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Vícios modernos
22/06/2004

Íntegra: Entrevista com Rosa Farah: Internet é mais um palco para expressão de angústias

Ontem a televisão, hoje a internet. Para a psicóloga Rosa Farah, o computador não é o novo vilão da história, apenas mais um palco onde as angústias e as ansiedades se expressam. A coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática (NPPI), da Clínica Psicológica da PUC, diz que a dependência existe e está mais ligada à qualidade do uso do que ao tempo em que as pessoas passam conectadas. Ela oferece orientações para dependentes e familiares no site www.pucsp.br/clinica e alerta: não existe um perfil mais propenso ao vício.

Folha - A dependência de internet pode ser considerada um vício?

Rosa Farah - Existem alguns pontos em comum com outros vícios. Por exemplo, um alcoólatra, ele até reconhece que tem um problema, mas também tem muita dificuldade em abrir mão daquele vício, daquele hábito. Só que no uso da informática existe a ambigüidade de o uso excessivo poder gerar prejuízos sérios, mas o uso em si poder ser criativo (é associado a trabalho, a pesquisas, a estudo). Então é um tipo de comportamento difícil de se colocar como lesivo ou não lesivo a não ser pelos efeitos que promove. O resultado desse uso é que vai ser construtivo ou destrutivo, positivo ou negativo. Essa é uma das razões que levam a ser tão difícil a pessoa procurar ajuda. Ou aceitar ajuda.

Folha - E em que situações os pacientes chegam a pedir ajuda?

Farah - Na verdade, os pacientes quase nunca nos procuram. Quem nos procura são as pessoas que convivem com esses usuários e se preocupam com eles. É muito raro a própria pessoa procurar. Acontece, mas é muito raro. E, mesmo quando é ela quem faz essa procura, tem muita dificuldade em chegar ao atendimento. É o caso de um paciente nosso que pediu ajuda porque acha que vai perder o emprego. A internet começou a atrapalhar muito sua vida profissional, ele não consegue deixar o computador e ir para o trabalho. Nesse caso, é uma pessoa de bom nível intelectual, que tem o que perder. Mas, o mais comum é que um pai, um namorado ou um amigo nos telefone preocupado com alguém com quem convive. "Está acontecendo isso e mais isso, o que eu faço?", perguntam. O mais freqüente é isso, alguém que convive e procura porque está preocupado. Orientamos de duas maneiras: Se a pessoa concordar em vir, estamos abertos a recebê-la. Se a pessoa não concordar em vir, nós podemos oferecer orientação para quem está fazendo esse movimento. Rarissimamente a pessoa concorda em vir. Está feliz como está. A pessoa não vê como um problema ou, se é que vê como um problema, não se sente motivada o suficiente para buscar ajuda. Ela prefere manter aquele comportamento.

Folha - Quais os principais sintomas de um dependente de internet?

Farah - O que há de mais geral é restringir os relacionamentos presenciais. Ou reduzir a produção escolar _para os mais jovens_ ou o trabalho _para os mais velhos. Ocorrem prejuízos nos relacionamentos em função desse isolamento. Em situações mais graves, chegam a ocorrer prejuízos do sono, da alimentação e até da higiene. Essas são as descrições dadas por quem convive com a pessoa. Quando é a própria pessoa quem chega a falar, quem chega a reconhecer que alguma coisa não está bem, é como se houvesse uma dificuldade em respeitar o próprio limite. Não conseguem finalizar a conexão. Pensam: "É só mais um pouquinho". Uma outra queixa comum é a pessoa sentir ansiedade e mal-estar por estar em uma situação em que não pode se conectar.

Folha - Quando se caracteriza o uso patológico ou abusivo da internet?

