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Vícios modernos
03/08/2004

Entrevista com Contardo Calligaris

Folha - Num artigo escrito em 2000, chamado "Não tem droga do cibersexo: somos apenas desejo-dependentes", o senhor contesta a legitimidade do discurso que descreve os "vícios comportamentais" como se fossem toxicomanias. O senhor diz que atos como comer, comprar ou fazer sexo compulsivamente são apenas desejos dos quais não gostamos. Colocá-los na mesma categoria das dependências em drogas seria uma desculpa cômoda para livrar o "viciado" da responsabilidade por executá-los. Mas entrevistamos alguns especialistas no tratamento de compulsões comportamentais que não hesitam em chamar esses comportamentos de vícios: dizem que os "viciados", quando não executam tais atos, sentem um mal-estar em tudo semelhante a uma crise de abstinência. O senhor poderia definir melhor a forma como o senhor vê essa relação entre compulsão comportamental e vício químico?

Contardo Calligaris - Duas coisas a dizer. Primeiro: é claro que a química cerebral e os comportamentos não são duas coisas completamente separadas. É possível dar uma descrição química dos comportamentos compulsivos, dizer que há uma liberação de endorfina quando eu faço certas coisas, como por exemplo correr por mais de 40 minutos. Ocorre uma sensação prazerosa ligada a um fenômeno químico produzido por meu comportamento. Mas a partir disso eu não posso dizer que sou toxicodependente da endorfina liberada pelo meu comportamento. Essa descrição é parcial. Na verdade todos os comportamentos são tradutíveis em termos químicos, por isso não acho estranho que alguém faça esse tipo de observação.

Segundo: em geral, as pessoas que têm comportamentos compulsivos vivem efetivamente a sua compulsão como algo que lhes é imposto de fora de sua subjetividade. Dizem: "Eu não quero jogar, é o meu corpo que sente essa necessidade, é uma exigência de meu corpo que é estrangeira a mim". Bem, numa outra época ou cultura a pessoa poderia dar uma descrição diferente desse fenômeno, dizer por exemplo que essa sensação é fruto de uma possessão demoníaca, que "baixou o santo" etc. A descrição dos comportamentos compulsivos como exigências do corpo é só uma das maneiras que temos de representar o fato de que boa parte de nossos comportamentos não se origina de uma vontade que nós reconhecemos como parte de nossa subjetividade, eles parecem ser impostos "de fora". A forma de representar isso é culturalmente variável. Numa época em que a crença mais comum é a ciência, e em que a descrição científica dos comportamentos é a descrição química, é uma boa saber que podemos justificar nossos comportamentos compulsivos como exigências químicas do corpo.

Mas o que é engraçado nesse tipo de descrição é que ela é profundamente anticientífica. Ela tem como pressuposto uma separação entre vida subjetiva e exigências do corpo, como se fôssemos duas coisas distintas, de um lado uma subjetividade "espiritual", e de outro as exigências químicas da nossa máquina. Esse dualismo começou com a ciência moderna no século 17, e pelo jeito nós ainda não conseguimos nos desfazer dele.

Folha - Alguns especialistas no tratamento de viciados afirmam que o núimero de toxicômanios e de pessoas com comportamentos compulsivos aumentou muito nas duas últimas décadas. Existem hipóteses que procuram explicar esse aumento asociando-o às mudanças sociais e culturais ocorridas nesse período. O que o senhor pensa desse tipo de explicação?

Calligaris - Em primeiro lugar eu não estou certo se houve realmente esse grande aumento nas duas últimas décadas ou se houve apenas uma mudança na nossa maneira de contar os viciados. Mas, enfim, eu acho que essas explicações que culpam a nossa época pelo aumento do número de viciados têm um cunho moralizante, que, em minha opinião, não cabe no discurso do psiquiatra, psicanalista ou psicólogo. A hipótese de que nossos contemporâneos teriam uma relação com o prazer que os tornaria particularmente incapazes de aceitar frustrações, por exemplo, não é algo que me impeça de dormir à noite. Que as pessoas tenham prazer também não algo que me tira o sono, pelo contrário, eu durmo melhor se eu penso que as pessoas ao meu redor têm prazer. Não estou fazendo propaganda de drogas ou condutas consideradas como vícios, mas também não gostaria que a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise fossem identificas com algum tipo de moralismo. Tentar ajudar as pessoas que tiveram sua vida atrapalhada pela escolha de algum vício (novamente lembro que essa é uma palavra de conotação moral negativa, que eu não acho apropriada) se torna muito complicado a partir de uma posição moralizante.

Quanto à natureza em si dos argumentos existentes, eu acho que alguns deles são bastante aceitáveis, mas nem por isso deixam de ser lugares-comuns. Por exemplo, a hipótese de que somos uma cultura que de alguma forma não tem mais a arte do uso dos prazeres. Isso era certamente uma parte consistente da ética clássica. Quem escreveu as coisas melhores e mais importantes sobre isso foi Foucault, no segundo e terceiro volume de sua "História da Sexualidade". Infelizmente ele morreu antes de escrever a parte sobre a idade contemporânea. Sem dúvida nossa capacidade de viver um disciplina do prazer é restrita. Por outro lado, vivemos numa sociedade de consumo onde é indispensável que os consumidores sejam sempre insatisfeitos, para que a produção possa continuar. Nenhum objeto pode ser final. Isso aliás poderia ser de alguma ajuda para entender por que vários psicanalistas hoje pensam que a experiência decisiva no consumo de drogas não é a satisfação e o nirvana, mas a falta, a abstinência, a crise. A crise de abstinência é definitória de nossa subjetividade, ela deve ser sempre insatisfeita para que o mundo continue funcionando —o nosso mundo pelo menos. Para que a economia funcione é preciso que continuemos acreditando que há objetos que eventualmente poderiam nos satisfazer, e que essa satisfação é muito importante —assim como é absolutamente necessário que ela nunca seja atingida.

Tudo isso é verdade, mas são lugares-comuns, são o resumo em poucas palavras de coisas que todo mundo diz há 25, 30 anos. A sociologia americana, particularmente, diz isso desde os anos 50.

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