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Novo em Folha 42ª turma
08/12/2006

Íntegra de entrevista com dois ex-kamikazes

DA EQUIPE DE TREINAMENTO

Íntegra da entrevista com Tokio Wakita e Kiyoshi Tokudome, ex-kamikazes que hoje vivem em São Paulo.

Folha - O que está escrito na bandeira?

Tokio Wakita - Professores do ginásio e amigos assinaram. São palavras heróicas. A bandeira tem 62 anos.Tokudome não estava aqui neste dia (olhando para a foto do grupo tirada em 1968), pois ele estava no Paraná.

Folha - Onde está o sr. na foto?

W - Eu não estou nesta foto porque eu não bebo. Eu não fui nessa reunião. Mas como aqui diz, o encontro dos 16 começou com a minha crônica.

Folha - O deputado João Sussumu Hirata (na foto) também freqüentava os econtros?

W - Ele gostava. Quando nós nos reuníamos, sempre avisávamos: doutor, tal dia, tal hora. ‘Tá bom!’ Ele também gostava de uísque. Então ele participava, apesar de ser deputado federal. [olha de novo a foto] Já faz muito tempo, sete daqui já morreram. Essa revista saiu há mais de 30 anos [repórter: 38 anos] (risos de Wakita). O tempo passou, as pessoas já mudaram.

Folha - Nós fomos à casa do Makita.

W - Ah é? Eu nunca fui, mas eu sei que ele estava morando no Parque Continental. Como é que vocês conseguiram esses contatos?

Folha - Muitas pesquisas...

W - Sei. Aqui eu trouxe mais uma coisa: bandeira de marinheiro naval.

Este pano é linho. Esta é a verdadeira bandeira que usa o navio de guerra. Porque qualquer pano estraga logo, com o vento. Este aqui agüenta.

Folha - Quando o sr. chegou ao Brasil?

W - Eu estou no Brasil desde 1954. Eu morei por um ano e pouco no interior. Depois mudei para São Paulo. Depois não mudei mais.

Folha -E o sr. já é aposentado?

W - Sou aposentado. Não tem serviço com esta idade.

Folha -Onde trabalhava antes?

W - Por acaso você conhece a Cooperativa Agrícola de Cotia? Cooperativa grande. Eu trabalhei lá durante 23 anos, até a data de aniverário de 50 anos. No dia do aniversário, eu sai de Cotia.

Eu cheguei aqui no Brasil com a idade de 25 anos. Assim que terminei a escola, o estudo no Japão, eu saí e vim. Até os 25 anos eu estudei. Cheguei aqui como eu falei, um ano eu passei no interior, no meio do mato, no Paraná, em Paranabaí, quase divisa com o Mato Grosso. Há 50 e poucos anos, não tinha asfalto, não tinha nada, não tinha luz, só lampião. Depois, eu vim para São Paulo e entrei para a Cooperativa de Cotia. Eu ainda tenho dificuldade para falar português, mas, naquela época, eu tinha mais dificuldade. Não entendia nada. Apesar de 26 anos de idade, entrei como auxiliar de escritório, um salário minímo. Vinte e seis anos! Eu trabalhei até os 50 anos.

Depois eu sai de Cotia e montei uma granja de suínos. Em seis anos, acabou toda a granja, eu perdi tudo (risos).

Folha - Por quê?

W - Por causa do preço, que não ajudou, né? Porque, naquele ano em que eu perdi tudo, a produção de milho aqui no Brasil não deu certo. Importava ração dos EUA e, dando artigo importado, aí não dá certo, né? O preço de venda não acompanhava o preço do milho. Depois eu mexi por cinco ou seis anos, já com 56 anos, com exportação de produtos para o Japão. Exportei madeira e depois pedra. Aí me aposentei. Já faz mais de dez anos. Já chega, chega de trabalhar.

Folha - O que o sr. gosta de fazer agora que está aposentado?