Farah - Quando o uso passa a prejudicar o cotidiano, a saúde ou os relacionamentos e, por isso, traz algum tipo de prejuízo para a vida dita normal daquela pessoa _a vida que levava anteriormente. Vou dar um exemplo. Alguns, de início, pensam: "Fulaninho fica muitas horas". Mas o que são muitas horas? Isso é relativo. O importante é o tipo de uso que a pessoa faz. Se ela fica muitas horas mas produz, faz o trabalho dela, vira e vai dormir, vamos dizer que isso é uso patológico? Não. O tempo de uso não é um bom critério. Preferimos observar a qualidade do uso e o efeito desse uso para a vida da pessoa. Descobrirmos se esse uso está trazendo benefícios _maior produtividade educacional, profissional ou mesmo em termos de relacionamento. Por exemplo, existem pessoas que ficam muito tempo conectadas porque trabalham com comunicação e dependem da troca de e-mail. Ou outras que usam prioritariamente para trabalho e, em paralelo a isso, começam a usar como busca de relacionamento pessoal. Existe aquele que entra, passa lá duas horas trocando informações e transfere aquele relacionamento para a vida real. Quer dizer, passa a existir a partir dali um contato presencial, que se torna amizade, namoro, casamento. Isso seria uma forma saudável de uso da ferramenta para estabelecer vínculos e contatos. Pensando no extremo oposto. A pessoa que começa de um jeito parecido, mas fica no virtual e só no virtual. Colocamos um grande ponto de interrogação. Isso é um relacionamento saudável? Isso é uma nova forma de relacionamento humano? Acrescenta algo para a vida da pessoa? Tudo isso para nós é um grande ponto de interrogação. É tudo muito novo ainda.

Folha - O que deve ser observado para dizer que o uso é prejucidial?

Farah - O pai, a mãe, o professor, antes de achar bonitinho quando o jovem usa o computador, quanto sabe lidar com a máquina, deve observar se ele está fazendo bom uso ou não. A orientação que passamos para pais e mães é: Procure se aproximar do uso que seu filho faz, procure acompanhar. Não ficar só no número _quantas horas fica ou não fica conectado. A qualidade é muito importante.

Folha - Existe algum caminho mais viciante do que outro?

Farah - Isso é relativo. Vai depender um pouco da idade. Não temos bons dados estatísticos no Brasil. Os poucos que temos indicam que o uso excessivo ou patológico parece ter um predomínio entre os homens, mas está presente também entre jovens meninas e mulheres. As salas de bate-papo são segmentadas para todos os públicos. O que é pouco conhecido ainda é o que chamam de "ambientes virtuais". É como se fosse um mundo virual à parte, com vida própria. Nesse mundo virtual, o internauta assume uma identidade diferente da identidade da vida cotidiana. Tudo é construído com base na imaginação dos participantes. Aí se pode perguntar: Isso é construtivo ou negativo? O limite é muito tênue. Existe o risco oposto, de uma classificação precipitada como negativo. Tudo isso é muito novo na história da humanidade.

Folha - Existe um perfil mais propenso a se tornar um dependente de internet?

Farah - Tentou-se traçar esse tipo de perfil, mas, de repente, começaram a descobrir usuários completamente fora desse perfil e que também se revelavam "hard usuários". Podemos supor que o perfil mais identificado é o jovem de classe média ou média alta, com facilidade de acesso. Isso até tem uma certa lógica, mas não é uma garantia de que esse é o personagem típico. O que se divulga muito é que o perfil mais provável seria o do jovem tímido. Mas, na realidade, não é o que se confirma pela prática. Aparecem personagens que não se enquadram nem um pouco nesse tipo. As modalidades de uso se multiplicam com rapidez. Aparecem também com rapidez novos usuários.

Folha - Acontece alguma alteração orgânica nos dependentes de internet ou o vício seria apenas psicológico?

Farah - Essa diferenciação entre o físico e o psíquico é um limite muito tênue. É difícil dizer se é o físico que causa o efeito psíquico ou se é a condição psíquica que causa o efeito físico. Na verdade, não existe uma diferença essencial entre uma condição física e uma condição psíquica. Nós é que conseguimos enxergar e medir mais o físico que o psíquico. É bem possível que, em um estado alterado de consciência pelo uso excessivo de um recurso qualquer, a condição orgância se mostre alterada. Mas é difícil dizer que aquilo foi gerado pelo computador ou por uma outra atividade abusiva. Na verdade, acreditamos que o vício sempre se expressa ao mesmo tempo no físico e no psíquico.

