Turismo

Esqueça as praias e aventure-se pelos desertos da Tunísia

ANA LUCIA BUSCH
Diretora-executiva da Folha Online

Para italianos, franceses e alemães, a Tunísia pode ser considerada "carne de vaca". Faz parte dos roteiros obrigatórios de agências de viagens, que lotam o litoral do país com ônibus de turismo, e os mercados, de compradores em potencial. Mas como balneário, a Tunísia decepciona os brasileiros. Para conhecer o país, é melhor esquecer as praias sem graça e lotadas no verão, os hotéis ditos de luxo, que sempre provocam a sensação de que faltou alguma coisa, e deixar em casa qualquer intenção de mudar o mundo, pelo menos o mundo deles.

Ana Lucia Busch
Mulheres no centro de Khairouan
Mulheres no centro de Khairouan
Para um ocidental, pode ser assustador ouvir, por exemplo, histórias de mulheres que passam a vida enclausuradas dentro de casa --e é justamente aí que começam as primeiras lições para quem chega ao país: perguntar às vezes ofende, questionar pode ser um erro fatal.

Exageros à parte, há sim assuntos difíceis de engolir para os tunisianos, a começar pela própria imagem dos povos muçulmanos no exterior, segundo eles, ligada somente ao terrorismo, sem levar em conta a simpatia que dispensam aos turistas e a calma em que vivem os cidadãos comuns.

Comentários envolvendo os vizinhos Líbia e Argélia ou outros países árabes, referências à guerra do Golfo ou elogios aos EUA devem ser cuidadosos. Não há violência no país, mas uma frase mal colocada pode causar extremo mal-estar. Questões sobre a eficiência do governo do presidente Ben Ali, no poder desde 1987, ficam sempre sem resposta.

Mesmo quando há sinais de desagrado, ninguém ousa falar mal do governante, e fotos dele se espalham por todas as lojas, hotéis, bares e restaurantes, literalmente sem exceção.

Detalhes

Ana Lucia Busch
Homem em Douz, à beira do Saara
Homem em Douz, à beira do Saara
Mas esse estranhamento inicial dura pouco, principalmente para quem se aventura pelo interior, chegando até o Saara. Nos 450 km que ligam a capital Túnis à Douz, na entrada do deserto, paisagens, arquitetura e costumes mudam drasticamente a cada ponto de parada. As deliciosas comidas típicas, com couscous e muita carne de carneiro, também desfilam sabores diversos, como tudo, um pouco movidos pela ânsia de agradar os visitantes, perfeitamente exemplificada pela maneira como os nativos chamam suas cidades.

Cada pequeno fim de mundo vai ser tratado como "a capital da cerâmica", "a capital da tapeçaria", "a capital do vinho" e assim por diante. Para ir se aclimatando, a melhor porta de entrada é mesmo a capital Túnis, simpática, ocidentalizada mas com poucas atrações além do mercado e das mesquitas no interior da medina --a cidade antiga, murada.

Comprar é uma aventura como descrita em qualquer artigo sobre países de tradição árabe e que, às vezes, parece um pouco caricatural, com negociações começando em US$ 100 e terminando em US$ 5. Faz parte! Feitas as primeiras compras, reserve um bom tempo para visitar a coleção de mosaicos romanos, bizantinos e cartagineses, no museu do Bardo.

Está lá a fonte do pouco que se sabe sobre a vida cotidiana da cidade de Cartago, fundada no ano de 800 a.C. pelos fenícios e destruída pelos romanos 146 a.C., ao final das guerras púnicas contra Roma. O mais que restou do local são poucas ruínas no subúrbio de Túnis, abertas à visitação, mas com pouco a acrescentar à própria história. Mais interessante, a cidade de Sidi Bou Said, um pouco à frente na mesma direção, rende uma boa tarde de diversão e dá por encerradas as visitas à costa mediterrânea. A região conhecida como Cap Bon, a nordeste, louvada aos quatro ventos como um pedaço do paraíso, deve ser solenemente ignorada.