W - Quando eu trabalhava na cooperativa --eu era assalariado-- mandava crônicas para os jornais japoneses. Quando me aposentei, comecei a mandar outra vez. Até agora escrevi umas 200 e poucas. Dentro dessas 200 e poucas, tem sete que falam sobre a vida na Marinha. Fora isso, eu gosto de leitura. Leitura e escrever. E caligrafia japonesa. Uso pincel. Gosto de ler em japonês, porque em português eu tenho dificuldade.

Tokudome me ligou hoje de manhã. Perguntando o horário (da entrevista).

Folha - O sr. já voltou alguma vez para o Japão?

W - Eu já fui para o Japão 13 vezes desde que eu mudei para cá. Quando ia para lá, gostava de passear, mas também participava de uma cerimônia Associação Fukuoka do Brasil.

Eu fui o presidente da associação. Eu tinha que levar para o Japão os assuntos da associação, conversar com o governador da província de Fukuoka e participar de festas. Quando era presidente, fui duas ou três vezes.

Quando eu tinha o negócio de exportção, também fui de três a quatro vezes para achar mercado para exportação da mercadoria. E a passeio também fui muitas vezes. Então, no total, foram 13 vezes.

Folha - O sr. sente falta do Japão?

W - Não, já chega.

Folha - O sr. prefer o Brasil?

W - É. Já chega.

Folha - O sr. tem família lá?

W - Não tenho mais.

Folha - O sr. se casou?

W - A minha esposa é brasileira, mas filha de japoneses, segunda geração (nissei). Minha esposa é minha prima. A mãe de minha esposa era irmã mais nova do meu pai. Então, a esposa não fica prima?

Folha - Sim. Conheceu ela aqui?

W - Não. Eu ainda estava no Japão, estava trocando correspondência com minha esposa atual. Naquele tempo, ela morava em Lins. Ela se formou na escola industrial e ensinava na mesma escola. Já a conhecia por cartas ou trocando fotos (muitos risos).

Quando eu cheguei aqui, naquele tempo, levava 45 dias de navio até Santos. Minha esposa atual estava me esperando no porto. Foi assim que começou, né. Eu não tinha intenção de casar logo, mas mãe e pai de minha esposa queriam que eu casasse logo porque eu tinha dificuldade em língua portuguesa e não dá para fazer nada sozinho. Alguém tem que ajudar. Minha esposa falou que casou com intenção de ajudar em alguma coisa (muitos risos).

Eu vim para ficar um ano ou dois e depois voltar para o Japão, para continuar meus estudos. Naquela época, o mestrado era tempo integral, e durava dois anos. Por isso eu estudei até 25 anos de idade. Cadeira de comércio internacional.

Eu terminei, naquele tempo, o curso mestrado e ia fazer o doutorado, mas casou, acabou. Não tem jeito de voltar, não tem dinheiro...

Folha - O sr. mora com quem hoje?

W - Moro com minha esposa e filha. Eu tenho um filho e uma filha. Essa filha, já passaram 50 anos mas ela não casou. Não vai casar. Não quer casar.

Quando o Tokudome chegar, minha parte acabou.

Folha - Como eram as reuniões dos ex-kamikazes?

W - Nós nos reuníamos de vez em quando, não tinha data determinada. O dia em que começou a Segunda Guerra Mundial, oito de dezembro, a gente reunia. O dia em que o Japão perdeu a guerra, dia 15 de agosto, também. Mas neste dia oito a gente não vai fazer nada, já não tem mais pessoas para reunir, ué.

Folha - Faz tempo que você não vê os outros?

W - Faz um ou dois anos que não vejo o Tokudome. O Yoshida faz tempo, uns dez anos.

O Inoue é o mesmo do Tokudome, quando encontrei com ele, estavam os dois juntos, o nosso último encontro.

Folha -A Carmen Ribeiro (mulher de Minoru Makita) falou que vocês faziam piqueniques também...

