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Novo em Folha 42ª turma
29/06/2007

Entrevista: Eugênia Coelho, 36, refugiada angolana

da EQUIPE DE TREINAMENTO

Eugênia Coelho, 36, refugiada angolana, cursando o segundo semestre de enfermagem na FMU.

De que parte de angola você é?
- Sou da Capital. Nascida em Luanda.

Quantos anos você tem?
- 36

Em que ano você veio ao Brasil?
- 99

Por que você saiu de Angola?
- Em 99 meu país ainda encontrava-se em conflito. Então, por que não sair? Se você não sabe quando esse conflito vai terminar. Muitas pessoas optaram, assim como eu, por sair do país.

Por que o Brasil?
- O Brasil é um país irmão e fala-se a mesma língua. Por que então ir para um país que fala outra língua? É mais fácil. Até você aprender outra língua, demora muito.

E qual a imagem do Brasil em Angola?
- Em Angola é tudo uma maravilha, mas é uma pena, que agora tem muita violência. Eu quando vim pra cá, não sabia que tinha tanta violência assim. É um país que ao mundo inteiro passa uma certa tranqüilidade, é a imagem que o Brasil dá para o mundo, independente de ainda estar no terceiro mundo, é aquela imagem de tranqüilidade...

E essa imagem que você tinha corresponde?
- Hoje já não. Mas também, se você viver no Brasil e procurar lugares para você ficar, ainda consegue viver.

A maioria das pessoas que saíram de Angola ficaram nos países vizinhos..
- Não, alguns foram para a Europa e outros foram para a América. Se você parar para ver, a maior parte dos imigrantes não vão para os países vizinhos, eles vão para o mais longe possível..

Muitos vão para Portugal...
- Portugal já é casa. Portugal e Brasil, por causa da língua mesmo e por estarem fora do continente africano. A maior parte das pessoas que estão em África ou são bolseiros, ou estão a estudar, mas de imigrantes mesmo, são poucos.

E você tem contato com outras pessoas que saíram de Angola?
(...) Há pessoas, por exemplo, que vivem em Londres. Eles têm muito mais vantagens do que os que estão no Brasil. Cada um tem direito a uma casa...Eles têm muitas vantagens, de longe mesmo. Mas também eu tenho que louvar o que eu consegui. Não sei se eu talvez conseguisse chegar até os países aonde ele chegaram. O país que eu pude chegar é o Brasil. Então tenho que ser grata ao país que me acolheu. Aqui eu me identifiquei, fiz amigos, estou a estudar. A FMU, o dr. Edvaldo Alves da Silva, que é o presidente desta instituição, me deu uma bolsa de 100%, para fazer o curso de enfermagem.

E como você conseguiu essa bolsa?
- O dr Edvaldo é formado em direito, ele luta por essa causa, o lado humanitário...Eu prestei o vestibular normalmente e pedi uma bolsa. Ele marcou uma audiência comigo, me ouviu, e me cedeu.

Em Luanda você só falava português?
- Nós temos lá 18 dialetos. Cada região lá tem uma língua. Em Luanda se fala português, por influência da colonização portuguesa. Pois ocorreu o mesmo que no Brasil. Eu sou kimbundo, então minha língua materna seria o kimbundu. Mas não lhes convinha (aos portugueses), pois eles tinham medo de tudo o que a gente falava e eles não entendiam, acham que estávamos combinando de matar eles. Eles fizeram as pessoas aprender o portugues na marra, para deter o controle da situação. Só que depois houve a revolta nos anos 60, assim como no Brasil tb, e os angolanos voltaram-se contra os portugueses, que escurraçaram a eles, em 65, por aí. Em 11 de novembro de 1975 foi a independência de Angola.

O que você fazia em Angola?
- Eu fiz curso técnico de enfermagem e trabalhava na área de saúde. Quando eu vim para cá optei por fazer - agora né, fiquei uns cinco anos sem ter essa chance. E agora consegui fazer essa faculdade de enfermagem.

E quem mais veio com você?
- Eu tenho duas filhas.

Nascidas em Angola?
- Vieram pequenas. Se você as ver, vai achar que são brasileiras. Sem sotaque, todos os truques brasileiros elas têm.

