São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001
 

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JUSTIÇA

Para juiz, condescendência da sociedade pode explicar pequeno número de sentenças por crime de racismo

No Brasil, 142 respondem nos tribunais por ações racistas

IURI DANTAS
DA EQUIPE DE TRAINEES

Há hoje no Brasil menos de 150 processos por crime de racismo, segundo levantamento do Ministério das Relações Exteriores feito para a 3ª conferência da ONU contra o Racismo, realizada na África do Sul no mês passado. Essa é a estatística oficial mais recente no país.
Nos principais Estados, Rio de Janeiro e São Paulo -onde vivem 45 milhões de pessoas-, houve 25 ações penais de 1995 a 1999, época da pesquisa.
A discriminação racial só passou a ser considerada crime nos últimos 12 anos. Até 1989, vigorava a Lei Afonso Arinos, de 1951, que foi a primeira a combater o racismo no Brasil, mas considerava o preconceito uma contravenção. Inexiste estatística oficial sobre o número de processos movidos nesse período. A discriminação racial virou crime em 1989, por texto do então deputado pelo PDT Carlos Alberto Caó, 59.
Para ele, as poucas condenações em tantos anos de lei se explicam por "resistências do Estado brasileiro, principalmente do Judiciário, em cumprir a função que a Constituição lhe atribuiu".
"O Poder Judiciário reflete a sociedade brasileira, e a sociedade não reconhece que há discriminação", afirma a conselheira-presidente da Comissão do Negro e Assuntos Antidiscriminatórios da OAB em São Paulo, Maria da Penha Guimarães, 55. A advogada acredita que a base legal para o combate à discriminação já está pronta. Agora, é preciso implementar políticas públicas para eliminar ou amenizar o racismo.
Na visão de Flávio Dino de Castro, 33, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, "talvez" haja uma indisposição no Judiciário para aplicar a lei, mas isso acontece porque não há um ambiente "cultural, econômico, institucional" propício para a denúncia das vítimas.
Para o juiz, o crime de racismo é visto como um delito que não põe as estruturas sociais em risco no que ela tem de fundamental, devido ao mito de que o país vive em uma "democracia racial". Segundo essa idéia, desenvolvida por Gilberto Freyre na década de 1930, não haveria preconceito por raça e sim uma discriminação social. Os negros seriam discriminados por serem pobres e não pela cor de sua pele.
Embora discorde desse "mito", ele considera que os juízes são influenciados por essa visão, algo corrente na sociedade. Deriva daí o fato de muitas sentenças assinalarem a inexistência de dolo (intenção criminosa) dos acusados.
As principais lideranças do movimento negro -que combate o mito da democracia racial- consideram que a postura da Justiça dificulta o cumprimento da lei.
Ivanir dos Santos, 47, presidente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), afirma que "alguns juízes, na sua convicção preconceituosa de que não há racismo, não aceitam aplicar a lei". Para Ivanir, a solução é "educar o Judiciário".
Christiano Santos, promotor de Justiça de São Paulo, afirma que uma das dificuldades para a aplicação da Lei Caó é que alguns casos são considerados pelos juízes não como racismo, mas como injúria (ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém).
Desde 1997, a injúria, quando baseada em cor ou raça, passou a ser qualificada e implicar pena maior. Até então, chamar um negro de "macaco", por exemplo, seria considerada injúria comum -até seis meses de prisão ou multa. Em 97, o deputado Paulo Paim (PT-RS) equiparou a pena de injúria relacionada a raça ou cor à mesma punição da Lei Caó: três anos de prisão e multa.

Na escola
Para aumentar a chance de as leis contra discriminação serem usadas, Christiano Santos defende que os bacharéis em direito aprendam a lidar com o assunto antes de se formarem. "Não há nenhuma disciplina no currículo das faculdades que os treine minimamente para lidar com o tema."
Na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), pelo menos, a legislação contra racismo já é ensinada. Desde agosto, 35 calouros frequentam o curso de direito constitucional de afro-descendentes.
A iniciativa é fruto de parceria entre a Uneb e a Associação Nacional dos Advogados Afro-descendentes (Anaad). Segundo Mario Cezar Crisóstomo, 41, diretor-secretário da Anaad, mais de 50% dos alunos são da área de direito: advogados, promotores e juízes.
Durante o curso, os alunos aprendem a história e o processo que levaram ao estabelecimento das leis brasileiras de combate à discriminação racial.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto para alteração da lei contra o racismo, batizado de Estatuto da Igualdade Racial.


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