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Educação
24/06/2005

Íntegra de entrevista: Renato Janine Ribeiro

É diretor de avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do MEC). É doutor em filosofia pela USP, onde leciona ética e filosofia política. Publicou, entre outros, "Humanidades: um novo curso na USP" (Edusp, 2001) e "A universidade e a vida atual" (Campus, 2003). Cursou o ensino básico na Escola Estadual Alberto Levy, em São Paulo. Tem 55 anos.

Quais são os principais problemas da educação básica?

Não sou especialista nesse ponto. Vou falar necessariamente de pós-graduação, que é outra ponta do sistema, mas acho muito importante para isso.

Acha que faz sentido a política centralizadora da administração educacional ou deve haver mais autonomia das unidades escolares?

Não sou especialista em ensino básico. A Constituição de 88 define claramente o ensino básico como competência de Estados e municípios. A União ficou com papel de sinalização dessas dimensões e com o ensino superior federal. O espírito é que as pessoas vivem no município, não na União, e quem está mais perto deve cuidar das coisas. Isso é diferente do que pensa Cristovam Buarque, que é a favor de federalizar a criança. Nesses 17 anos, não deslanchou o projeto de quem está mais perto gerir melhor. Talvez seja o caso de rever, mas o Brasil, gostemos ou não, adotou o caminho de competências múltiplas. Do mesmo jeito que talvez nunca haja um partido com maioria absoluta no Senado, e portanto o presidente sempre tem que negociar o poder, na educação vivemos o caminho da negociação entre as instâncias de poder. Acho que, sob muitos aspectos, não é o modelo ideal. Mas é muito difícil reverter esse modelo. Tem-se procurado descobrir em que medida a União pode interferir mais ativamente na educação básica. Houve medidas com Paulo Renato e Tarso Genro tem outras medidas. Há convicção de que o sistema, deixado nas mãos do município, não funciona. Mas não há idéia de tirar das mãos do município.

Mas há outros problemas. O primeiro é que a educação não é assumida pela sociedade brasileira como uma prioridade. As pessoas têm muito mais noção do papel da saúde do que da educação. Para a classe média, trocar o carro é mais importante do que educação. Cultura, nem se fala: se dissermos que os jovens têm de ir ao cinema e ao teatro para ter uma boa formação, os pais reclamarão da sangria em seu bolso. É problema de opinião pública: fala-se cada vez mais sobre o papel da educação, mas isso não é assumido. Aparece no discurso dos governos, das ONG (como a do Dimenstein), mas não é assumida.

Outra coisa: não dá para pensar educação básica separada da superior e da pós-graduação. Para dar aula, hoje, é preciso ter graduação. Vários Estados tentaram qualificar seus professores am atividade com cursos intensivos, de fim-de-semana. Deve agregar algum conhecimento, não sei quanto. O ensino de graduação também é ruim. Só na pós-graduação strictu sensu há certeza de qualidade, pois só nela há avaliação de longo prazo. No ano que vem, faz 30 anos o modelo de avaliação no Brasil. Foi anual, hoje é trienal, começou com uma ou duas centenas de programas, estamos agora com 2.000. São quase 4.000 cursos. Nesses 30 anos, consolidou-se um sistema com cursos de regulares para cima. Os regulares são 30% do sistema; o restante são cursos bons, muito bons ou excelentes. Aí há certeza. O caminho para o ensino básico é usar a pós para melhorar o ensino de graduação. Por exemplo: há programas de ensino de ciências que são de mestrado profissional. Formam o professor do ensino básico. Ter professores pós-graduados no ensino básico requer recurso, é claro, não é trivial. Ou a gente muda o ensino de graduação no país ou a formação dos professores vai ser muito ruim. Há outras medidas, mas posso falar mais sobre isso.

Como é esse caminho contrário (da pós para o ensino básico)?

Há consenso hoje de que não se faz nada melhorar na educação, e em outras áreas, sem avaliação. Não é consenso total, porque algumas áreas da sociedade se opõem, mas é crescente. Onde a avaliação funciona na educação? Na pós-graduação. É o único lugar. Outro lado é formar professores que melhorem o pessoal que vai dar aula no básico. Não é um trabalho que vai surtir efeito em menos de dez ou 20 anos.

