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Educação
24/06/2005

Íntegra de entrevista: Tarso Genro

Quais os maiores problemas das escolas públicas no Brasil? No ensino básico.

Tarso Genro - Os dois maiores problemas. Um problema de ordem geral que é a questão da qualidade do ensino básico no Brasil- não é que não exista qualidade, é que ela é muito diferenciada de região para região. E a segunda grande questão do acesso ao nível médio- só 30% das crianças que saem do nível fundamental acessam o nível médio. Esses dois problemas remetem a um terceiro, que é a questão do financiamento, ou seja, é necessário considerar as políticas educacionais uma política de Estado, e ter uma proposta de financiamento estável, para todo o ensino básico que permita que estas questões sejam corrigidas. É bom destacar que pela norma nacional os prestadores do ensino básico são os Estados e os municípios. O MEC é o coordenador, regulador, indutor do projeto educacional nacional como um todo. As nossas ações são importantes, estruturantes, mas esta é uma tarefa federativa. Não é uma tarefa exclusivamente do MEC. Portanto as boas ou más políticas do MEC podem ter reflexo diferenciado de região para região e de cidade para cidade.

O senhor falou que a educação precisa ser uma política de Estado. Ela tem sido assim na história do Brasil? Agora há pouco na coletiva, o senhor falou que o Fundeb é uma política do governo Lula. Como é que tem sido isso na história do Brasil e na história do governo do PT?

Tarso - Diria que nós vivemos dois impulsos estratégicos que trataram a educação básica do Brasil como política de Estado. O primeiro grande impulso foi a construção da escola pública, com a grande liderança de Anísio Teixeira. Foi um momento decisivo, inclusive, na minha opinião, da idéia de formação da nação brasileira. O segundo grande impulso, que ocorreu nos últimos 20 ou quem sabe 30 anos, foi o processo de universalização do acesso ao ensino fundamental. Hoje, em torno de 97% das crianças entram no ensino fundamental. E este também um impulso de tratamento da educação como política de Estado. Eu entendo que o terceiro grande impulso está sendo promovido pelo governo atual, se nós obtivermos sucesso de ver a emenda constitucional aprovada no congresso, é o Fundeb, porque ele aponta para um novo refinanciamento estratégico da educação básica no Brasil, portanto tratando aí toda a educação básica como política de Estado num terceiro grande movimento de afirmação do projeto educacional brasileiro.

Ministro, o senhor falou dessa universalização do ensino, mas o Brasil no PISA, nos exames internacionais, está lamentavelmente sempre nos últimos lugares. Por que as crianças vão à escola e não aprendem na escola?

Tarso - Tem causas sociais e causas específicas de natureza educacional. As causas sociais vão desde a desagregação da família das classes trabalhadoras brasileiras pelo desemprego, pela exclusão, pela formação de um ambiente familiar que é adverso ao aprendizado da criança, até as causas educacionais específicas, como por exemplo, as questões pedagógicas que tem que ser adequadas à essa situação das crianças até os salários dos professores, que não são nada estimulantes e que prejudicam inclusive a busca da carreira do magistério por pessoas que têm que despender um enorme tempo de preparação, através da licenciatura. Então não há uma causa só. Agora se nós formos colocar a causa fundamental eu poderia dizer que de fato não houve uma continuidade na história da educação brasileira da sua consideração da educação como política de Estado, porque isso requereria um financiamento estável e progressivo que ajudaria a corrigir, pelo menos em grande parte, as demais deficiências. Isso não ocorreu. Você pega uma escola periférica de uma grande cidade do Nordeste, uma escola de nível fundamental, e pega uma escola por exemplo da periferia de Porto Alegre, para dar um exemplo da minha terra, vocês vão ver a brutal diferença que existe entre essas duas estruturas. Isso está relacionado com realidades sociais locais, despejo de recursos maiores ou menores por prefeituras, e até questões relacionadas com gestão. Então, por isso que nós abordamos a questão da educação no Brasil não através da teoria do choque, mas através de uma visão de processo. Nós temos que instituir um processo novo, e não achar que um choque de financiamento ou um choque pedagógico ou um choque de conselho vai melhorar a educação brasileira. Então esse processo tem que ser um processo em que o financiamento seja estável, adequado, crescente e que vá acompanhando políticas corretas em cada região, em cada Estado do país.