E como vocês vieram?
- De avião. Parou no Rio de Janeiro. Eu já conhecia o Brasil, o Rio de Janeiro, conheci quando eu tinha uns 14 anos. Tinha vindo passear. Depois eu casei. E depois eu pensei por que não, eu já conhecia o Brasil, vou para lá com as minhas filhas, morar. Não sei quando essa guerra vai acabar mesmo. Vou ficar aqui de braços cruzados esperando que uma bomba caia e mate a mim e a minhas filhas, que são inocentes, nem sabem o que é guerra, nem pra que existe isso. Vou viver num país onde eu tenho mais tranqüilidade.

Pra vir você recebeu alguma ajuda?
- Não, com o meu dinheiro mesmo. Quando eu cheguei, tinha um amigo meu que já vivia aqui. Eu perguntei como fazer para ficar no Brasil, e eles me indicaram para a Cáritas. Aí a Cáritas me indicou para a Polícia Federal. Um advogado de lá (PF) fez uma entrevista comigo, perguntou algumas coisas, explicou os parâmetros que eu tinha que seguir para poder ficar. Aí eles mandam o processo para Brasília, onde decidem se você pode ficar ou não.

Antes de estudar enfermagem, o que você fazia?
- Eu fiz vários cursos. Nesse período que fiquei aqui, fiquei dois anos sem documento, sem poder fazer nada. Mas a Cáritas tem mil e um convênios com empresas que dão cursos para estrangeiros. Mas eu fiz vários cursos, no Senac.

Mas você chegou ao Rio? E ficou algum tempo lá?
- Não, vim embora direto. Vim de ônibus.

Por que São Paulo?
- Para quem quer crescer, São Paulo é melhor. No Rio eu estava me sentindo em Angola de novo. Precisava de um lugar fora de Angola. Aqui em SP as pessoas correm mais atrás das coisas.

Quantos anos as suas filhas tinham quando você veio ao Brasil?
- A mais velha tinha 10. A pequena tinha 7. Agora a mais velha vai fazer 18 e a pequena vai fazer 15.

E você pretende voltar para Angola quando terminar o curso?
- Sim. Eu acho que todo mundo que está fora de sua terra aprende coisas novas, isso é importante. Então, o objetivo é levar tudo o que a gente aprende fora para o nosso país, que precisa muito, ajudar no desenvolvimento do país.

E suas filhas?
- Estão numa guerra muito grande, elas não querem voltar para Angola.

Elas estudam?
- A mais velha está na faculdade de economia.

Vocês moram aonde?
- Na zona sul de São Paulo. E elas não querem voltar mais, tenho conversado muito com elas sobre isso - sobre o que me levou a trazê-las para cá, que aqui elas têm uma chance de aprender. "Mas mãe, a gente já não se lembra de mais nada de Angola, cresci aqui, meus amigos estão todos aqui." Eu digo que um dia as amigas delas vão visitá-las em Angola também. Até é bom, que vai dar para fazer um intercâmbio. Um dia elas te receberam aqui, e um dia você as receberá lá. Estou tentando convencê-las...

Você tem família em Angola?
- A minha família está toda lá, só o meu pai que já não é vivo. Mas a minha mãe, meus irmãos são vivos ainda.

O que eles te dizem? Para você ficar, voltar?
- Olha, está muito dividido. Lógico que dá saudades. Mas pelo o que eu vejo na internet, pelas conversas no telefone...uns acham melhor que eu fique aqui. Outros acham melhor que eu volte. Mas na minha concepção, eu quero voltar.

Por que alguns acham melhor você ficar aqui?
- Porque aqui eu já tenho outro ritmo de vida. Eles acham que talvez eu não vá me adaptar com a realidade, mas eles se esquecem que eu saí de lá adulta. Eu acho que não vai ser tão difícil pra eu voltar. Mas eles acham que minhas filhas, que vieram pequenas, vão sofrer muito.

O que eles falam sobre as condições em Angola?
- Sobre o saneamento básico, que ainda está muito precário, habitação. A economia não está estável.

Mas a economia está crescendo muito.. - O país hoje é fértil. Tanto é que um monte de brasileiros estão lá, ajudando a reconstruir Angola. Angola vê o Brasil com bons olhos. Assim como o Brasil se inspira nos EUA, Angola se inspira no Brasil. Tudo que vem do Brasil é aceito lá. Eu tenho uma mercadoria em Angola, porque é uma tecnologia que eles acreditam, porque eles vêem as coisas que os brasileiros fazem no país, e acreditam que o Brasil também pode fazer lá. Por isso que hoje aumentou o intercâmbio entre Angola e Brasil, pois é um país que tem coisas palpáveis para se inspirar. "Eles conseguiram, eles são bons, acreditamos no brasil, venha Brasil".

Essa imagem boa do Brasil vem desde quando?
- Desde muito tempo.