Avaliações como Saeb ou Enem são úteis para os profissionais de pesquisa em educação e para a administração pública?

Claro que são, mas não conheço no detalhe. Quando você avalia, sabe onde tem que canalizar recursos, sabe as experiências bem-sucedidas e o que está dando errado. Avaliação não é um fim em si, mas um meio para definir políticas. Outro papel importante da avaliação da pós-graduação é difundir a cultura da avaliação, à qual setores são resistentes. Resistem porque dizem que avaliação pune quem tem poucos recursos. Se não se articula a avaliação com a política de reconstrução e construção da educação no setor avaliado, isso acontece, mesmo. Avaliação não é fim em si, nem é para gerar a tão mal denominada "meritocracia". No regime democrático, queremos o mérito como instrumento: a sociedade tem de definir os fins da educação e procurar os melhores professores e cientistas para fazerem um instrumento. Se o Norte é mal avaliado porque lá é tudo muito caro --porque as distâncias são gigantescas--, não podemos dizer "o curso é ruim, vamos fechar". O curso é ruim, mas precisa ser melhorado, porque a região só tem esse curso.

Donde vem o desinteresse da população em relação à educação?

É difícil dizer. O papel da educação é recente. Antes as pessoas conseguiam posição na sociedade por outras razões que a educação: pai, herança... A idéia de que cada pessoa deve se construir é muito recente.

Que impressão tem da evolução histórica da educação pública? Está melhorando ou deteriorando?

Não sei.

Nem uma resposta impressionista?

Não conheço. Dá para notar que a educação tornou-se desaguadouro de preocupações de outros setores. Cada vez mais a escola pública e a saúde pública padecem da favelização e da criminalidade. Os profissionais temem por sua segurança. E nós vivemos numa sociedade extremamente desigual. O alcance das ações afirmativas para reduzir as desigualdades é altamente limitado. E há expectativa muito grande de haver um maior colorido nas salas de aula. Fico chocado: no curso de filosofia, que não é de tão difícil vestibular, você não vê ninguém. O alcance é pequeno porque o problema é da sociedade como um todo: desigualdade brutal, índices de desenvolvimento humano fracos. A escola vai resolver?

Outra coisa: as famílias estão se desinteressando por ensinar ética aos filhos e reclamam que a escola não o faz: "a escola não ensina meu filho a se comportar" --e às vezes o próprio pai está dinamitando a educação da escola.

Há muita expectativa com a escola e pouca atribuição de recursos, inclusive dos pais. Por exemplo: freqüentação cultural é importante para a formação média e não é coisa da escola. Quantas famílias bancam isso, mesmo na classe média?

O governador de SP instituiu nas escolas este ano cursos obrigatórios de filosofia, sociologia ou psicologia. Acha que isso atende à demanda da população, é necessário?

Espero que dê certo, mas o ensino está tão fraco e a absorção dos alunos está tão difícil que não sei se o problema é só do professor. Não sei o quanto matérias assim abstratas serão compreendidas. O tipo de redação que se vê às vezes: não sei se o autor vai conseguir acompanhar um texto de filosofia. Uma coisa que poderia ser feita: colocar essas matérias não soltas no curso, mas articuladas. Por exemplo: põe filosofia articulada com história e português, com exercícios de redação e de compreensão mais amplos.

Para reverter essa queda de rendimento dos alunos, seria preciso investir em redação, em articulação de idéias?