Ministro, o senhor falou sobre política de Estado, continuidade...no governo anterior nós tivemos o ministro Paulo Renato do início até o fim. Nesse governo foi necessária a substituição do ministro Cristóvam Buarque. O PT começou de maneira errada a sua política para educação e teve que mudá-la no meio do caminho, o que aconteceu?

Tarso - A manutenção de uma política de Estado não requer necessariamente a permanência de ministros. A própria política de Estado pode ser abordada por matizes diferenciadas, o que ela não pode é ser desconstituída na sua espinha dorsal. Essa que é a questão principal. A afirmação da escola pública no Brasil teve vários ministros. Mas ela teve uma espinha dorsal que a constituiu e que foi acompanhada por determinações legais. No caso concreto do PT a substituição do ministro foi uma contingência política. O presidente da República achou que naquele momento era adequado mudar o ministro da Educação. E não foi um juízo de mérito sobre a qualidade do ministro Cristóvam nem a sua aptidão para a gestão pública. Tanto é verdade que algumas políticas que estavam ali constituídas não só permaneceram, como foram ampliadas, foram desenvolvidas.

Retomando um pouco o que o senhor falou, então a forma que o atual governo tem para tentar garantir uma continuidade da educação como política de Estado seria instituir um processo de um bom financiamento da educação?

Tarso - O Fundeb é o elo chave dessa política. Dele decorrem várias outras políticas setoriais ou políticas parciais para determinadas regiões ou determinados setores da sociedade. Mas sem Fundeb fica comprometido todo sistema educacional brasileiro porque o ascenso do nível fundamental para o médio fica bloqueado e a própria reforma do ensino superior para abrir mais vagas para comunidades de média, baixa, baixíssima renda não tem nenhum sentido e se alguém me perguntasse: ministro, qual é o elemento chave que desestabiliza a situação negativa atual para propor uma nova estabilidade nessas políticas públicas, eu diria sim a emenda constitucional do Fundeb. Dessa emenda e da sua aprovação é que vai derivar um processo longo para todo o sistema educacional brasileiro do nível fundamental até a universidade.

E o MEC tem como garantir que esses recursos do Fundeb sejam usados de forma a melhorar a qualidade do ensino?

Tarso - O MEC por si só não, por isso é que nós estamos colocando numa emenda constitucional. Essa emenda constitucional vai dividir os recursos em dois grandes blocos: 40% desses recursos serão aplicados em projetos de qualidade, de expansão do nível médio, de qualificação do ensino fundamental e 60% para corrigir o salário dos professores e portanto permitir a correção de algumas distorções, não todas, mas algumas distorções mais graves que tem o sistema educacional brasileiro.

O que eu quis dizer foi o seguinte. Se não me engano, a PEC não determina como esses 40% restantes podem ser utilizados na melhoria da qualidade?

Sim, mas à PEC vai seguir uma lei. A PEC ela é auto-aplicável, mas ela terá uma norma regulatória, seja uma lei complementar, seja uma lei ordinária que vai fazer as minúcias possíveis para que esses recursos sejam corretamente distribuídos e aplicados. Agora, sem a aprovação da PEC, não teremos lei...

O que mais o MEC ainda pode fazer depois de ser aprovada a PEC, se for o caso?

Tarso - Nós temos políticas específicas extraordinariamente importantes, que já estamos trabalhando, como a escola de gestores, formando gestores para a educação de nível básico do Brasil, nós estamos amanhã por exemplo lançando uma olimpíada de matemática, que vai envolver milhões de alunos, o que tem um efeito catalizador extremamente importante, numa disciplina que tem uma deficiência estrutural no ensino brasileiro. Nós estamos com projeto de formação de professores, de estímulo à licenciatura, com bolsas e estamos também num projeto de formação de professores que estão em sala de aula, nacional, particularmente professores de português e matemática, que são as deficiências mais graves. Então o MEC pode fazer muita coisa, mas eu reitero, essas muitas coisas que o MEC pode fazer serão recebidas de maneira provavelmente um pouco diferente nos Estados de acordo com a aptidão de gestão, com o interesse de cada Estado, de cada município, num projeto educacional.

