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Fé na ciência cria expectativa irreal
RAFAEL CARIELLO
DA EQUIPE DE TRAINEES
A evolução da ciência médica
nos últimos dois séculos provocou pelo menos um efeito colateral: a crença de que o progresso
seria irrestrito e que, algum dia, se
poderia acabar com o sofrimento
físico.
Médicos e psicanalistas ouvidos
pela Folha dizem que, por conta
disso, o homem tolera cada vez
menos a dor. Para o psicanalista
Carlos Plastino, 59, do Instituto
de Medicina Social da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a sociedade contemporânea tenta se dissociar, tanto quanto possível, do sofrimento físico.
"Isto é muito diferente de buscar atenuá-lo ou, de alguma maneira, torná-lo mais suportável",
diz Plastino. O ideal de superação
da dor se origina, para o psicólogo, no modo como as pessoas se
relacionam com a ciência. "Ela [a
utopia" integra a perspectiva dominante que, divorciando radicalmente o homem da natureza,
nutre a ilusão de que ela possa ser
dominada e controlada de maneira absoluta", afirma.
O médico João Augusto Figueiró, 50, do Hospital das Clínicas de
São Paulo, concorda. "Passamos
por um período de iluminismo,
de achar que a ciência resolveria
tudo aquilo que a religião não resolvia. Na medida em que a ciência entrou na vida humana, fomos
nos tornando mais intolerantes
com algumas coisas que são naturais."
Para o médico, as esperanças
depositadas na ciência são irreais.
A expectativa que as pessoas têm
dos profissionais de saúde, diz ele,
é muito acima daquilo que eles
podem oferecer.
Além disso, segundo Figueiró,
muitos médicos compartilhariam
dessa visão irreal da ciência. "Há
30 anos, a medicina teve um delírio de grandeza, uma expectativa
de resolução de todos os problemas. Esse ufanismo passou para a
população."
Para o professor de antropologia Eduardo Viana Vargas ,da
UFMG (Universidade Federal de
Minas Gerais), o sonho irreal de
podermos um dia viver sem dor
"é paralelo, por exemplo, à expectativa de que se descubram curas
para todas as doenças e, quem sabe, algum modo para escamotear
a morte".
Retorno ao paraíso
Apesar de a utopia de superação
da dor ligar-se à idéia de progresso da ciência, ideologia historicamente recente, também é possível
encontrar motivações ancestrais
para esse desejo.
O psicanalista Ricardo Goldenberg, no livro "Utopia e Mal-Estar
na Cultura: Perspectivas Psicanalíticas", diz que todas as utopias
estão "organizadas em função de
um horizonte ideal, proposto à
comunidade como o fim a ser alcançado para reencontrar o éden
perdido".
De fato, ao serem expulsos por
Deus do paraíso, a condenação a
que foram submetidos Adão e
Eva foi a de sentirem dor.
"Farei com que, na gravidez, tenhas grandes sofrimentos, é com
dor que hás de gerar filhos", disse
Deus à mulher.
E ao homem: "É com fadiga que
te alimentarás".
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