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28/07/2005
-
11h34
Diretora-executiva da Folha Online
CAIO VILELA
Colaboração para a Folha de S.Paulo, no Irã
Quem visita o Irã, por mais que percorra cada canto do país, vai conhecer apenas metade dele. Nas casas da classe média, em um universo alheio ao corre-corre do turista comum, a vida privada pouco tem a ver com o cotidiano restritivo imposto pela República Islâmica, que forja no mundo inteiro a imagem de um país atrasado, inculto ou perigoso.
Na sala de estar de sua casa, em um bairro ao sul de Teerã, Hamid, um engenheiro aposentado da usina nuclear e membro ativo de um grupo de montanhistas, orgulha-se dos 700 canais do ocidente que sintoniza com a antena parabólica, equipamento formalmente proibido, mas amplamente disseminado. Como qualquer iraniano comum, evita comentar a polêmica mundial em torno do programa nuclear. Prefere sintonizar seu canal preferido, com transmissões ininterruptas de ópera, arte rara no Irã, onde as mulheres são proibidas de cantar em solo.
No quarto, o filho Mehdi, um estudante de engenharia, dedilha no violão uma das Bachiana de Villa Lobos, com partitura trazida da Europa por seu professor de música, um interessado em cultura latina.
Nascido poucas semanas antes da Revolução Islâmica que implantou o regime dos aiatolás no país em 1979, Mehdi não conhece mundo diferente do seu, embora sonhe com uma vida fora do Irã, embalado por relatos de parentes refugiados na Alemanha. "Mas vida como aqui, perto da família, não vai ter em lugar nenhum", conclui.
Na mesma tarde, Behrang, um jovem tenor que acabara de tornar-se amigo da família, convida a todos para assistir a um ensaio de coral. Depois de 40 minutos do trânsito caótico pela capital, junta-se a outras tantas vozes para mais um ensaio em uma sala no centro da cidade.
"É preciso disposição e uma certa coragem para cantar", explica. O regente incomoda-se com o desencontro das vozes na ária final e, num ímpeto, indica uma das sopranos para que faça um solo. As outras vozes se calam, ouvindo o som individual melodioso, provavelmente banido da série de apresentações que fariam em poucas semanas.
O engenheiro e o cantor reúnem-se novamente dois dias depois, para um almoço promovido pelo pai de Behrang, um advogado aposentado, formado em Londres, que insiste em oferecer whisky aos convidados, como prova de que "ainda existe liberdade no país", onde a bebida alcoólica é banida. Era Ramadan, e apenas o jovem Behrang, por razões filosóficas e não religiosas --faz questão de frisar--, segue o jejum, sob risos e chacotas da família.
Sua mãe, uma tradutora de inglês e italiano, lamenta que os filhos não conheçam outro mundo que não o da revolução. No quarto de sua irmã mais nova, Mojdeh, pôsteres dos Beatles misturam-se com fotos de Kurt Cobain, impressas da internet. Uma coleção de discos de rock sobre a mesa merece explicação: "São piratas, comprados no mercado negro. Todo mundo sabe onde tem", diz.
Na saída, todos se juntam para uma foto. Diante das lentes, Kyana, uma jovem amiga da família, aparentando não mais que 15 anos, se desespera. Não quer ser fotografada usando o delicado lenço de seda rosa que acabara de colocar sobre a cabeça para sair à rua.
Sua atitude não é incomum. Obrigadas por lei a usar manto e véu, as jovens iranianas protestam como podem. Com o rosto maquiado, enormes óculos escuros, apertam seus lenços à moda de Jaqueline Kennedy, com um pequeno nó abaixo do queixo, seguido por outro na nuca. Vestem os mantos já moldados ao corpo e de corte europeu com largos cinturões de couro criando uma atmosfera que remete à ocidental década de sessenta.
Em uma festa de aniversário, mães preocupadas relatam casos de amigas que tiveram as filhas presas pela polícia de costumes, por usarem mantos que pouco cumprem a função de esconder as formas do corpo feminino. "Não é grave, mas incomoda ter que ir até lá", contam. Enquanto isso, as jovens filhas usando minissaias e blusas de um ombro só, assim como muitas mães, esboçam uma espécie de dança do ventre clubber ao som de música eletrônica com uma batida iraniana.
Na mesma semana, Moojan encontra o namorado Ardalon em uma pizzaria de estilo americano no bairro jovem da cidade. Entre uma mordida e outra na pizza de salsicha, conta que gostaria de viver com o irmão em Londres. "Aqui não posso morar sozinha. É proibido", reclama enquanto toma uma Zam-Zam, o refrigerante negro do Irã, e ajeita repetidamente seu véu, deixando sempre aparecer o cabelo escuro, com um moderno corte rente e mechas douradas.