Só para fechar a questão da economia, muita gente acredita que a educação é o que estimularia um maior desenvolvimento econômico de um país. A educação pode ser vista como uma panacéia para determinados problemas de desenvolvimento e economia do país. Por outro lado, é preciso financiamento para que haja essa educação. Se é um círculo, qual é a melhor forma de ativar esse círculo, pela educação ou pelo crescimento do PIB?

Tarso - Uma coisa é inseparável da outra. Tem uma visão que é uma visão, eu diria, neoliberal, que diz o seguinte: não precisa mexer na economia, diminua o tamanho do Estado e dê educação para a população que o Brasil vai para o primeiro mundo. Isso ou é uma visão política equivocada ou é uma política deliberada de não discutir uma questão essencial que está na base da questão educacional que é que só um determinado tipo de modelo econômico e desenvolvimento pode optar pela educação como elemento essencial de um projeto de nação - porque é necessário gerar recursos para isso, formar quadros para isso, ter atenção para isso. Eu não acho por exemplo que um modelo de Estado mínimo, de liberalização completa das relações econômicas, comandadas por uma visão originária do capital financeiro, de uma integração assimétrica no Brasil no plano global vá privilegiar a educação mais do que o discurso. Não. Eu acho que a visão da educação como prioridade em um novo modelo de desenvolvimento, cujos elementos de transição estão sendo construídos, na minha opinião, pelo governo atual é que pode realmente alavancar o país para um patamar superior. Veja por exemplo o Chile. O Chile adotou um momento na época do Pinochet, eu diria, um estranho projeto neoliberal comandado pela força normativa do Estado, e colocou a educação como extremamente importante. Os avanços que a educação fez no Chile até hoje são parcos, o próprio Estado chileno reconhece, porque não houve uma conexão de um modelo de desenvolvimento que gerasse mais coesão social, menos desigualdade e mais distribuição de riqueza com projeto educacional. Então eu entendo que as duas coisas na verdade compõem uma mesma totalidade. Dizer que só educação leva ao desenvolvimento ou dizer que só medidas econômicas alternativas geram desenvolvimento e equilíbrio social é uma falácia. Esses dois processos têm que estar integrados numa visão de país, numa visão de nação e de um novo tipo de inserção do Brasil de maneira soberana, cooperativa e interdependente em escala global onde a educação esteja vinculada não somente para dentro mas também para fora. Nenhum país hoje é uma ilha isolada ou que possa sobreviver ou modernizar-se de costas para a globalização sistêmica que nós estamos vivendo.

Ministro, eu queria perguntar então, nós estamos sob a vigência do Plano Nacional de Educação, para esse ano foi marcada a primeira avaliação desse plano. E o levantamento feito pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara mostra que poucas metas desse plano foram cumpridas, inclusive, ficou determinado que todos Estados e municípios tinham que fazer seus próprios planos de educação e nenhum fez. Eu queria saber como é que o MEC está agindo para fazer que sejam cumpridas as metas desse plano que estabelece “a década da educação” e tem uma série de metas que não estão sendo alcançadas?

