Saturno em Câncer

memórias de um tempo que não tem tempo

José Maria
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Depois de quase trinta anos Saturno entra no signo de Câncer em 3 de junho 2003, inaugurando uma nova etapa solsticial, de sete anos aproximadamente -- até que chegue a Libra. A última passagem de Saturno por essa região ocorreu entre agosto de 73 e setembro de 80.

Saturno, o senhor do Karma, tem seu domicílio em Capricórnio -- signo de Terra -- oposto às águas de Câncer, daí que Câncer é o seu exílio. Câncer é a casa da Lua, representação da alma que envolve o planeta Terra em sua jornada em torno do Sol, e nos sinaliza que a alma não se limita às fronteiras do corpo, senão que é o campo que abarca toda experiência, onde se registram todas as memórias, e por isso mesmo não está estrita ao tempo, ou espaço, e nesse sentido a alma é eterna. É através da alma que nos ligamos à ancestralidade, aos antepassados, aos registros familiares, sejam genéticos, emocionais, ou kármicos. Em Astrologia Mundial a Lua também representa o povo, a gente comum, principalmente mulheres e crianças, e através das dinâmicas dessas relações, o que nos é nutrido pelo aleitamento cultural.

A presença de Saturno nesta porção zodiacal nos põe em contato direto com a realidade dos sofrimentos e feridas marcados na alma da família humana. Feridas que não cicatrizam. São dores que não estão no corpo, e que por estarem registradas nas dimensões do inconsciente se perdem no tempo, mas brotam em forma de sentimentos de medos, inseguranças, ameaças, a necessidade de defesa e auto proteção, ou a tentativa de controle de uma situação, a qual não se pode controlar.

Diz-se que a sensibilidade de Saturno é tosca. Encontramos na mitologia grega o deus Cronos, referente a este planeta. Conta o mito que Cronos, ao sentir ameaça de ser destronado por um dos seus filhos, os come assim que nascem, e mais -- engole pedra embrulhada em pano, pensando que é mais um filho seu. De Saturno nas águas de Câncer, por tais circunstâncias, o que se pode esperar? Uma tentativa de autofagia do tempo, pois tudo que nasce do tempo é devorado pelo próprio tempo. Parece-me que a saída de Saturno de Gêmeos foi verdadeiramente devoradora do próprio berço, senão berço da civilização, entre o Rio Tigris e Eufrates, ali onde nasceu a Astrologia, e por assim ser foi "triunfal". Ao invadir a Babilônia, depois de deixar em destroços a maravilhosa cidade das mil e uma noites do mundo antigo, Bagdá, veio a destruir também importantes papiros da tradição muçulmana, entre eles o mais antigo Alcorão. Dói na alma.

Hoje temos consciência que os homens e seus poderes passam, mas a alma é eterna, e não se submete à ação do tempo. Preserva-se através dos ciclos, em memória, aquilo que não tem tempo -- o tempo da alma -- e por isso não pode morrer nunca. A noção que temos de tempo, só a temos pela percepção da repetição dos ciclos, e esse tempo não pode ser devorado por Saturno. Existe, independente da existência de homens, deuses, e de homens que pensam que são deuses. Os ciclos dos planetas são expressões da eternidade. Há milênios, quem sabe milhôes de anos, Saturno passeia por aí, em épocas outrora identificadas como tempos de vacas gordas, tempos de vacas magras... Nascem civilizações, morrem outras tantas, devoradas pela própria expressão no tempo -- mas o ciclo perdura, pois a alma não é pequena, não se encontra adentro, senão abarca a tudo e a todos, é abrangente, inclusiva a alma, é eterna.

O desenho do símbolo de Câncer pode se visto como os "olhos da alma", e nos conecta com as origens, com o despertar da consciência. É a saída de um estado vegetativo, ou vegetal, inconsciente, do IMPULSO pela vida, para o plano INSTINTIVO do reino animal, onde se encontra a liberdade das raízes do solo e se expressa através da formação de ninho e prole, instinto de preservação da espécie. Passa-se a experimentar a realidade diretamente com os próprios olhos. Mas o que enxergam esses olhos? O signo de Câncer -- o Solstício -- Sol estático -- é aquele ponto na eclíptica aonde o Sol chega, em junho, ao extremo do Trópico, pára e então começa a retornar em direção ao Equador. É a parada do Sol, a pausa. O "espaço-entre" um e outro ciclo, entre uma e outra estação, uma e outra respiração, é a pausa existente entre uma e outra batida do coração. É nesse "espaço-entre" que os yoguis entram em meditação, que os sadhus e sanyassin caminham em suas peregrinações, os santos geram em suas orações, que os monges alcançam em seus retiros espirituais e jejuns, que o filósofo constrói entre um e outro pensamento, que o artista revela através das múltiplas dimensões da expressão da força criativa de sua obra, e que simboliza o eterno retorno ao estado de origem, ao sentimento de pertinência, lá onde tudo começou. É aí onde Saturno entra, neste mês. E por ser o Senhor do Tempo, nos remete aquele outro tempo, imemorial, da alma, quando as famílias em volta de uma fogueira celebravam a força do Sol Maior. E contavam, de boca a ouvido, as histórias das mais antigas tradições, as histórias da origem do mundo e dos deuses.

Assim esse tempo, do eterno retorno de Saturno ao signo de Câncer, nos remete à idéia do eterno retorno do tempo, e ao resgate da força daquilo que tem Tradição, pois o que tem Tradição se mantém vivo, para que se renove então. A Astrologia é uma dessas mais antigas Tradições da história da humanidade, de mais de 6.000 anos, e milhões de seres humanos, e continua viva, hoje mais do que nunca. Por ser tradicionalmente regida por Saturno, nos conta a história do tempo, através dos ciclos, mas também daquele tempo que não tem tempo -- o tempo da alma -- já que Saturno, por estar inserido na Astrologia, não tem o poder de destruí-la. Não importa se livros de Astrologia também possam ser "devorados" pelo mesmo motivo que bombardearam aqueles das antigas culturas islamicas, o que fica impresso na alma jamais será perdido, é como "o céu, um livro aberto que nunca foi nem será destruído". A Astrologia faz parte da alma humana.