20/06/2004
O TEMPO DO VÍCIO
Dependências e comportamentos compulsivos se disseminam, ganham novas interpretações e melhores opções de tratamento, despertando atenção cada vez maior da sociedade
MARCEL MORETTI
UIRÁ MACHADO
DA EQUIPE DE TRAINEES
Sexo, comida, exercício, compras, entre outras atividades tidas
como normais e rotineiras, vêm
se transformando na principal
causa de preocupação de pessoas
que se consideram "viciadas" em
algumas delas.
Para psiquiatras, psicanalistas e
antropólogos ouvidos pela Folha,
mudanças sociais nas últimas décadas e o próprio avanço da medicina ajudam a explicar o fenômeno. Estaríamos vivendo uma nova
era, na qual o que tradicionalmente se chama de "vício" ganhou maior amplitude, novos
diagnósticos e passou a despertar
crescente interesse de terapeutas,
da indústria farmacêutica, da sociedade e também de governos.
"Vício" é uma palavra em geral
evitada pelos especialistas, por
sua conotação moral negativa.
Eles preferem o termo "dependência", quando se trata de drogas, e "compulsão", para designar
distúrbios como a irrefreada e repetida "vontade" de fazer compras ou praticar sexo.
O problema não está em querer
consumir ou ter relações sexuais,
mas em viver quase exclusivamente para isso. Nesse caso, como explicam os especialistas, um
impulso particular sobrepõe-se a
todas as demais atividades que a
pessoa possa _ou mesmo queira_ fazer. Em resumo, os tipos
compulsivos, segundo o psiquiatra Marcos Ferraz, "são caracterizados pela perda da liberdade".
Com os progressos na explicação desse mecanismo, o viciado
passou da condição de culpado
para a de vítima, seja do meio social, seja da genética.
Mecanismos iguais
De acordo com Rodrigo Bressan, professor de pós-graduação
em psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo),
os mecanismos cerebrais que determinam a dependência de drogas e as compulsões comportamentais são muito semelhantes.
O número de viciados, seja em
drogas, seja em comportamentos,
vem se acelerando desde o fim
dos anos 70. Para o psiquiatra e
psicanalista Joel Birman, professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), esse aumento é uma conseqüência das
novas exigências da sociedade dita pós-moderna.
Segundo o psicanalista, essa sociedade exige mais desempenho
das pessoas em todas as áreas,
mas elas nem sempre estão preparadas para responder a tal demanda. Uma profusão de estímulos, geralmente na forma de imagens (TV, mídia, publicidade),
bombardeia os indivíduos, que
muitas vezes têm dificuldades de
elaborá-los. "Sentimo-nos possuídos por uma excitação da qual
não conseguimos dar conta", diz
Birman. O resultado desse processo é o que o psicanalista chama
de "excesso de excitabilidade".
A sociedade também impõe
uma competição acirrada entre
personalidades exibicionistas e
autocentradas. Cada indivíduo
precisa buscar sempre o máximo
desempenho. Quem não consegue lidar com o excesso de excitabilidade nem se adaptar a essa
"cultura do narcisismo" pode sucumbir, diz Birman.
Frente a tal ameaça, ocorrem
reações: o excesso de excitabilidade se converte em perturbações
psicossomáticas, síndrome do pânico, depressão ou compulsões. A
pessoa pode começar a comer
muito, jogar, ou se drogar.
A compulsão por drogas possui
uma característica peculiar. Algumas delas alteram a personalidade de tal forma que permitem melhorar o desempenho social de
forma momentânea. O sujeito
inadaptado e melancólico, que
normalmente não teria chance
numa sociedade que exige desempenho, pode encontrar na
droga um meio à primeira vista
viável de integração.
A cocaína, por exemplo, produz
um estado de atenção e disposição física capaz de encobrir por
algum tempo os sintomas de uma
depressão grave, afirma o médico.
Tudo a mesma droga
Ao falar de "droga", especialistas não se referem apenas às substâncias ilegais, mas também às legais, como o álcool e até mesmo
remédios psiquiátricos, conhecidos como psicofármacos. Para
Birman, muitas vezes não há diferença entre quem usa um antidepressivo, um ansiolítico ou cocaína: todos eles querem melhorar
seu desempenho frente às exigências da sociedade pós-moderna.
O psiquiatra e psicanalista Durval Mazzei Nogueira Filho, especialista no tratamento de dependentes de drogas e autor do livro
"Toxicomania", concorda, e
aponta um novo problema: o aumento do consumo de remédios
psiquiátricos.
Isso significa que um número
cada vez maior de pessoas deprimidas está recebendo tratamento
e deixando de sofrer, mas, segundo Mazzei, é preciso lembrar que a diferença entre os remédios e as drogas ilícitas é bem menor do que
muitos supõem.
Em geral, os medicamentos não
instauram uma suposta normalidade na química cerebral, mas
criam um estado psíquico novo.
"Esses remédios agem na mesma
região cerebral que recebe o impacto das drogas, o sistema de
gratificação e recompensa. Mas o
medicamento não atua nos mecanismos íntimos da doença, mesmo porque ninguém sabe quais
são esses mecanismos", afirma.
Mazzei não deixa de receitar remédios quando considera necessário, mas se irrita com o fato de
esses remédios serem periodicamente anunciados pela mídia como a panacéia de todos os males.
Se a evolução do tratamento
com medicamentos continuar
nesse rumo, podemos imaginar
um futuro em que a busca da felicidade química seja algo normal?
Em suma, existe a possibilidade
de o século 21 se transformar no
século do vício? Mazzei pensa um
pouco e responde: "Sim. E os psiquiatras serão cúmplices disso".
A droga do desejo
O psicanalista Contardo Calligaris preocupa-se com o fato de
que cada vez mais comportamentos venham sendo tratados como
vícios. "Segundo essa lógica, qualquer comportamento que a gente
goste e repita assiduamente, apesar de riscos e contra-indicações,
seria uma toxicodependência."
Calligaris considera que a utilização do modelo explicativo da
dependência de drogas para descrever outros comportamentos
pode ser apenas uma desculpa para evitar um fato incômodo: às vezes as pessoas desejam coisas de
que se envergonham, que as prejudicam, que as perturbam. Em
vez de assumirem que desejam algo considerado "errado", podem
atribuir esse desejo a desequilíbrios químicos que alguma pílula
supostamente poderia curar.
"É óbvio que há uma diferença
radical entre uma toxicomania e
essas condutas que são apresentadas como se fossem toxicomanias", diz Calligaris.
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