Ruínas

Deixando Túnis, passe ao roteiro de ruínas romanas começando pelo aqueduto de Zaghouan, com 60 km de extensão, que, no século 2, abastecia a costa norte do país.

Próximo ao Museu do Bardo, na capital, já é possível ver algumas de suas estruturas, mas elas só vão surgir com todo seu esplendor nas proximidades de Thuburbo Majus, um sítio arqueológico a oeste de Zaghouan. Bem próximo da costa leste, na continuação da viagem, o coliseu de El Djem, concluído em 230 DC, faz parecer pobres as ruínas de Zaghouan.

Menor, mas mais bem conservado que o de Roma, o anfiteatro permite conhecer de perto os bastidores de lutas e competições do antigo império romano. Após um passeio pelas arquibancadas, a visita às catacumbas, antigas prisões nos subterrâneos e jaulas de animais, chega a assustar.

Ana Lucia Busch
Templos de Júpiter, Juno e Minerva, na antiga cidade romana de Sufetula
Templos de Júpiter, Juno e Minerva, na antiga cidade romana de Sufetula

Continuando à sudoeste, chega-se às ruínas da cidade romana de Sufetula, hoje conhecida como Sbeitla. Mosaicos que ainda sobrevivem no chão dos antigos templos, banhos decorados algumas vezes com motivos cristãos, restos de habitações comuns e igrejas bizantinas são apenas paisagem enquanto não se chega ao Fórum, onde templos dedidcados a Jupiter, Juno e Minerva permanecem quase intactos. Da história à religião, todos os caminhos passam por Kairouan, cidade sagrada para os muçulmanos, que só perde em importância para Meca e Medina, na Arábia Saudita. Como chegar às duas últimas é tarefa difícil para não-muçulmanos, a Grande Mesquita de Kairouan talvez seja a única chance de se aproximar dos territórios sagrados por onde, diz a tradição, passou o profeta Maomé. Reerguida diversas vezes até o século 9, a Grande Mesquita parece ter sido construída com o que restou de civilizações que passaram pelo local antes da chegada do Islã.

Ana Lucia Busch
A grande mesquita, onde, diz a tradição, esteve o profeta Maomé
A grande mesquita, onde, diz a tradição, esteve o profeta Maomé

A imensa colunata que circunda o pátio interno não tem sequer uma coluna idêntica à outra, cada uma delas de período e material diferente. Com aspecto quase militar, a construção perde em beleza para a Mesquita do Barbeiro, com decoração refinada em franco contraste com a austeridade da Grande Mesquita.

Calor

Sempre bom lembrar que, como a maioria das cidades do interior, Kairouan é conservadora para os padrões ocidentais e as visitas às mesquitas devem ser cercadas de cuidado redobrado. Roupas discretas, cabelos presos, calças compridas para os homens --e saias longas para as mulheres-- são boa idéia em qualquer época do ano.

Qualquer um que tenha considerado o trajeto até Kairouan espinhoso ou estranho deve parar por aqui: o sul da Tunísia é, a um tempo, inóspito e acolhedor --estradas ruins, hotéis lotados, escassez de restaurantes são uma constante nas regiões mais áridas.

Mesmo assim continue firme, desligue um pouco do Saara e entre em cada canto para conhecer os desertos de montanha e de pedra, às vezes mais secos e impressionantes que os mares de areia. Saem os religiosos e os habitantes comuns das cidades, entra em cena gente acostumada a viver sob a terra, nas chamadas habitações trogloditas, incrustradas em montanhas de pedra, em vilarejos que lembram a paisagem lunar, ou em tendas beduínas, dormindo ao relento.

Roupas coloridas substituem os hábitos brancos ou negros entre as mulheres, dromedários e carros com tração nas quatro rodas --que lotam as estradas-- passam a ser o melhor meio de locomoção --embora seja impossível alugar um carro desse tipo, exclusividade de agências de turismo.

