20/06/2004
Íntegra: Família se intoxica junto com dependente
Médicos ainda não sabem o que faz alguém se tornar viciado; tratamento exige aceitação pelo paciente e parentes
TATIANA LIMA
DA EQUIPE DE TRAINEES
A experiência cotidiana fez
o psiquiatra Arthur Guerra
de Andrade, 49, perceber
que a família, querendo ajudar, muitas vezes, atrapalha.
Guerra de Andrade trabalha
há 25 anos no tratamento de
viciados (70% da clientela de
seu consultório).
Além de manter um consultório próprio e de ministrar aulas na faculdade de
medicina da USP e na faculdade de medicina do ABC,
Andrade preside o Grea
--Grupo Interdisciplinar de
Álcool e Drogas, sediado no
Hospital das Clínicas. O grupo desenvolve atividades
nas áreas de pesquisa, ensino, assistência e prevenção
do álcool, tabaco e outras
drogas desde 1981.
Na entrevista abaixo, Andrade fala sobre vício, tratamento e a relação da família
com o dependente.
Folha - O que vicia?
Arthur Guerra de Andrade - Vício é um termo leigo, os
médicos não usam a palavra.
Vício significa um estado em
que a pessoa usa alguma droga
--em geral o temo é usado para
droga-- e tem uma dependência, não consegue parar de usar.
A palavra traz uma conotação
moral: "Ele é viciado". Como se,
caso ele quisesse, pudesse parar,
fosse uma coisa que dependesse
da força de vontade. E nós, médicos, entendemos que essa é
uma situação de doença.
Folha - Como é possível caracterizar quem é viciado? Muitas pessoas usam drogas por períodos
continuados e aparentemente
não se viciam.
Andrade - A gente consegue falar que a pessoa ficou dependente quando conseguimos identificar nela a síndrome de abstinência. Ou seja, o conjunto de sintomas e sinais que a pessoa tem.
Por exemplo, no álcool, ela fica
trêmula logo de manhã, fica
suando, não dorme bem à noite,
fica com uma compulsão, um
desejo muito forte de fazer uso
do álcool, bebe qualquer tipo de
bebida alcoólica, bebe álcool zulu [álcool de limpeza] querosene, perfume.
Esse quadro característico é
próprio da síndrome de abstinência e só existe quando a pessoa tem a dependência. Existem
outras situações em que não há
uma dependência tão bem definida assim: chocolate, jogo.
Folha - Pode-se falar em dependência de chocolate?
Andrade - Médico não fala.
Porque o chocolate não dá síndrome de abstinência e porque,
em geral, a compulsão para comer chocolate está associada a
outra coisa, muito mais à ansiedade. A pessoa não tem um vício, o comportamento não está
associado a uma substância. Se
ela ficar sem chocolate, ela não
vai roubar para obtê-lo, ela vai
procurar outra coisa.
Um outro comportamento é o
de jogar. Aí o que acontece: a
pessoa não tem síndrome de
abstinência, mas ela repete o ato
de jogar, mesmo sabendo que
aquilo traz prejuízo a ela. A isso
nós damos o nome de adição
[neologismo para adiction, vício
em inglês]. Essa é uma situação
importante, freqüente e que causa graves alterações na vida da
pessoa.
Folha - O tratamento dessa pessoa é parecido com o de um dependente em drogas?
Andrade - No mundo das drogas (lícitas ou ilícitas), mesmo
no caso de um comportamento
como jogar, nós estamos hoje
mais ou menos como se fossemos médicos tisiologistas [que
estudam a tuberculose] no final
do século 19.
O médico conseguia saber que
o paciente estava com tuberculose, que ele tinha dor no peito,
que escarrava sangue. O médico
conseguia saber que se o paciente fosse para as montanhas ele
iria conseguir ficar melhor, mas
ele não sabia da existência do bacilo de Koch, que é o que causa a
tuberculose.
Para nós a situação é semelhante. A gente sabe que, se o paciente ficar sem o álcool, sem a
droga, sem o tabaco, sem o jogo,
ele fica melhor. Zero de jogo.
Não pode jogar nem de vez em
quando, nem pela internet, nada. Mas a gente não sabe o que
causa isso. Se é uma enzima, é
um gene...
Folha - Então não se sabe ainda
quem é propenso ao vício?
Andrade - Não se sabe. Se a
gente soubesse isso, iria atuar
com muito mais eficácia em programas de prevenção. A gente
iria olhar: "Puxa, olha aquele lá,
ele é filho de pais alcoólatras, os
pais são separados e ele é de uma
classe mais baixa, esse cara vai
ser alcoólatra". A gente poderia
investir mais. Mas não. O cara,
às vezes, é de uma família muito
bem feita, pai e mãe que não bebem e se torna alcoólatra, dependente.
Folha - Em que difere a dependência física da psicológica?
Andrade - Hoje em dia não se
diferencia mais dependência física de dependência psicológica.
Vinte anos atrás ainda tinha esse
conceito, hoje não. Por quê? Às
vezes, a dependência psicológica
é tão forte que ela fica maior que
a dependência física.
Vou dar um exemplo: crack.
Em geral, ele não dá dependência física, aquela em que, se a
pessoa não tiver a droga, ela passa mal. Mas a fissura que o cara
tem, a vontade que ele tem de
usar, a compulsão é tão forte que
ele faz qualquer coisa para usar,
não pelo sintoma físico, mas pelo sintoma psíquico. A dependência psicológica, no caso, suplanta, passa por cima, fica mais
forte que a dependência física.