Folha - Quais são os sinais físicos da dependência?

Farah - Um usuário patológico de internet que está longe do computador pode ficar muito ansioso, inquieto e com mal-estar. Se medirmos os batimentos cardíacos e os sinais orgânicos dessa pessoa, talvez sejam bem parecidos com os de quem está longe das drogas. Ainda discute-se a existência da síndrome de abstinência. No caso do usuário de droga, existe a ausência de uma substância no organismo. No caso do usuário de internet, isso não existe. No entanto, pode ocorrer uma manifestação parecida. Se isso pode ser comparado é outro departamento.

Folha - Como é o tratamento nos casos de dependência de internet?

Farah - Cada caso é um caso. Não tratamos o problema, mas a pessoa. Procuramos entender, dentro de sua vida, o que significa aquele problema. Não tratamos do uso de chats ou do uso de jogos. O tratamento é uma psicoterapia, com a diferença de que a reclamação inicial foi essa queixa. A motivação é essa, mas o atendimento é do tipo psicoterápico. O primeiro passo é fazer uma ou mais entrevistas para identificar qual é o problema, como isso está entrando na vida da pessoa. Aquilo que a psicoterapia normalmente oferece. E toda psicoterapia depende de a pessoa estar consciente do que está acontecendo com ela. Por isso que eu digo: É muito difícil esse processo ter continuidade porque a pessoa não quer abandonar o vício.

Folha - Atualmente, qual é a proporção entre pacientes que procuram e famílias que reclamam?

Farah - Temos muitos pedidos por orientação e informação, mas tratamento em menor freqüência. Se pensarmos em cem pedidos de informação, um ou dois chegam ao tratamento. Sabemos que existem muitas pessoas vivendo essa questão _o número é bem maior do que aquilo que aparece nas estatísticas. Mas, os que chegam a procurar ajuda, de fato, são um ou dois por mês. Pedem orientação sobre o que é e o que se deve fazer.

Folha - Quais são as orientações dadas?

Farah - Tentar recuperar o diálogo _ou manter o diálogo_, fazer com que a pessoa esteja junto. Ou oferecer terapia. A última pessoa com quem falei foi uma mãe preocupada com o filho adolescente que, segundo ela, não sai da internet. Toda uma turbulência está sendo gerada na vida dessa mulher, na visão da mãe, por conta do problema do filho. Mas depois de conversar um bom tempo, chegamos à conclusão de que ela deveria procurar uma terapia para ficar mais fortalecida e melhorar as condições de lidar com tudo isso. Não sabemos até que ponto esse comportamento do garoto não é expressão de uma problemática familiar. As coisas não são assim: "O joãozinho, coitado, é um viciado em internet". O joãozinho é filho desse pai e dessa mãe que convivem com ele de determinada maneira desde que nasceu. E não desde o dia em que apareceu o computador nessa casa. Existe uma forma de relacionamento que está sendo desenvolvida ao longo da vida e que está culminando nesse problema. Como eventualmente poderia culminar no uso de maconha, em resumo. A internet só abriu espaço para uma nova forma de expressão dos sintomas humanos. É mais um palco onde as angústias e as ansiedades se expressam. Houve uma época em que a televisão era a grande vilã. Dizia-se que impedia o diálogo na família, prejudicava a cabeça das pessoas. E a televisão mal usada dentro de uma casa pode ser um vilão sim. O surgimento da informática e da internet serviu como mais uma forma de expressão das dificuldades possíveis que o ser humano encontra na vida. Como ela é muito nova e tudo o que é novo assusta, tendemos a colocar ali o vilão da história. Mas a coisa não é bem assim, o computador sozinho não vicia ninguém, não prejudica ninguém. O que pode ser prejudicial é o uso que as pessoas fazem.

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