W - (muitos risos) Piqueniques não digo, mas um da nossa turma tinha chácara em Caucaia do Alto. Mas aqui nesta foto está só turma de Yokaren [o treinamento que os kamikazes]. Mas, além dos Yokarens, tinha outra turma de marinheiros japoneses. Tem muitas turmas. Juntando todas, ficariam 50 e poucas pessoas naquele tempo. Mas São Paulo não tem lugar para agüentar 50 e tantas pessoas, então a gente ia na chácara. Nós hasteávamos a bandeira, cantávamos o hino nacional, faziámos bagunça, né? Bebia cerveja, pinga. Também neste tipo de "bagunceira", geralmente dia 8 de dezembro. Dias sgnificativos, né?

Folha - As esposas, as famílias também iam a esses encontros?

W - Não, não. Não era proibido, mas mulheres não participam, né, desta bagunceira [muitos risos]. Não combina com o ambiente.

Folha - E o treinamento era duro como o sr. descreve nas crônicas?

W - É, saía sangue. Duro [risos]. Imagina, com idade de 15 anos, à noite chorava. Saudades de mãe. "Mamãe!" [risos].

Folha - E sua família, o que achou?

W - Quando eu entrei para ser voluntário na Marinha, mamãe me pediu para esperar até a idade de 20 anos, [quando era obrigatório entrar no exército]. Minha mãe pediu para mim, por favor, esperar até a idade de 20 anos. "Continua os estudos". Eu falei: "Não! Se esperar muito, guerra termina. Eu tenho que ir antes de terminar essa guerra". Se [a guerra] prolongava mais um ano, aí já tinha ido, por causa da idade. Só fiquei em treinamento.

Folha - Por que o sr. queria ir?

W - Seria uma coisa para a pátria. É esse o motivo. Não tem outro motivo. Porque, naquele tempo, entrar para a Marinha ou o Exército significava, eventualmente, morrer. Por isso que minha mãe pediu para esperar. [muitos risos].

Folha -Tokudome chegou.

W - Chegou, mas com atraso de meia hora. Cheguei meia hora antes. Não gosto de atrasar.

Folha - Depois que acabou a guerra, o sr. tinha 16 anos. E depois, voltou para a escola?

W - Voltei, porque não tinha terminado ainda. Depois de um ano, eu me formei no ginásio e cheguei na escola superior.

Folha - Numa das crônicas, o sr. fala de uma associação de ex-combatentes de guerra. É lá no Japão?

W - Não, aqui também tinha, mas, agora, já desmanchou. Marinha e Exército também. Tinha bastante associação --navio de guerra, turma de submarinos, assim por diante. Mas, com o tempo passando, foi diminuindo. Então, estão diminuindo as associações. É uma tendência natural, não tem jeito. Também, passou mais de meio século!

[Tokudome chega na sala. Falam em japonês durante vários minutos, muitos risos]

W - Eu falei que já fiquei uma hora, agora é sua vez. Já terminou minha parte [risos].

Kiyoshi Tokudome - Só nos dois?

T - [apontando a foto do grupo de 1968] - Mais de 30 anos isso aí, né? Conheço tudo. Nessa época, eu estava no Paraná, tocando a lavoura.

Folha - O sr. faz o que hoje?

T - Já aposentei. [pausa] Também, já é hora, idade.

Folha - Sr. Tokudome, o sr. veio quando para o Brasil?

T - 1956.

Folha - O sr. é de que parte do Japão?

T - Kanoshima.

Folha -O sr. ainda é presidente da associação de Kanoshima?

T - Já fui.

Folha -Por que o sr. veio para o Brasil?

T - Brasil? Brasil é um país mais grande, né? [risos] Já o Japão, depois da Segunda Guerra Mundial, estava todo destruído.

Folha - O sr. pode contar como foi o seu alistamento?

T - Não era obrigatório naquela época. 20 anos, acima, já é outra coisa. Ele também.

[Tokudome aponta para o livro - esse era o uniforme com 7 botões do Yokaren. O uniforme de verão é branco]

Folha - O sr. tinha quantos anos quando se alistou

T - 16 anos.

Folha - E por que se alistou?

