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Educação
24/06/2005

Íntegra de entrevista: Miriam Abramovay

A socióloga Miriam Abramovay tem 57 anos, estudou em SP (nas escolas particulares Elvira Brandão e Colégio Rio Branco), é formada pela Universidade Católica de Brasília. Tem cinco filhos que estudaram em escolas públicas dos EUA e da França (mas, se estivesse no Brasil, não matricularia em escolas públicas).

Quais são os tipos de violência mais comuns nas escolas?

O que é mais comum nas escolas é agressão física, agressão verbal, a questão das ameaças, o furto, que é visto na escola como algo sem importância, que está no cotidiano das escolas. Tem também a violência que se dá na relação professor-aluno, relações sociais com inspetores, encontramos uma violência também no entorno da escola.

É preciso diferenciar os tipos de violência. Há a violência dura, a que fere e mata, que está no código penal, mas prejudica tremendamente o cotidiano da escola. Tem agressão física, empurrões, xingamentos. E há a violência simbólica, que o outro não pode responder. É a que passa pelo racismo, pela discriminação.

E qual mais prejudica no processo de aprendizagem?

É relativo. Porque se você somar, o que tem mais? O mais comum são os furtos. E a violência verbal? É muito comum também. E o racismo? É muito comum também. Então eu acho que não dá pra quantificar sofrimento. Em uma pesquisa que nós fizemos, 70% dos alunos disseram que existe furto na escola. Isso é muito alto, mas quando vc começa a trabalhar com eles, em entrevistas e tal, eles dizem "não, são furtinhos, são materiais de escola, às vezes celulares e dinheiro". Mas em geral eles desqualificam essa questão do furto.

Há alguns anos não se falava tanto em violência nas escolas. Tem se falado mais agora porque a violência aumentou ou foi mais uma conscientização das pessoas?

Como a sociedade mudou de cara, a escola mudou de cara também. O que aconteceu? Nós temos hoje a maioria da nossa população pelo menos na escola de ensino fundamental. A escola estava muito pouco preparada para receber essa população. Não estou com isso querendo dizer que ela é violenta.

A primeira razão é que a violência aumentou em nossa sociedade. E a escola está inserida nessa sociedade, ela não fica ausente da rede de relações sociais. A escola sempre teve sinais de violência, a palmatória e tudo isso. Esse tipo de violência não é mais aceito, porque também a forma de relações sociais mudaram. Um professor bate no aluno, o pai vai lá na escola reclamar. Mas quando o professor xinga o aluno o pai não vai na escola. Tem coisas que são aceitas e tem coisas que são muito banalizadas. O que acontece é que essa população, a escola não é mais só para uma elite, essa massa de pessoas entrou na escola e ela não soube o que fazer. A escola utiliza muitas vezes formas de agir e de pensar que são completamente autoritárias.

Por que antes era maior o respeito ao professor? A palmatória funcionava?

Não, absolutamente. Antes era muito pouca gente, era uma elite que existia na escola. As pessoas apanhavam em casa, a relação pais e filhos também era diferente.

Quais são as formas de violência do professor com o aluno hoje?

É mais uma violência verbal, de grito...Mas os alunos também. A gente pode dizer que os professores utilizam mais a violência verbal que os alunos. É impressionante o tipo de sofrimento que os alunos também causam aos professores.

Existe algum tipo de punição que funcionaria?

Não existe um tipo de punição que possa remediar isso. Porque quanto mais pune, o número de ameças também vai aumentando, dos professores e dos alunos. Não se resolve as coisas na escola através da punição. A escola tem que se rever, abrir o seu retrato e ver o que ela é. Por que ela não consegue aceitar a cultura juvenil, por que não tem interesse, não tem qualidade e está fazendo uma série de pessoas muito infelizes, tanto os professores quanto os estudantes.

É essa a cara da maioria das escolas públicas no Brasil hoje?

Sim, essa é a cara da escola, com exceções, sem dúvida.

Explique melhor a questão de não respeitar a cultura juvenil.

Antes, só uma coisa: a grande solução é o diálogo e a mediação. O que é cultura juvenil? A escola não aceita a forma do jovem de ser, a sociedade também não aceita. A escola é um reflexo do que a sociedade pensa. A sociedade não aceita a forma do jovem se vestir, falar, ouvir música. Há muita dificuldade em se aceitar a juventude.

A escola não deveria ter que ter regras, por exemplo, na questão do vestir?

Claro, mas nesse tipo de roupa, que é o uniforme, pode aceitar a marca da juventude. Boné é uma marca. Por que a questão do boné é um grande conflito entre a escola e o jovem? Por que não pegar conflitos que são verdadeiros? Por que ficar na aparência e não na essência do conflito? Isso é a aparência do conflito. Eu acho que a escola tem que ter regras, tem que ter regras básicas, todos têm que obedecer, ou vira uma zona, evidentemente.

E no caso da desobediência a essas regras, a senhora acha que não é necessária a punição?

Eu acho que tem que ter diálogo.

Nem que seja uma punição light, construtiva, por exemplo, o aluno tem que ajudar a cuidar da biblioteca?

Pra isso não há regra. Eu acho que deve haver diálogo. Em geral, é uma coisa autoritária, que passa pela punição, suspensão do aluno, a escola chama os pais, são as coisas que a escola quer fazer, mas essas coisas não adiantam.

A estrutura física da escola, quando malcuidada, pode contribuir para aumentar a violência?