Na saída, sentindo falta de uma cerveja para acompanhar a pizza, saca o celular do bolso e após trocar algumas palavras em farsi anuncia: "Meu amigo está chegando com a cerveja. É só ligar. Traz o que a gente quiser: cerveja, whisky, drogas. Tem de tudo". A reportagem da Folha recusou, para sua decepção.
*Os nomes citados foram trocados
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ANA LUCIA BUSCHDiretora-executiva da Folha Online
CAIO VILELA
Colaboração para a Folha de S.Paulo, no Irã
Quem visita o Irã, por mais que percorra cada canto do país, vai conhecer apenas metade dele. Nas casas da classe média, em um universo alheio ao corre-corre do turista comum, a vida privada pouco tem a ver com o cotidiano restritivo imposto pela República Islâmica, que forja no mundo inteiro a imagem de um país atrasado, inculto ou perigoso.
Caio Vilela |
Casa de chá em Isfahan, com pessoas de todas as idades |
No quarto, o filho Mehdi, um estudante de engenharia, dedilha no violão uma das Bachiana de Villa Lobos, com partitura trazida da Europa por seu professor de música, um interessado em cultura latina.
Nascido poucas semanas antes da Revolução Islâmica que implantou o regime dos aiatolás no país em 1979, Mehdi não conhece mundo diferente do seu, embora sonhe com uma vida fora do Irã, embalado por relatos de parentes refugiados na Alemanha. "Mas vida como aqui, perto da família, não vai ter em lugar nenhum", conclui.
Na mesma tarde, Behrang, um jovem tenor que acabara de tornar-se amigo da família, convida a todos para assistir a um ensaio de coral. Depois de 40 minutos do trânsito caótico pela capital, junta-se a outras tantas vozes para mais um ensaio em uma sala no centro da cidade.
"É preciso disposição e uma certa coragem para cantar", explica. O regente incomoda-se com o desencontro das vozes na ária final e, num ímpeto, indica uma das sopranos para que faça um solo. As outras vozes se calam, ouvindo o som individual melodioso, provavelmente banido da série de apresentações que fariam em poucas semanas.
O engenheiro e o cantor reúnem-se novamente dois dias depois, para um almoço promovido pelo pai de Behrang, um advogado aposentado, formado em Londres, que insiste em oferecer whisky aos convidados, como prova de que "ainda existe liberdade no país", onde a bebida alcoólica é banida. Era Ramadan, e apenas o jovem Behrang, por razões filosóficas e não religiosas --faz questão de frisar--, segue o jejum, sob risos e chacotas da família.
Sua mãe, uma tradutora de inglês e italiano, lamenta que os filhos não conheçam outro mundo que não o da revolução. No quarto de sua irmã mais nova, Mojdeh, pôsteres dos Beatles misturam-se com fotos de Kurt Cobain, impressas da internet. Uma coleção de discos de rock sobre a mesa merece explicação: "São piratas, comprados no mercado negro. Todo mundo sabe onde tem", diz.
Na saída, todos se juntam para uma foto. Diante das lentes, Kyana, uma jovem amiga da família, aparentando não mais que 15 anos, se desespera. Não quer ser fotografada usando o delicado lenço de seda rosa que acabara de colocar sobre a cabeça para sair à rua.
Sua atitude não é incomum. Obrigadas por lei a usar manto e véu, as jovens iranianas protestam como podem. Com o rosto maquiado, enormes óculos escuros, apertam seus lenços à moda de Jaqueline Kennedy, com um pequeno nó abaixo do queixo, seguido por outro na nuca. Vestem os mantos já moldados ao corpo e de corte europeu com largos cinturões de couro criando uma atmosfera que remete à ocidental década de sessenta.
Em uma festa de aniversário, mães preocupadas relatam casos de amigas que tiveram as filhas presas pela polícia de costumes, por usarem mantos que pouco cumprem a função de esconder as formas do corpo feminino. "Não é grave, mas incomoda ter que ir até lá", contam. Enquanto isso, as jovens filhas usando minissaias e blusas de um ombro só, assim como muitas mães, esboçam uma espécie de dança do ventre clubber ao som de música eletrônica com uma batida iraniana.
Na mesma semana, Moojan encontra o namorado Ardalon em uma pizzaria de estilo americano no bairro jovem da cidade. Entre uma mordida e outra na pizza de salsicha, conta que gostaria de viver com o irmão em Londres. "Aqui não posso morar sozinha. É proibido", reclama enquanto toma uma Zam-Zam, o refrigerante negro do Irã, e ajeita repetidamente seu véu, deixando sempre aparecer o cabelo escuro, com um moderno corte rente e mechas douradas.
Na saída, sentindo falta de uma cerveja para acompanhar a pizza, saca o celular do bolso e após trocar algumas palavras em farsi anuncia: "Meu amigo está chegando com a cerveja. É só ligar. Traz o que a gente quiser: cerveja, whisky, drogas. Tem de tudo". A reportagem da Folha recusou, para sua decepção.
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