T - Naquela época, Japão já estava caindo, né?

Wakita - Japão estava perdendo, né? Todo mundo, jovem, tinha espírito naquele tempo. Agora mudou. Jovem de hoje não tem esse tipo de espírito, não.

T - Tinha que salvar o país, né?

Folha - Mas deve ter sido uma decisão difícil.

T - Mas hoje e aquela época: mudou completamente, né?

Folha - E a sua família soube?

T - Não. Porque eu entrei em um dos últimos yokarens. Estava no meio do treinamento quando a guerra acabou. Eu estava em Nagasaki, a base era lá.

Folha - Como eram os treinamentos?

[Tokio ri]

T - O treinamento era difícil, né?

Folha - O sr. acordava que horas?

T - Acordava às seis horas.

Folha - E fazia o quê?

T - Fazia limpeza e, depois [silêncio]

Folha - No dia que caiu a bomba de Nagasaki, o sr. estava na cidade?

T - Não, não é cidade. 20 quilômetros de distância.

Folha - O sr. lembra desse dia?

T - Ninguém estava sabendo de bomba atômica. No dia seguinte, nós fomos à cidade de Nagasaki mesmo, ficamos lá quatro dias. Tudo destruído, estrada também. Como tinha morto.

Folha - O sr. ajudou a salvar as pessoas?

T - Não. Salvação já é outra coisa. Nós só fazíamos limpeza, e machucado e morto e juntando tudo [gesto].

Folha - Nós entrevistamos outro ex-kamikaze que estava em Nagasaki quando a bomba explodiu. Ele volta todo ano para o Japão para fazer exames médicos.

T - Eu também fui uma vez, mas não tinha nada, aí já larguei, né? Até hoje estou desse jeito.

Folha - O sr. então já voltou para o Japão depois de...

T - Já. Três, quatro vezes.

Folha - Tem vontade de voltar para lá.

T - Vontade, mas... Quando pai e mãe estão, aí é outra coisa, né? Agora irmão já faleceu, fica longe aí.

Folha - E como o sr. conheceu o Tokio?

T - Ele trabalhava na cooperativa de Cotia naquela ocasião. Eu também trabalhei em Cotia.

Folha - O sr. também freqüentava esses encontros?

T - É. Cada ano, como aumentava. Tinha 40, 50 pessoas naquela ocasião.

Folha - Hoje o sr. mora com quem?

T - Só esposa.

Folha - Tem filhos?

T - Filhos, tudo separado. Tenho 3 filhos, mas é no sábado e domingo que eles aparecem brincando com netos [risos]

Folha - O sr. lembra do Makita?

T - Conheço.

Folha - A gente leu nessa matéria que ele fala que, se a democracia ou o cristianismo estivessem em risco, ele ia falar para o George, filho dele, para ele morrer também. Vocês falariam o mesmo para os filhos de vocês?

T - [risos] Makita já faz tempo que faleceu. [risos]

Folha - Onde vocês se encontravam?

Wakita - Onde tinha saquê para beber [risos]. Como eu não tomo nenhum álcool, só fico olhando. Bebo Coca-Cola.

Folha - Mas a matéria da revista "Realidade" fala que, antes de o sr. ir aos treinamentos, o sr. bebeu saquê frio.

W - Para despedida. É costume japonês. Geralmente, a gente toma saquê quente, mas, quando é despedida, tem que ser frio. Só despedida.

Folha - Foi a única vez que o sr. tomou saquê frio?

W - [risos] Não digo a única vez.

Folha - Tokudome, o sr. também tomou o saquê frio?

[Wakita dá uma gargalhada] Pinga!

T - Saquê já é outra coisa, né? Para mim, é ou pinga ou uísque. Só bebida forte.

Folha -O que o sr. gosta de fazer hoje, Tokudome?

T - Tenho pouco terreno, mas planto verdura, muda...

Folha - E o sr. também gosta de escrever?

T - Às vezes, né?

Folha - Sobre a guerra também?

T - Não (gargalhada). Esse já passou, né?

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