Os dromedários, sim, podem ser encontrados em qualquer lugar a US$ 50 por dia, incluindo dois "cameleiros", uma tenda e comida para uma ou várias noites no deserto. Proxima à fronteira com a Argélia --as autoridades locais recomendam que não se passe dali!-- Chebika e Tamerza são oásis no meio do nada, rodeadas por desertos de sal (lagos de água salgada, secos durante a maior parte do ano).

Basta uma tarde para conhecer as montanhas, percorrer a pé o leito seco dos rios e chegar às plantações de tâmaras e palmeiras, fazendo sombra a pequenos riachos ladeados por pedregulhos. Partindo para o sul, o calor aumenta e chega a ser insuportável mesmo no inverno. De oásis em oásis, chega-se em Tozeur, uma simpática cidade construída em tijolos aparentes, com um vívido mercado, e clima fresco trazido pelos palmeirais, e dali para Nefta, um vilarejo na fronteira entre desertos de sal e areia, de onde se pode empreender viagens de balão ao nascer do sol.

É nessa região que está uma das paisagens mais espetaculares do país, o Chott El Djerid, um imenso lago, quase sempre seco, que divide a Tunísia ao meio. As planícies de puro sal criam miragens no horizonte durante todo o trajeto, que por duas horas percorre uma pequena estrada de terra, cuja única vida são vendedores de tâmara a cada quilômetro.

A leste do Chott El Djerid, começa o Saara. Para não perder nada, hospede-se em Douz, passeie de dromedários, passe uma noite no deserto, contrate um passeio de carro até um antigo forte construído durante a Segunda Guerra Mundial.

Pelo caminho, restos de cidades engolidas pela areia, pequenos oásis de palmeiras, fontes modestas lotadas de gente em busca de água, dezenas de dromedários levando turistas e beduínos.

A partir daí, seguindo em direção à costa, as estradas só pioram, mas cidades se tornam cada vez mais curiosas e fazem valer a pena o sacrifício. A chegada a Matmata é um resumo dessa região do país. Quase não há construções à vista. Mesmo assim, há várias centenas de pessoas morando em habitações subterrâneas, escavadas para fugir do calor das pedras que cobrem a superfície. Não há jeito melhor de entender o porquê disso tudo que se hospedar em um dos dois hotéis enterrados da cidade.

Os quartos são quase claustrofóbicos, mas a temperatura mais fresca à noite compensa. No bar do Touring Club de Tunisie Marhala, George Lucas gravou cenas de "Guerra nas Estrelas".

Mais um episódio, que relata um período anterior ao descrito na primeira trilogia, foi filmado no início do ano em Chenini, uma aldeia construída em pedra como uma espiral ao redor de uma montanha, em cujo topo figura um pequena mesquita branca, contrastando com os tons terra do restante das construções.

Apesar do cenário fantasmagórico, 500 pessoas ainda vivem lá. Nos arredores, dezenas de pequenos vilarejos de pedra tornam o ambiente cada vez menos acolhedor. Os habitantes pouco acostumados a turistas, podem ser até um pouco agressivos. Como a última experiência antes de deixar o país, durma pelo menos uma noite em um das dezenas 'ksar' espalhados pelo sul.

São depósitos construídos por volta do século 13 por beduínos, para armazenas alimentos durante suas peregrinações pelo deserto. Há um hotel instalado em uma dessas construções em Ksar Haddada. Dali parta para conhecer Ksar Ouled Soltane, em melhor estado de conservação. Dali, a volta para Túnis de carro é cansativa, demorada e até mesmo um pouco perigosa.

Sempre resta a opção de pegar um vôo com a Tunis Air, que resume o trajeto em pouco mais de uma hora, mas priva o viajante de rever as paisagens. Oriente não tão longínquo, estranho mas nem tanto, a Tunísia resume o norte da África para quem gosta de história e aventura, mas prefere evitar os países vizinhos, nem tão calmos, nem tão hospitaleiros.

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre turismo na Tunísia
  • Confira outras opções de destinos na África
  •  

    FolhaShop

    Digite produto
    ou marca