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Novo em Folha 41ª turma
21/06/2006

Íntegra de entrevista: cacique Karai Jeguaka Wera, líder da aldeia Peguaoty

DA EQUIPE DE TREINAMENTO

Líder da aldeia Peguaoty, situada dentro do parque de Intervales, o cacique Karai Jeguaka Wera recebeu a reportagem da Folha em uma das casas da aldeia. Em torno de uma fogueira, fumando petynguá, ele falou sobre a relação dos guaranis com a natureza, o direito original à terra e as dificuldades enfrentadas pelos índios na cidade.

FOLHA - Há quanto tempo a aldeia ocupa essa área?

KARAI JEGUAKA WERA - - Aqui, nesse espaço, a aldeia se formou mesmo em 2000, mas antes já havia passagem de índio. Nós guaranis sabemos que a costa do mar, desde o sul até o Espírito Santo, sempre foi do nosso uso e da nossa moradia. Eu sempre costumo explicar que do meu entendimento é assim: quando houve a primeira invasão, há 500 anos atrás, era tudo povoado de índio guarani, tupiniquim e tupinambá. Aí no nosso sentimento, até hoje nós consideramos como terra tradicional todo esse território aqui, mesmo se não tivermos direito.

FOLHA - Como garantir esse direito?

WERA - O ser humano precisa conversar, entender, e respeitar a lei que dá direito ao povo. Antes do descobrimento, durante os milhares de anos que nós ocupamos essa região da costa do mar não havia esse problema de violência, porque indígena não tinha essa divisão que há hoje. Aqui, com toda essa briga que nós estamos passando com processos contra a Funai, contra a Funasa, mesmo assim nós estamos aqui e as crianças estão com saúde, tem espaço para eles brincarem, tem espaço pra trabalho, tem espaço pra respirar ar puro não ar poluído. Então nós agradecemos pai único que nós temos que criou essa terra para todos nós.

FOLHA - Como é a relação de vocês com a natureza?

WERA - Nós sabemos a época de caçar, de pescar, de armadilha, de tudo. Só que isso não está no papel escrito, mas nós temos na nossa cabeça, no nosso coração, no nosso entendimento. Então isso passa de geração para geração e até hoje ainda existe porque nós respeitamos. Os bichinhos também têm seu jeito de criar produzir, então tudo isso nós sabemos. Mas precisamos de água boa, mata, espaço pra nós, pra nossa família, pra nossas crianças. Nós temos conhecimento de folha, de remédio, raiz, casca de madeira, tudo isso. Mas nós não destruímos, tiramos um pouco aqui, outro pouco lá em cima...

FOLHA - Por que vocês escolheram essa terra e não outra?

WERA - Deus mesmo diz pra nós que aquele lugar serve pra formar uma aldeia, porque tem mata e tem rio. Nós estamos aqui não por querer invadir, querer destruir, nós estamos aqui para formar uma aldeia, para criar nossas famílias. Nós não estamos aqui por nós ou por que Funai indicou. Foi nosso Pajé que indicou e o Deus que mandou nós para cá.

FOLHA - Antes de vir para cá onde vocês viviam?

WERA - Nós estávamos no Estado do Rio, só que lá também não tinha água boa, não tinha espaço de plantio, não tinha nada, era tudo montanha, pedra, não serve para aldeia. Nós precisamos ter espaço para viver, para mantermos nosso conhecimento. Porque espaço tem, não só aqui no Estado de São Paulo, mas em todos os Estados. Tem terras sobrando, mas o governo quer segurar para que? Por isso que eu falei que não estão sendo respeitadas as leis que nós temos.

FOLHA - Era perto da cidade?

WERA - Era.

FOLHA - É muito diferente viver perto da cidade e em uma área como essa, do parque?

