De uns tempos para cá, todo mundo anda "literalmente" alguma coisa: literalmente morto de cansado, literalmente louco, literalmente matando cachorro a grito. Quando falam isso, as pessoas imaginam que estão dizendo que estão muito cansadas, muito loucas, muito desesperadas. Mas olha a revelação: "literalmente" não é sinônimo de "muito", e se você o usa assim, pode estar literalmente passando vergonha.
No dicionário, literalmente é um advérbio que significa "de modo literal, exatamente, expressamente". Ou seja, quando uma coisa acontece literalmente, ela acontece do exato jeito que a palavra seguinte compreende. Por isso que dizer que você está "literalmente morto" não é aceitável se você não morreu de fato.
O colunista de língua e linguagem da Folha Sérgio Rodrigues escreveu, no meio de 2023, uma coluna em que falava sobre o problema. Em um trecho, ele diz: "A rigor, 'A viagem me deixou literalmente morto de cansado' é uma afirmação que só poderia ser feita por um autor defunto como Brás Cubas [de Machado de Assis] —ou, quem sabe, recebida como mensagem do além em centros espíritas".
"Acho que o mais absurdo que já ouvi foi alguém dizendo que estava literalmente frito", diz Sérgio, em entrevista ao Folhateen. "A pessoa não leva em conta ou não sabe que o sentido do literalmente é ser de fato literal, é ser uma coisa ao pé da letra, uma coisa que não está sendo dita no sentido figurado, e acha que é só um sinônimo de 'incrivelmente', de 'muito', de 'demais', e usa assim."
Em vez de "literalmente", dá para dizer que você está muito, super, pra caramba, bastante, excessivamente, absurdamente, imensamente, profundamente alguma coisa. E, se você ama o "literalmente", dá para aplicá-lo corretamente em frases como "Eu literalmente dormi demais", "Ele literalmente se machucou no acidente", "Ela literalmente se perdeu a caminho daqui".
Segundo Sérgio Rodrigues, usar o literalmente de um jeito errado não é uma mania exclusiva dos falantes do português —ela também acontece no inglês. "Já existem dicionários da língua inglesa que aceitam o 'literalmente' com esse sentido de um advérbio de intensidade, um advérbio de reforço, de ênfase", conta.
"Só que é uma coisa bastante controversa. Quando o uso é muito disseminado, muito espalhado, quem zela pelas normas da língua, os gramáticos, dicionaristas e tal, eles acabam tendo que assimilar aquilo, porque o uso é soberano. Em todas as línguas é assim, muitas coisas que eram erros antigamente já não são mais erros."
Mas, no caso do "literalmente", explica Sérgio, seria um "prejuízo" perder uma palavra para a qual não há uma substituta, enquanto para intensificar algo existe um monte de alternativas. "A gente não precisa botar mais uma palavra lá. O 'literalmente' é muito útil com o sentido de uma coisa que não é figurada. Ele se opõe justamente ao figurado."
E o sentido figurado, você sabe o que é? Enquanto o sentido literal fala do que aquela palavra diz de verdade, o sentido figurado faz o oposto disso, ele cria sentidos que vão além do usual. Tipo dizer que alguém ganha "rios de dinheiro" (não são rios literalmente, certo?).
Mesmo que exista esse debate sobre transformar o "literalmente" no dicionário, Sérgio acredita que isso nunca vá acontecer realmente. Em sua coluna de 2023, ele já falava sobre essa possibilidade: "Pode ser que um dia tudo isso seja considerado correto? Pode. Espero estar literalmente morto até lá", escreveu.
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