Talvez. É preciso ver os indicadores. Por exemplo: o fato de o Brasil sair-se tão mal em matemática é assustador, pois a matemática é base do espírito científico, boa parte das matérias que os alunos vão estudar dependem da matemática. Há muita ignorância a respeito disso. Quando um ministro como o Lampreia [ex-ministro das relações exteriores] diz que o inglês é a chave da diplomacia, você vê que ele não entende. O inglês é um instrumento, não é chave. A linguagem da ciência é a matemática; a linguagem das humanas é mais plural, mas certamente tem a ver com espírito crítico, conhecimento. O que teria de haver, no ensino básico como um todo, é uma iniciação forte no espírito científico. O complicado é que muitas iniciativas são de cooptação. Por exemplo, uma ONG que Claudio de Moura Castro defende. Ela vai atrás de alunos de ensino médio que tenham desempenho muito bom e tenta dar bolsa. O sistema estadual de São Paulo, tucano, foi contra, argumentando que isso é cooptação. O Claudio diz: "ora, podemos cooptar o bom jogador de futebol; não podemos cooptar o bom estudante?" Ele tem razão: o bom jogador de futebol é tirado da miséria; no caso da educação, que é para ser universal, sugestões de pegar os melhores e trazê-los para a elite não têm nada de novo para a sociedade brasileira, que sempre pegou o mulato brilhante e a moça pobre bonita para melhorar a qualidade da classe dominante. Isso jamais fez mudar o perfil de classes na sociedade.

Essas iniciativas têm surgido novamente no discurso, inclusive de ministros. O que acha?

Não sou contra. Só acho que o alcance é pequeno e há o risco de deixar de lado o trabalho de cidadania que é a educação ser um direito universal. Nesse nível, não na faculdade. Temos de aumentar o número de vagas em graduação e pós, mas chegar a 100% é bobagem. Ensino básico tem de ser 100%. É como o rodízio em São Paulo: devia ser temporário e acompanhado de investimento maciço em transporte coletivo. Hoje somos reféns do rodízio. Uma proposta de cotas deve funcionar por um tempo, não pode ser a solução.

É a favor das cotas?

Sou a favor de cotas. Como disse Elio Gaspari: na hora de usar o elevador de serviço, qualquer porteiro sabe quem é negro. O problema epistemológico só surge na hora de dar alguma vantagem ao negro. Seu jornal tem atacado as cotas, como o artigo que chamava o ministro de "ministro de classificação racial" só porque se pediu autoidentificação para ter um mapa real de percentual. Defendo cotas, desde que se entenda na comunidade universitária que é coisa provisória.

E cotas para alunos de escola pública?

A cota importante é para alunos de escola pública. O sistema da Unicamp é muito bom. Deve-se substituir a cota por uma decisão a cargo de cada universidade. E as oposições estão se dissipando. Conversei outro dia com a ex-pró-reitora da Unifesp, Helena Nader, que disse que era contra as cotas até estudá-las. A renda dos alunos da Unifesp negros egressos de escola pública é 40% da renda dos brancos também de escola pública. As cotas são mais do que legítimas, mas não dispensam melhora do ensino público.

E a melhora acontece via pós-graduação?

Isso é só uma parte. É preciso ter mais recursos, avaliação do uso dos recursos e comprometimento da comunidade. Na recente eleição para conselho tutelar, 2% votaram. Se fizéssemos como nos EUA, Board of Education, quantos iriam votar? Até porque a divulgação é péssima.

O salário dos professores é causa de mau ensino?

Conta-se a história da Coréia como caso de sucesso. Não sei se é correta a informação, mas tenho dados de que o salário de professor da escola básica lá é igual ao de universidade. No Brasil, a saída é óbvia: tem que criar sistemas de gratificação por qualidade de desempenho. Tem que vincular aumento a qualidade de ensino, criar bolsas, melhorar professor, mas isso vai exigir muito dinheiro.

A distribuição do dinheiro em pessoal, estrutura etc. é adequado?

O gasto com pessoal é o principal. Informática, parabólicas etc. criam um nova rubrica importante, mas não dá para aplicar lei de responsabilidade fiscal tradicional, de 50% para pessoal etc. Li um artigo muito bom, anos atrás --de José Casado?--, que dizia que há casos de municípios que tratam pavimentação de rua diante da escola como gasto com educação, não sabem como gastar. Fiquei pasmo: dá para gastar em educação de jovens e adultos, aumentar pré-escola etc. O problema é que falta de dinheiro por causa de pagamento de juros.

As mudanças de política desperdiçam muito dinheiro?

É verdade.

Formação de professores é afetada por isso?

