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Novo em Folha 41ª turma
21/06/2006

Na periferia, índios lutam para manter cultura viva

Para não perder contato com natureza, crianças fazem excursão à aldeia isolada

Morosidade de instituições oficiais, avanço da urbanização e falta de áreas verdes deixam ilhados os índios da periferia da cidade

TOMÁS CHIAVERINI
DA EQUIPE DE TREINAMENTO

Bruno Miranda/Folha Imagem
Índios guaranis brincam na aldeia Tekoá Pyau, próxima ao pico do Jaraguá (zona norte de São Paulo)
Índios guaranis brincam na aldeia Tekoá Pyau, próxima ao pico do Jaraguá (zona norte de São Paulo)
Do terreno descampado onde ergueram seus barracos de madeira compensada, os guaranis da aldeia Pyau avistam os 4,9 milhões de metros quadrados de mata do parque do Jaraguá. Instalados a cerca de 15 metros da rodovia dos Bandeirantes (zona norte de São Paulo), eles vivem em uma área de ocupação, depois que a aldeia Jaraguá _a menor terra indígena demarcada do país_ tornou-se pequena para o número crescente de habitantes.

Devido ao espaço que mal comporta suas 57 casas, os 233 habitantes da Pyau (nova, em guarani) não cultivam mais seus cerca de 15 mil metros quadrados (o equivalente a um quarteirão e meio). Sobrevivem de benefícios do governo e de cestas básicas doadas por organizações não-governamentais.

Os homens não têm como plantar, caçar ou pescar e gastam a maior parte do tempo dentro de suas casas, assistindo à televisão e fumando petynguás _cachimbo tradicional.

As crianças, que na tradição guarani são criadas livres e em contato com a natureza, passam o dia entre cachorros sarnentos, brincando com embalagens vazias de refrigerante em meio a canaletas de esgoto que corre a céu aberto.

Fundação

Nascido em Itanhaém (litoral sul de São Paulo), o cacique e fundador da aldeia Pyau, Guyra Pepo, 65, morou em aldeias na Barra do Una e em Parelheiros. No final da década de 80, chegou à aldeia do Jaraguá, já demarcada, com apenas 1,7 hectare (17 mil m²).

Sem espaço para plantar, Pepo decidiu criar uma pequena horta do outro lado da estrada para onde, pouco tempo depois, mudou-se com a família e fundou a aldeia Pyau.

"O pessoal falou que não tinha dono, então eu fiquei. Mas passou um ano e o dono já veio." Desde então, os guaranis lutam pela posse da terra que hoje está pequena. "Já não tem mais lugar, porque nasceu muita criança", diz Pepo.

Mas, mesmo vivendo em condições distantes das ideais, os índios da Pyau mantêm boa parte de sua cultura. As crianças só falam guarani até os seis anos, quando são alfabetizadas em português e, diariamente, reúnem-se para entoar cantos e rezas de agradecimento ao deus Nhanderu, divindade máxima dos guaranis.

Ninguém trabalha fora da comunidade e, todos os dias, quando anoitece, os habitantes da Pyau se reúnem na casa de reza. Ali eles cantam orações e discutem os acontecimentos do dia, sempre envolvidos pela fumaça dos petynguás e de fogueiras acesas dentro da casa, a única feita de madeira e, seguindo a tradição, com a porta voltada para o nascer do sol.

Para não romper a relação com o ambiente que ainda resta, pelo menos duas vezes ao ano as crianças da Pyau são mandadas para a aldeia Peguaoty, situada dentro do parque Intervales, a cerca de 30 quilômetros de Registro (sul do Estado de São Paulo).

Há, no Estado, 15 parques que abrigam aldeias (leia mais na página ao lado). Cinco delas já são terra indígena e uma está em processo de demarcação na Funai (Fundação Nacional do Índio), segundo o CTI (Centro de Trabalho Indigenista).

Longe da cidade

A área da aldeia Peguaoty ("muita mata virgem", em guarani) ainda não está homologada, mas isso não impede que lá os guaranis vivam uma situação bem diversa dos índios que moram na cidade. No meio da mata, com caça abundante, estão cercados por três rios. Têm todo o espaço necessário para plantar e constroem suas casas com madeira e palha.

Sem energia elétrica, a vida na Peguaoty obedece o ritmo guarani. Ao contrário dos índios da cidade, que dormem um pouco mais tarde para assistir à novela e, vez ou outra, até trocam os rituais do início da noite pela televisão, os que vivem no parque se recolhem logo após as reuniões.

Segundo o cacique Karai Jeguaka Wera, líder da Peguaoty, que já morou em uma aldeia próxima à cidade do Rio de Janeiro, é muito difícil manter a tradição guarani no meio urbano. "Ali não é vida, não é aldeia. Assim acaba a comunidade guarani, assim acaba o povo guarani", diz Jeguaka.

Para se manter longe da cidade, Wera diz ter encaminhado um pedido à Funai no intuito de que os 40 mil hectares do parque estadual Intervales sejam transformados em terra indígena.

"Aqui, as crianças saem para brincar, a gente sai para fazer uma plantaçãozinha. Nós mostramos para as crianças como é que planta. Se você falar em plantar lá na Pyau, as crianças não vão entender nada."

Demarcação

Enquanto os índios de Intervales pedem que as terras do parque sejam demarcadas para seu usufruto, os que vivem aos pés do pico do Jaraguá querem o reconhecimento da aldeia Pyau como terra indígena.

A homologação da aldeia encontra-se, atualmente, em andamento na Funai. O primeiro passo do processo, um trabalho de identificação e delimitação, foi concluído por um grupo de trabalho multidisciplinar.

O documento apontou para o direito legítimo dos guaranis à área. A Funai, contudo, não aceitou os argumentos dos antropólogos e pediu uma revisão do trabalho, ainda sem prazo para ser concluído.

"A gente não consegue provar a tradicionalidade dessa área", diz Nadja Havt Bindá, antropóloga e coordenadora de identificação e delimitação de terras da Funai. Os mecanismos de homologação atuais da Funai são baseados no fato de que os índios ocupam a terra a ser homologada antes de qualquer outro dono.

Segundo Bindá, a grande mobilidade dos guaranis dificulta a identificação dos lugares a que os índios teriam direito e impede a demarcação da Pyau. "É necessário, sim, aumentar a área disponível, mas não temos como fazer isso."

Ainda de acordo com a antropóloga da Funai, o governo precisa criar uma nova forma de demarcação que atenda às particularidades de cada etnia.

Bruno Miranda/Folha Imagem
Casa da aldeia Peguaoty, situada dentro do parque Intervales; construída de madeira e palha, edificação segue a tradição guarani</b>
Casa da aldeia Peguaoty, situada dentro do parque Intervales; construída de madeira e palha, edificação segue a tradição guarani
Futuro

Como o território onde hoje se encontra a aldeia Pyau já não comporta mais as 58 famílias, os guaranis pedem também que sua área seja ampliada.

A solução pode vir de um acordo com a Dersa, que propôs a compra de um terreno próximo à aldeia, como medida compensatória por supostas irregularidades na execução do Rodoanel. O Ministério Público chegou a embargar as obras do trecho sul, atualmente em andamento, até que a Dersa se propôs destinar R$ 6 milhões em compra de áreas para as três aldeias de São Paulo.

Ouça o canto das crianças.
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