade do ensino. A universalização do ensino ainda não é total, mas está bem próxima. Então, o principal é trabalhar a qualidade, que vai desde questões relativas à estrutura física da escola --condições básicas de carteiras, giz, biblioteca, computadores--, que nem sempre são óbvias no Brasil. E os professores também: em disciplinas como matemática, ciência e física, muitas vezes não há professores específicos. Eles devem ser bem capacitados e bem remunerados.

Quais são as soluções mais urgentes e viáveis a serem tomadas?

Conseguir resolver essas questões - desde estrutura física até a formação de professores.

Com relação à capacitação de professores e considerando a experiência do Cenpec nessa área, quais as principais deficiências observadas e as maneiras adequadas de trabalhá-las?

Varia muito. Eu diria que não há uma reposta para todo o Brasil. Em São Paulo, sem dúvida, há um índice maior de professores com formação universitária. Em outros Estados, a defasagem é ainda maior. Em alguns lugares, a formação básica do professor ainda é um empecilho, são os chamados professores leigos, que dão aulas da 1ª à 4ª série do ensino fundamental. A primeira questão, então, é a formação universitária.

A segunda é uma constante atualização do professor; deve haver uma formação continuada. Uma questão muito difícil para o professor é trabalhar a diversidade dos alunos. Em uma sala há alunos de diferentes cidades, com distorções de idade-série, com diferentes graus de conhecimento --mesmo entre os mais pobres--, que imigraram de diferentes regiões do país e, claro, com diferentes ritmos de aprendizagem. Saber trabalhar com a questão da diversidade é fundamental e o professor geralmente não sabe. Uma formação continuada que dê conta de uma atualização do próprio conhecimento e que prepara o professor para trabalhar com a realidade específica desse local é fundamental.

Algumas pessoas criticaram como a estabilidade própria do cargo público de professor pode prejudicar uma maior eficiência. A senhora acha que essa estabilidade deve ser relativizada? Há outro jeito de estruturar a carreira?

Eu não entraria na questão da estabilidade, que é muito mais ampla e remete ao funcionalismo público de forma geral. Mas dentro dessa estabilidade e dentro de uma política de Estado deve haver uma política de avaliação que hoje encontra muita resistência. Deve se avaliar a escola e avaliar o professor.

É difícil porque não é simples. A resistência que existe tem seus fundamentos. Não dá para avaliar simplesmente um patamar para todos os alunos. De repente, um professor que trabalha com alunos com muitos problemas não alcança o mesmo patamar de um professor cujos alunos tenham uma condição melhor. Então não é uma questão simples. Mas isso não significa que não deva haver uma avaliação. Ela é necessária, mesmo que tenha distorções. Devemos saber quem é o bom professor, que é aquele que se compromete com a aprendizagem do aluno.

A senhora tem algum modelo para essa avaliação? A comunidade poderia participar?

Eu não tenho um modelo, mas a comunidade tem que participar, sem dúvida. Hoje em dia, temos que pensar em comunidade escolar, que é formada pelos professores, diretores, alunos e seus pais, que representam aquela comunidade. Os pais têm esse papel como atores de uma sociedade - são donos de uma empresa, donos de uma venda. A comunidade tem que ter um peso nessa avaliação.

Como consultora da Unicef para educação na América Latina e Caribe, a senhora tem alguma avaliação sobre o que o Brasil pode aprender com outros países? Fala-se muito da boa qualidade de ensino público no Chile e na Argentina.

Eu trabalhei na Unicef no final da década de 90. Acompanho o que acontece pelos jornais, mas não tenho um acompanhamento aprofundado. O Chile, sem dúvida, é um exemplo, uma referência. Eles deram certo e têm um resultado significativo. O Chile se destacava também em relação à Argentina, que tinha um patamar muito elevado, com alto grau de conclusão de ensino médio, mas que, com todos os problemas econômicos, tiveram uma perda muito grande de qualidade. Pelo que acompanho, o Chile está muito na frente. Mas para responder, precisaria me atualizar mais.

O importante é que eles tiveram dois movimentos: um de articulação da escola básica como um todo --desde a pré-escola até o ensino médio--, com uma grande articulação dos programas e com a questão da atualização de informática, e também focalizaram em escolas que atendem a população mais pobre. Foi uma política consistente. Mas é um país cuja população total deve ser menor do que a do Estado de São Paulo; não se pode compará-lo com o Brasil, o que não retira seus méritos.

O terceiro setor sofre com algum tipo de empecilho para auxiliar as políticas públicas oficiais? Burocracia, falta de transparência, empecilhos legais?

Primeiro, acho que é difícil de falar do terceiro setor como um todo, mesmo na área de educação. Embaixo do guarda-chuva de terceiro setor, há de A a Z. Há ONGs com origem popular, política e ideológica até grandes fundações empresariais ligadas a bancos. Tudo isso está junto.

Mas generalizando, o terceiro setor não tem um compromisso com a universalização do ensino. Isso é compromisso do Estado. Normalmente, o terceiro setor atua para contribuir na melhora da qualidade do ensino, através de formação de professores, elaboração de materiais, implementação de projetos específicos em um conjunto reduzido de escolas. E acho que o papel deve ser esse, uma parceria com o Estado, e não uma competição.