Folha - Então a história de que
maconha não vicia não procede?
Andrade - Não. A maconha vicia. Ela é uma droga importante
porque muita gente não fica viciada, mas mais ou menos 10 a
cada 100 acabam tendo dependência. É, sim, uma síndrome de
abstinência menor, mas a maconha vicia. É só perguntar para
qualquer um que tenha um consultório parecido com o meu,
muito contato com viciados em
álcool e drogas, maconha. Quatorze, quinze anos de idade, o rapaz chega aqui e diz que não
consegue ficar sem, tem que
usar, não pode parar.
Folha - Mas o tratamento é mais
fácil do que do crack, por exemplo? O que faz o tratamento ser
mais fácil?
Andrade - O que faz o tratamento ser mais fácil são três coisas: em primeiro lugar, a aceitação da pessoa de seguir a orientação de não usar nada. Tem
gente que aceita, tem gente que
não aceita.
Em segundo, é se o paciente
tem uma atividade. Se for adulto, se ele tem um trabalho e, se
for moço, se ele tem um estudo,
uma ocupação.
A terceira coisa é apoio familiar, os amigos. Se eles colaboram com essa idéia, o tratamento fica mais fácil.
Folha - Como é o tratamento?
Andrade - A primeira fase do
tratamento é fazer um diagnóstico bem feito. É saber se a pessoa tem só dependência da droga ou junto tem outra coisa: ansiedade, depressão.
Depois, dependendo do caso,
a pessoa precisa passar por uma
desintoxicação. Algo importante no sentido de deixar o corpo
dela sem uso da droga.
Após isso, decide-se se nós vamos seguir um tratamento psiquiátrico clássico medicamentoso --com alguns remédios para
impedir o retorno a droga. Concomitante com isso, a pessoa pode fazer um tratamento psicoterápico , no qual ela recebe orientações que lhe darão suporte psicológico.
Também muito comum nesse
campo é receber orientação familiar. Mas a família, muitas vezes, querendo ajudar, atrapalha.
Folha - Por quê?
Andrade - Porque a família não
sabe lidar com essa situação. Ela
começa a ficar "intoxicada" junto com o paciente. "Dependente" com o paciente. Ela se acostuma com aquele indivíduo.
Folha - Se a família está intoxicada, como se faz?
Andrade - A gente trata a família também. O que precisa fazer?
Precisa conversar com a família,
fazer um diagnóstico, apresentar
o problema para a família na visão médica, porque a família
tem uma responsabilidade grande no tratamento e na recuperação.
Folha - Mas o que a família faz
de errado?
Andrade - Por exemplo, às vezes eu falo: "Não pode beber nada de álcool". A família vai lá e
quer dar um pouquinho, acha
que não faz mal. A família continua tratando o paciente como se
ele fosse um doente, mesmo depois de ele já estar sendo tratado,
sugere condutas que são totalmente diferentes daquelas que o
médico sugere.
Folha - E como que a família pode estimular o paciente para que
ele se trate?
Andrade - Abrindo o jogo. Por
meio de uma conversa franca,
uma conversa objetiva, falando
claramente: "Olha, acho que você tem um problema de saúde e
você deveria se tratar".
Folha - Mas é a pessoa que tem
que se convencer de que precisa
de ajuda?
Andrade - Só funciona se a pessoa se convencer disso.
Folha - Quando o paciente é tratado, a família melhora automaticamente?
Andrade - Não. Às vezes eu trato o paciente, mas a família não
quer melhorar. A família se
acostumou a ficar doente.
Folha - E como fica o paciente
nessa situação?
Andrade - Ele tem que estar
preparado para enfrentar uma
família doente. A gente prepara
o paciente inclusive para isso.
Folha - Mudando de assunto, o
que o senhor acha das políticas
públicas relacionadas à dependência feitas hoje?
Andrade - O problema é que o
Brasil é um país muito grande,
de dimensões continentais. E fazer uma política única que acolha toda a questão é ousado. Provavelmente, o problema do álcool que existe no Nordeste não
é o mesmo do Rio Grande do
Sul. O álcool é diferente, as pessoas se comportam de maneira
diferente, a nutrição é diferente.
É nessa diversidade que nós
crescemos e achamos que precisamos trabalhar em conjunto,
mas respeitando as diferenças.
Folha - Campanhas de prevenção adiantam alguma coisa? É
possível prevenir a dependência?
Andrade - Dá para prevenir.
Quando a gente trabalha sério
em termos de prevenção, em geral, há uma diminuição do uso
de drogas. O problema é você
achar qual a linguagem que funciona, que repercute.
Folha - E aí como se previne? É
convencer a pessoa para que ela
nunca experimente?
Andrade - Depende da droga.
Quanto ao álcool, é quase certeza que muita gente vai ter o primeiro contato. O álcool é uma
droga especial porque o fato da
pessoa ingeri-lo por si só não
quer dizer que ela tenha dependência. Algumas pessoas ficam
dependentes, passam mal. Ao
mesmo tempo, outras podem
beber socialmente. A prevenção,
para mim, passa pela informação das conseqüências negativas. É um trabalho de educação.
Deixa para o indivíduo fazer a
escolha, desde que ele esteja alimentado por informações. Deve-se mostrar as conseqüências,
o que faz bem e o que não faz.