Tarso - Tomando a educação como sistema: refinanciamento, reformas, reforma do ensino superior também é um elemento que não reflete somente no ensino superior, e sim na própria educação de base, na qualidade da licenciatura, na formação de professores e projetos específicos, como esses projetos de formação de novos professores e qualificação de professores em sala de aula. Normalmente essas metas são utopias, mas são utopias necessárias, desejáveis. Elas são colocadas normalmente pelo legislador como um comando para o Executivo, para que o Executivo as opere. O que ocorre freqüentemente é que essas metas não têm os recursos disponíveis, orientados pelo modelo de desenvolvimento escolhido ou uma visão do gestor, do executivo, de que a educação não é prioridade. Então a possibilidade do cumprimento aproximado dessas metas, ou quem sabe do cumprimento ideal, é cravar na Constituição elementos que obriguem que as políticas educacionais sejam políticas de Estado, independentemente de governo e que a violação das suas normas seja uma possibilidade reduzida do gestor. E o resto é seguramente vontade política, determinação- se você pegar a educação brasileira, por exemplo, no último período, ela teve um movimento altamente positivo, no sistema como um todo, começa a universalização do ensino fundamental e teve ao mesmo tempo um movimento altamente negativo. Aumentou a exclusão social, empobrecimento da maioria da população brasileira, houve uma concentração exagerada de riqueza, os surtos de crescimento foram aproveitados por uma minoria, encastelada nos 2%, 3% de privilegiados da população e que conflitou inclusive com a universalização do nível fundamental. E como é que se resolveu esse conflito? Pelo bloqueio do nível fundamental para o nível médio. Ali é que esse conflito foi congelado. E esse é o ponto de desobstrução estrutural que nós temos que trabalhar no próximo período.

Se o senhor tivesse filhos em idade escolar, hoje, o senhor os colocaria na escola pública?

Tarso - Eu estudei em escola pública. Todo -à minha época- primário, ginásio e científico. A minha filha mais velha estudou parte escola pública, parte escola privada. Na grande cidade, isso está determinado pela proximidade da escola, para uma pessoa de classe média. Maior ou menor proximidade da escola privada ou da escola pública. No Rio Grande do Sul nós temos boas escolas públicas, então, como é que as pessoas de classe média em geral resolvem esse impasse? Qual é a escola mais próxima e o nível mínimo de qualidade que ela tem. Eu faria a mesma coisa, não teria uma posição dogmática e fechada em relação a isso. Vou dar o exemplo concreto da minha segunda filha. Minha segunda filha fez vestibular de medicina na PUC e na UFRGS. Passou nas duas. Ela foi pra onde? Ela foi pra universidade federal. Eu me pergunto, eu poderia pagar uma universidade privada para ela? Eu poderia. Mas ela foi para a universidade federal porque é julgada a melhor, inclusive, então essas distorções só podem ser resolvidas pela universalização mínima da oferta, ou seja, que nós tenhamos uma rede pública capilarizada, inclusive de ensino superior, em que a escolha da escola privada seja uma opção, e não uma determinação do mercado. Isso que é correto num país republicano, socialmente justo- ou seja, que as escolas públicas sejam acessíveis às camadas da população de média-baixa, baixa e baixíssima renda e que as camadas de maior rendimento possam optar por uma escola privada ou por uma escola pública. Um processo imediato de correção dessa distorção, no ensino superior, pelo menos, é o ProUni, porque o ProUni abre vagas públicas em instituições privadas para alunos de baixa ou baixíssima renda, agora isto não tira o objetivo fundamental do MEC, que é de aumentar nos próximos, eu não digo cinco, mas nos próximos cinco a dez anos, nós chegarmos a 40% das vagas como vagas públicas no ensino superior. Um sistema verdadeiramente republicano de ensino não combate o ensino privado, nem diminui a sua importância. Ele universaliza o público, para que democraticamente o cidadão possa optar se ele quiser optar e se ele puder optar.

Ministro, só mais uma pergunta importante para fechar: eu comecei perguntando dos problemas, eu queria saber se o senhor vê uma perspectiva realista que num médio prazo, exista solução para que a escola pública venha a ter qualidade de verdade no Brasil?

Tarso - Não. Eu entendo que a médio prazo é possível melhorar a escola pública, considerando aí o médio prazo cinco a dez anos. E acho que se a educação constituir-se efetivamente como política de estado, a partir de dez anos nós podemos ter, se o Fundeb for aprovado, uma escola pública de qualidade semelhante a que nós temos na Espanha, Cuba e França, para citar três países que têm ensino público de alta qualidade.
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