Mas é lógico que os governos são burocráticos, que há empecilhos. Mas varia caso a caso. Alguns governos são fáceis de se trabalhar, outros são mais complicados. Alguns são mais transparentes, outros menos. Assim como há organizações do terceiro setor que são mais ou menos transparentes. Mas via de regra, o terceiro setor tem uma agilidade muito maior, uma burocracia muito menor, então se consegue implantar um projeto mais rapidamente, porque não temos burocracia, nem licitação. Por outro lado, é uma atuação muito mais pontual e não dá para ser diferente.

A senhora acredita que as escolas privadas podem desempenhar melhor sua função social?

Algumas escolas atuam nesse sentido. O colégio Santa Cruz atua em uma favela lá perto; o Vera Cruz tem um programa de educação para jovens e adultos que envolvem comunidades e tem um programa de assessoria para escolas públicas, o Nossa Senhora das Graças.... Eu estou citando três escolas mas deve ter “n” outros que desenvolvem projetos e eu, pessoalmente, não tenho conhecimento.

Acho que a empresa atuar na área social é uma obrigação e isso vale também para as escolas privadas. Não é questão de ser mais ou menos legal, mais ou menos bonzinho; é parte de uma responsabilidade. O setor privado se beneficia de uma série de melhoramentos que o Estado provém, então ele deve responder a isso e devolver para a sociedade.

Como a senhora avalia a cobertura de educação pela imprensa?

É difícil. Eu sei um pouco pelo Gilberto Dimenstein, minha visão é parecida com a dele. Não tenho uma reflexão maior sobre isso. Pelo que o próprio Gilberto fala, temos mais cobertura de imprensa na educação se compararmos com outros países da América Latina. Mas não tenho a menor idéia, isso é algo que ele fala e eu passo pela frente porque acho que ele sabe disso.

Acho que já melhorou muito, se pegarmos os últimos 10 anos. Mas ainda acho que os jornalistas ficam atrás da desgraça, tem que saber quantas crianças morreram, e etc. Se não tem desgraça, parece que a notícia não vale a pena.

Mas também não sei dizer como seria diferente. Não acho que tem que mostrar apenas experiências positivas, mas na minha percepção não chegamos ainda a um equilíbrio.

E eu acho que ainda tem desconhecimento muito grande pelos jornalistas sobre a área de educação. Resistimos a dar entrevistas porque é chato. Obviamente, há alguns jornalistas que entendem muito de educação, mas a maior parte não tem a menor idéia sobre o que está falando: não sabem o que é evasão, repetência e etc. Acho que tem uma questão de capacitação de jornalistas na área de educação que é básica.

Na sua avaliação, qual política do governo federal a senhora acredita se a mais acertada na área de educação básica e qual e mais equivocada?

Não sei responder. Mas acho que eles estão com dificuldades de estabelecer uma política educacional consistente para a educação básica. Ao se focar na universidade, perdeu-se uma consistência, uma articulação de projetos, uma direção clara que tinha na administração do Paulo Renato, independente de se ter sido contra ou a favor. Acho que isso vai ter conseqüências drásticas na educação básica. Há a perda de um desenho de uma política nacional para a educação básica.

Por outro lado, não se pode negligenciar as universidades, que foram os quadros para o Brasil. O que deve haver é um crescimento do orçamento da educação, com um maior controle também sobre os gastos da educação. Muitos políticos ganham recursos e, se tem todos os alunos já na escola, não sabem o que fazer com as verbas, e acabam desviando-as para outros setores. Temos então um problema grave. Há ainda o problema de corrupção e mal emprego dessa verba. E além disso, é necessário ter mais verba.

Por que todo mundo fala o óbvio, que a Coréia melhorou em educação? Porque investiu em educação! Há 20 anos estava atrás do Brasil e hoje está na frente.

A senhora acha que alunos de escolas públicas devem ser beneficiários de políticas de ação afirmativa para entrarem nas universidades públicas?

Eu acho que alguma coisa deve ser feita, mas acho as cotas complicadas. A Unicamp [que dá uma pontuação extra pra quem é egresso do ensino público] é um bom exemplo. Mas não vejo cotas funcionarem no Brasil. Acho complicado. Mas deve haver alguma coisa que priorize o aluno da rede pública, como faz a Unicamp. Na minha opinião, se algo priorizar a escola pública, vai haver pressão para melhorar o ensino médio e, por tabela, terá pressão para melhorar o ensino fundamental.

Desde a fundação do Cenpec, em 1987, o que te surpreendeu na área de educação nesses últimos anos?

Naquele momento não existia o consenso que há hoje para priorizar a educação. Ao mesmo tempo, as mesmas coisas que se falavam em 1987 continuam iguais, coisas que têm a ver com a qualidade da educação. Mas mudou que o consenso sobre a prioridade da educação passou a se instalar na sociedade civil, saiu do âmbito dos educadores. E em decorrência disso há uma mobilização pela educação, independente de classe social. A população de baixa renda também quer seus filhos na escola --depois, mais na frente, ele sai, mas no começo a família o quer na escola. Mas os problemas básicos, relativos à qualidade da educação, são os mesmos.
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