Seus parentes dizem algo a respeito das minas?
- Sim. Hoje em Angola o processo de desminagem vem sendo feito há alguns anos. Mas até hoje ainda existem lugares com minas. Você hoje passou por um lugar no nordeste do Brasil. Hoje você pode passar num lugar, e a mina não aciona. Mas devido ao clima e outros fatores, amanhã você pode passar por esse local e a mina acionar. Tem a ver com o solo também. A mina pode estar bem compactada. Daqui a um tempo o terrreno está diferente e ao passar lá novamente, ela pode acionar. Então é um processo lento. A desminagem é feita por regiões, aos poucos. Ficaram 30 anos colocando minas. Umas estão mais para o fundo, outras mais para o meio, não tem como tirar tudo.

Sua família ficou em Angola durante a guerra?
- Uma irmã minha foi a Portugal, mas ela já voltou para Angola, há dois anos.

O que ela te diz?
- Ela não teve tantas chances como eu tive, de fazer uma faculdade. Então ela voltou, mas está vivendo como as pessoas que ficaram lá, está igual.

Há algum preconceito de quem ficou para com quem saiu e voltou?
- Que eu saiba não, mas eu acho que você quando sai, e pensa em voltar, tem que voltar com uma formação, para fazer a diferença. Você tem que levar todas as experiências que você viveu para poder ajudar em alguma coisa. As pessoas que vem de fora, acabam sendo cr´ticas, pois já vem de fora com outra visão. Em vez de criticar, por que não ajudar? Eu acho que todo mundo que saiu, tem que vir com uma concepção de mudar, poder fazer alguma coisa pelo seu país.

Você acha que os angolanos que estão como refugiados pensam assim? Eles querem voltar?
- Muitos têm. Muitos não voltaram até hoje por falta de condições financeiras, porque é caro. É uma das coisas que dificulta o retorno.

Desde a sua chegada até o início da faculdade você fez cursos... - Eu adoro a área de decoração, fiz vários cursos nessa área.

Você trabalhava também?
- Tentei, fiz várias entrevistas, mas acabavam não me chamando, fui desencanando aos poucos.

Como você fez para se manter aqui?
- Durante seis meses a Cáritas dá um salário mínimo por mês. Depois disso eles cortam e você se vira. Como você fez?
- Bom, aí você tem que fazer bicos. Tem que fazer faxina, alguma coisa, vai se virando compra uma coisa em um lugar e vende em outro, vende roupa.

E a Cáritas tem convênio com os cursos que você fez?
- O senac tem convênio com a Cáritas. São cursos profissionalizantes para você poder ter um emprego, poder se virar - te dar formação para você poder correr atrás. Eles oferecem cursos gratuitos.

O que você gosta de fazer no tempo livre?
- Eu gosto de ir ao cinema. Amo o cinema de paixão. Gosto de ficar em casa com as minhas filhas...fazer cursos também. Você tem muito amigos?
- Eu tenho alguns, mas tenho. Porque amigo é quem está contigo nos momentos alegres e tristes. Tenho muitos conhecidos, mas poucos amigos.

Eles são brasileiros ou angolanos?
- Brasileiros.

Você tem amigos angolanos em SP?
- Também tenho.

Vocês se encontram?
- Quando há algum evento. Temos o 11 de novembro, que é o dia da independência, tem o 26 de setembro que é o dia nacional, em homenagem às pessoas que morreram durante a guerra.

Que tipo de evento costuma ser?
- Festa dançante, com música africana, aí convidam brasileiros que gostam da cultura africana.

Fora as festas, vocês também organizam eventos pequenos?
- Também.

O que você colocaria como as principais dificuldades enfrentadas no Brasil?
- Primeira coisa: emprego. A outra: falta de esclarecimento em relação aos refugiados. Quando você chega em um lugar, para fazer uma entrevista, ou quando deixa um currículo, ou deixa teus documentos em algum lugar, e as pessoas vêem que voc~e é um refugiado, elas tomam um susto. As pessoas pensam que é assassino, matou alguém e fugiu, é bandido, é terrorista. Vocês sabem que refugiado é alguém que não se sente bem em seu país ou qualquer coisa com conflito e que vem ao seu país pedir asilo ou proteção, para poder viver longe dessa situação, como acontece no Iraque! Ninguém é obrigado morrer no Iraque. Muitas pessoas não conseguem entender que se ela tem um dinehiro guardado, pode fugir e vir morar no brasil. A pessoa tem o livre-arbítrio de escolher onde viver. Mas você chega aqui com o status de refugiado. Você não é brasileiro, não está fazendo turismo. Mas as pessoas não vão enxergar que aquela pessoa veio de um país que está em dificuldade e que está aqui, precisa de um braço amigo, precisa aprender coisas boas - para um dia, quando o páis dele estiver estável, ele voltar. Deixa ele trabalhar, para poder ganhar o pão de cada dia, poder comer, sustentar sua família, e um dia voltar.