Existe uma teoria, "Broken Winds", muito usada em Nova York na época do "Tolerância Zero", que tem uma coisa interessante: é preciso tomar muito cuidado com os espaços. Não é que um espaço feio aumente o nível de violência, aumenta um pouco o descuido, qualquer tipo de descuido não aumenta obrigatoriamente a violência, mas aumenta o sentimento de não pertencimento à escola. E isso pode, a longo prazo, levar a um processo de violência. Isso é um drama nas escolas brasileiras, principalmente na questão do banheiro. No ensino médio, o espaço mais reclamado pelos estudantes é o banheiro.

Falta envolvimento dos pais, os pais deixam muito a responsabilidade com o professor?

Não, eu acho o contrário. Acho que a escola fecha a porta para os pais. A escola é um espaço fechado. A escola é um espaço proibido para os pais. Os pais só são chamados para a escola quando os filhos têm algum problema. Por isso o programa Escola Aberta, da Unesco com o governo federal, é super importante. O que faz esse programa? Esse programa abre as escolas nos finais de semana e parte dos pais visita a escola. Tem pais que sequer conhecem a escola, que não tiveram a oportunidade de entrar na escola e discuti-la. Essa relação pais/escola, ou escola/comunidade, é uma relação muito tensa, de muita cobrança, porque, ao mesmo tempo que os pais cobram da escola determinados tipos de comportamente, determinados tipos de ações, a escola culpabiliza os pais porque ela não funciona. Na verdade, ela não quer, com raras exceções, que os pais estejam dentro da escola. Ela também tem medo dos pais. Então fica um diálogo de surdos. Um muro que é quase intransponível.

Existe alguma relação entre a forma como os pais enxergam o professor e o desrespeito do aluno pelo professor? Existe a idéia de que, se o professor não ganha bem, ele não passa a imagem de sucesso para a sociedade e, por isso, o estudante não vai respeitar o professor, porque não enxerga nele um exemplo, um modelo a ser seguido. A falta de status do professor também pode causar violência?

Existe uma falta de status do professor mas, para o professor, essa falta de status não existe.

Na opinião dos próprios professores?

É. Porque os professores brasileiros, nos últimos anos, tiveram uma grande mobilidade social. São filhos de uma classe de uma média muito baixa, cujos pais eram analfabetos ou não tiveram nenhum grau de escolaridade, e isso é um dado importante. Tanto que, se você pergunta se eles gostariam de mudar de profissão, eles dizem que não. Mas o que conta aí são as relações sociais dentro da escola. É a escola não saber lidar com esses alunos. Não são os pais que influenciam os alunos. Eu acho que existe uma visão idealizada do professor. Ser professor é uma carreira como outra qualquer. Um é professor, o outro é pedreiro, o outro é sociólogo, é uma carreira como outra qualquer, que entra no mercado de trabalho com um salário X. O professor tinha um status diferente na nossa sociedade quando não era uma profissão feminina. A partir do momento em que começa a ser uma profissão feminina, começa a perder status. E cada vez mais gente de classe média baixa ingressa na carreira de professor. Mas isso não faz com que perca o respeito. Os os médicos, por exemplo. Existem salários de médicos, desde que é uma profissão feminina, que são baixíssimos, e nem por isso a população perdeu o respeito pela profissão de médico.

Quais seriam as formas de combater a violência, as medidas com mais chance de sucesso?

O projeto de mediação dentro das escolas, que a gente está propondo pro governo federal, é muito importante, porque você deixa o conflito sair da escola. Porque o problema é que ele nunca sai, ele fica pra dentro.

Não é discutido?

É completamente banalizado. Não importa quando um empura o outro, só importa quando a coisa é grave, quando entram drogas, quando um quebra a cara do outro, aí importa.

O que é o programa de mediação?

É formar mediadores que sejam os meninos da escola, professores e pais, que possam aborda esses problemas e discutir.

E isso seria feito pelo governo federal?

Não, está sendo proposta e o governo federal diria "essa política é importante", e cada escola estadual e municipal poderia comprar essa idéia ou não.

As crianças e os jovens de classes sociais diferentes dividirem a mesma escola seria uma forma de combater a violência?

Poderia combater ou acirrar, porque no Brasil isso é inviável. Você conhecer o outro e perceber o diferente sempre aumenta seu grau de sensibilidade e tolerância. Outra coisa importante é que os meninos de classe média alta e alta têm um capital cultural e um capital social que os outros meninos não têm, e eles poderiam dividir. E, se os meninos de classe social mais alta freqüentassem a escola pública, evidentemente que o nível de ensino da escola pública melhoraria.

A violência é o maior problema do ensino público brasileiro?

Está entre os maiores, mas é difícil dizer. Qual é o maior problema? É a má qualidade do ensino, é o problema da repetência, é o problema da evasão, o abandono é um problema gravíssimo, a violência também. Mas tudo isso passa pelo problema de uma escola sem alegria e sem felicidade.

Como solucionar?

Perguntinha complicada. A solução é uma escola agradável. É só uma escola, entendeu? A solução para essa escola que está aí é já pensar em outra escola, é reformular.

E existe um modelo?

Existem exemplos. Existem escolas que conseguiram dar a volta. Seja pela qualidade, seja pela violência, seja propondo novas formas de ensino, seja abrindo a escola nos finais de semana, muitos escolas propões soluções.
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