WERA - Viver perto da cidade é uma coisa que eu vou falar... mas falando até de nossos parentes que vivem na cidade, no Jaraguá, no Parelheiros e no Tenondé Porã. As crianças que moram lá não têm essa organização que nós temos, porque não têm espaço, não têm tranqüilidade, têm aquela correria de carro, TV, som de rádio que fica batendo nos ouvidos dia e noite. Então ali não é vida, não é aldeia, assim acaba a comunidade guarani, assim acaba o povo guarani. Tem muitas coisas ruins, tem bebida alcoólica, tem droga e não tem espaço. E o índio nunca foi assim espremido, o índio sempre foi de espaço livre que nem aqui, longe da cidade. Aqui as crianças saem pra brincar, a gente sai pra fazer uma plantaçãozinha. Nós mostramos para as crianças como é que planta. Se você falar em plantar lá na Pyau as crianças não vão entender nada.

FOLHA - Como é a relação de vocês com o parque Intervales?

WERA - Com o parque nós estávamos em briga. Eles não vêm aqui incomodar. Eles falam que tem outra área aqui no Vale do Ribeira que pode formar aldeia, mas não aqui no Intervales. Só que outra área que não tem mato, não tem rio? Nós queremos aqui. Nós já estamos aqui há seis anos e não tem dinheiro que pague para mudarmos daqui. E se não tem demarcação aí não tem como construir escola porque é área de parque. Eles não deixam construir postinho de saúde porque é parque.

FOLHA - Como seria feita a demarcação de uma terra que pudesse manter a tradição guarani de se mudar sempre?

WERA - Muita gente tem falado que os índios guaranis não param, mas não é bem isso. Porque hoje em dia, nós também temos que entender que está difícil de conseguir uma área sem briga. Todas as áreas com mata sobrando viraram parque. Aí falam de índio não parar, mas e esse povo que hoje formou São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis, de onde que veio esse povo? Nós sabemos que são estrangeiros que invadiram o Brasil e agora índio que não tem direito de ter terra.

FOLHA - É possível manter o modo de vida tradicional guarani sem ter que mudar de lugar?

WERA - Precisa. O que nós temos que ter é uma área isolada com bastante mata e rios.

FOLHA - Vocês chegaram a encaminhar um pedido oficial para que a Funai demarcasse essa área?

WERA - Já tivemos pedido em Brasília e até agora estamos sem saber o que fazer. Mesmo o pessoal da identificação fala que é área de preservação, então não tem como fazer o trabalho. Eu fico assim sem querer conversar com esse pessoal, porque foi invadido em 1500 agora formou todas as cidades em todo o canto. Sobrou pouca terra e aquele pouco que sobrou não serve para os índios porque tem que preservar. Os índios não queriam deixar a aldeia aí foram lá e mataram todos. E quem na época documentou que alguém matou trezentos índios que não queriam entregar a aldeia deles?

FOLHA - Qual o tamanho da área que vocês precisam?

WERA - Aqui nós precisamos de 40 mil hectares, mas pra manter do jeito que está. Não é pra destruir, não é pra fazer uma fazenda, não. É pra manter do jeito que está a mata hoje. Se demarcar hoje e essa árvore está aqui, ela vai continuar em pé enquanto tiver mundo, se o vento não derrubar.

FOLHA - O que o senhor acharia se chegasse luz elétrica à aldeia Peguaoty?

WERA - Até postinho de saúde e escola eu acharia que dava, porque atendimento de saúde e escola fica difícil sem energia. No resto eu acho que dá pra viver bem sem.

FOLHA - E se um dia a cidade chegar até a aldeia?

WERA - Por isso mesmo que nós queremos ter uma área garantida, porque aí a cidade só chega até a divisa?

FOLHA - Qual a importância da construção tradicional de casas para os guaranis?

WERA - Todas as nações de índio têm seu jeito de construir suas casas e do jeito que o Deus ensinou a gente mantém nossa casa aqui. Assim ajuda nosso conhecimento a continuar.

FOLHA - Qual a importância do Petynguá na cultura guarani?

WERA - É muito grande porque quando eu estou fumando cachimbo eu estou pensando, na cabeça e no coração, para o Deus me dar entendimento para eu trabalhar com a comunidade, com o pessoal de fora, para eu agradecer a natureza.
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