O que as pessoas te falavam?
- As pessoas nem falavam, as pessoas já, já (faz cara de susto) e não te recebiam, já é um obstáculo entendeu.

Ninguém nunca te perguntou o que é ser refugiado?
- O ignorante é a pessoa que pensa que sabe e não sabe. O ser humano julga muito.

Essa discriminação enfrentada enquanto você procurou trabalho também aconteceu em outros locais?
- Na faculdade, acho que como já é outro nível acadêmico, as pessoas são mais curiosas, querem saber mais sobre isso. Todo mundo pergunta o que você está fazendo aqui. Eu falei pra eles, e eles me aceitaram bem. O doutor Edvaldo aceitou bem, porque já conhece, e achou interessante.

Você está trabalhando?
- Nesse momento não, mas pretendo.

Qual é a sua opinião sobre o tratamento do governo brasileiro?
- Eu não tenho a reclamar. Sempre que eu preciso tomar uma decisão, procuro as pessoas certas. Vou à Caritas. Muitas vezes a Cáritas quer fazer algo, mas fica de mãos atadas, por falta de recurso. A minha reclamação é em relação a esse salário, eu acgho que eles não deviam parar de dar essa quantia até a pessoa conseguir um emprego. Mas eles dizem que tem que cortar pois chegam outras pessoas.

Quando você chegou à Caritas que você fez esse pedido?
- A Cáritas indicou a polícia federal e colocou um advogado ao meu dispor para tratar dos documentos.

Fora a vontade de suas filhas, a grana e a facul, algo mais te segura nop brasil?
- Não, nesse momento não, até porque a violência aumentou no Brasil.

Você disse que a maioria dos angolanos que você conhece quer voltar para angola, mas não tem condições. Neste ano o acnur iniciou um programa de repatriação. Como você vê o programa? Já´ouviu falar?
- Não ouvi falar nada. Não ouvi falar nada. Se existe, eu não vi chegar nada. Há angolanos que estão aqui no Brás, que eu acho que eles querem ir embora. Não estão a fazer faculdade nem nada. Acho que no Brás você vai encontrar um monte.

O programa diz que os angolanos têm direito à assessoria legal, bilhete e dinheiro. Avise seus amigos então.
- Eu vou avisar, mas acho que ninguém sabe de nada. Eu acho que podiam colocar panfletos, tinha que ter mais divulgação. Porque acho que todo mundo quer ir embora, a guerra já acabou. Acho que está faltando divulgação, tinham que colocar cartazes para esse fim.
Eu quero voltar por livre e espontânea vontade, mas que existe essa fonte e essa facilidade de obtrer o bilhete, acho que muita gente ia querwer voltar. Eu até pensava que ia ser difícil - ter que correr atrás e conseguir o dinheiro.

Quando voltar para Angola você quer fazer o que?
- Vou trabalhar com saúde pública.

Quais as principais dificuldades que você imagina que terá quando voltar para Angola?
- Primeiro vai ser habitação. E depois, entrar no mercado de trabalho. Trabalho eu sei que vou conseguir porque o mercado é vasto.

Quais são seus sonhos?
- Eu sonho que o mundo tenha paz, que o ser humano possa aprender a se doar mais um ao outro, e ter tranqüilidade, é o principal. Nós não somos donos de nada, estamos aqui de passagem. Por que o ser humano arranja conflito, guerra? Porque até os que estão a fazer guerra morrem também. Ninguém é de ferro. Então por que não arrumar outra forma de viver, sem ter que tirar a vida do outro? Só quero ter paz, poder trabalhar, pagar minhas contas e dar uma vida melhor para as minhas filhas, essa é a minha missão. Que elas tenham mais chances que eu , por isso que eu vim pra cá com elas.

Você acredita que elas vão ter mais chances em Angola?
- Elas teriam mais chances aqui. Mas lá é o país delas. Com as experiências que elas estão a ter aqui, depois de formadas elas vão ter, para poder dar aos filhos delas.

Seu lugar é em Angola?
- Sim. É o meu país.

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