Não sei. Não na pós, na graduação praticamente não, por causa da autonomia universitária. No básico, o que mudou nos últimos anos foi a retirada de nomeações políticas de diretores. O governador mineiro Hélio Costa, por exemplo, adorou se livrar dessa pressão. [fala sobre televisão] O único jeito para a escola é fazer a comunidade se mobilizar. Isso não deveria ser tão difícil. Se a sociedade não assume a escola, todo o resto é insuficiente.

Qual sua opinião sobre projetos que tentam envolver a comunidade com a escola, como os CEU?

O CEU é uma das melhores coisas concebidas por aqui. Pegam os Cieps do Brizola e dão um "upgrade". O CEU é projeto de fora da área de educação --de Fernando Haddad--, para serem parques integrados a escolas. Por princípio, tem que ser assim: escola em tempo integral. Por exemplo, no Rio, as crianças pobres que não estão no tráfico passam o dia empinando pipa. Que futuro terão? A escola pode ter lazer de qualidade, inteligente. Desenvolver atividades de esporte e culturais é questão crucial. Educação integral deve ser meta, e não de longo prazo. Não necessariamente até às 18h, mas como nos EUA ou Europa.

Para a sociedade brasileira, a escola deve ser pré-acadêmica, formar para cidadania ou o quê?

Pré-acadêmica não acho que tenha que ser. Se 30% da população faz faculdade, já está bom. Há uma parcela da população que não deseja. Há pressão familiar, cultural, da sociedade para fazer faculdade. Não fazer faculdade hoje é uma mancha; não vejo razão nenhuma para isso. É preciso ter formação de pesquisa, pôr as pessoas em contato com a ciência. A AAAS tem o projeto "Science for all Americans". Vão acabar com preconceitos, criacionismo etc.

Faz sentido o investimento no ensino superior ser oito vezes maior que no ensino básico?

O ensino básico é competência de Estados e municípios.

Mas é repasse...

Mas tem parte de orçamentos próprios, pelos valores constitucionais.

Fizemos o plano nacional de pós-graduação 2005-2010. [...]

A gestão passada --do Abilio-- foi boa na Capes e ruim na Sesu. Mas precisamos repor vagas no superior. Sem investir 14% do orçamento da União em universidades, não tem alternativa. Em SP, sem os 10% do ICMS para as universidades estaduais, estamos perdidos.

Por outro lado, parece que apenas 1% dos professores da rede pública de SP vêm da USP. As estaduais respondem por muito pouco.

Como evitar fuga de cérebros para o exterior?

Apesar do declínio ético, do cada-um-por-si mais freqüente, há obrigações assinadas de voltar, compra de pesquisador pelas escolas do exterior. Mas é preciso ampliar a pesquisa aqui. Avançamos o doutorados para oeste: abrimos em Porto Velho. Ademais, o pesquisador tem amor pelo país.

Na sua opinião, qual seria o maior pedagogo vivo no Brasil?

Não sei dizer.

Nunca mexi com pedagogia propriamente dita. A gente lê Paulo Freire, Rubem Alves...

Um problema em educação é que é uma das áreas que mais tem bolsistas, e no entanto a educação básica está muito ruim. Temos [a Capes] cobrado os pedagogos sabendo que o problema não é só deles. Incentivamos mestrado profissional porque queremos formar para a sociedade, para o profissional saber aproveitar as pesquisas.

Faltou perguntar alguma coisa?

O que me preocupa é fazer o melhor uso possível dos recursos; não haverá muito mais dinheiro. Isso se faz avaliando, difundindo políticas que tenham êxito, internet...

Internet é possibilidade de redução de desigualdade social. Muita gente ainda não atinou com isso. De qualquer lugar podem-se acessar periódicos que antes só alguns tinham. Outro problema no Brasil é o desperdício, de diversos tipos. É desperdício comprar equipamento e não colocar alguém para cuidar. Em Manaus, houve desperdício de merenda; há muito computador sem uso. Há tendência a terceirizar responsabilidades que dependem de nós mesmos. A educação não melhora por causa do espírito iluminista de quem esteja no governo. É preciso haver convicção das pessoas. O pai deve cobrar qualidade, não só merenda. É preciso ter clara a cobrança.

[fala da morte do projeto de curso de humanidades na USP, enterrado pela greve de 2000. Há projeto desse na Bahia, na faculdade Jorge Amado.]
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