Filhos de médicos e enfermeiros revelam orgulho, receio e saudade

Crianças falam sobre a experiência de ter os pais no combate à Covid-19

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São Paulo

Nestes dias em que muita gente peleja para lidar com o confinamento e entreter os menores, entediados e apartados do convívio com os coleguinhas, há um grupo de pais e filhos que enfrenta desafios ainda maiores. São os profissionais da saúde, que atuam na linha de frente do combate à Covid-19, e suas crianças, sujeitas a restrições mais severas na relação com eles.

"Quantos pacientes com coronavírus atendeu hoje?" é a pergunta que Eduardo Segalla de Mello, 42, médico plantonista do Hospital Albert Einstein, ouve diariamente do filho Bruno Tuma de Mello, que, aos dez anos de idade, já compreende que o pai não pode abraçá-lo e beijá-lo como antes ao chegar em casa.

À esquerda foto de Bernardo de óculos e pijama sorrindo sentado em sua cama. À direita e acima, foto dos irmãos Joaquim e Vittorio sorrindo para foto; à direita e abaixo, Bruno e Nathalia abraçados e sorrindo
Bernardo Ferrari Tavares de Melo Valeiro (à esq.), 4, filho da médica Tatyana Ferrari, 39. Joaquim Lombardi, 7, e o irmão caçula Vittorio Lombard, filho da pediatra Mariana Lombardi Novello, 34. E Bruno, 10, e Nathalia Tuma de Mello, 7, filhos do médico plantonista do Hospital Israelita Albert Einstein Eduardo Segalla de Mello, 42 - Arquivo Pessoal

A caçula, Nathalia, de apenas sete, não gosta de falar sobre o assunto, com receio de ter pesadelo à noite. Segalla diz, entretanto, que a filha dorme tranquila e que tem lidado bem com o atual cenário de isolamento. O médico conta que ele e a mulher decidiram evitar que as crianças vejam, na TV ou na internet, notícias sobre a pandemia, tarefa que não é das mais fáceis. "Pô, pai, sai do celular", cobra o garoto.

"Ele quer que a gente se desligue um pouco, mas também espera que eu dê o celular para ele. Isso eu não posso fazer. O aparelho é possível fonte de contágio", explica o médico, que trabalha em prontos-socorros há 18 anos, 10 dos quais no do Hospital Israelita Albert Einstein.

Assim que, em 11 de março, a OMS declarou a existência de uma pandemia, Segalla reuniu-se com a família para explicar a situação.

Comunicou às crianças que elas ficariam por algum tempo longe dos avós e sem ir à escola. Fez isso antes mesmo de o colégio anunciar a medida restritiva. "Sigo os procedimentos de higiene, tomo banho e tento me livrar do estresse para estar junto a eles e deixá-los tranquilos", diz o pai.

As crianças vão tentando se adaptar tanto ao isolamento quanto à rotina dos pais. "É difícil, tedioso até, mas tem o lado legal", afirma a estudante Isabela dos Santos Moura, 8, de Pirituba, zona oeste, quando fala sobre as mudanças impostas pela quarentena.

A mãe, Gisele dos Santos Barros, 37, é enfermeira do Hospital das Clínicas. Atua na área de pesquisas clínicas e lida diretamente com pacientes. Mãe de Isabela e de Lara, de apenas três anos, ela conta ter afastado as garotas da avó, que costumava ajudar a cuidar delas.

"Reduzi os contatos íntimos com as meninas. Não dormimos mais juntas. Por enquanto, não tem mais beijos", avisa. Isabela entende a atitude materna e se defronta com seus próprios sentimentos: por um lado, o temor da doença — “Tenho medo de que ela pegue o corona” —, mas, por outro, a admiração pelo papel de sua mãe: “Sinto orgulho de minha mãe ajudar a salvar vidas", diz a menina.

Para Joaquim Lombardi, 7, "difícil para caramba" é lidar com os plantões da mãe, a médica Mariana Lombardi Novello, 34, do pronto-socorro do Hospital São Luiz Anália Franco, na zona leste, onde, equipada com touca, máscara, avental, luvas e óculos de proteção, ela se reveza em turnos de 6h e 12h.

Como o garoto andava ansioso, Mariana, que também é mãe de Vittorio, um bebê de um ano, explicou a ele sua nova rotina e suas responsabilidades neste momento. "Não tenho medo de que ela pegue o vírus, porque todo o mundo pode pegar, né?", diz o menino, tentando lidar com uma situação que traz receio a toda a população. A mãe, no entanto, sabe que ele se preocupa: “Ele sempre me pergunta se atendi alguém com o coronavírus”.

Joaquim, porém, está ciente da importância dos médicos. "O trabalho da minha mãe é quase como o trabalho da Mulher-Maravilha", sintetiza.

Na opinião do psiquiatra Guilherme Spadini, 43, do HC e da organização global The School of Life (que se dedica a desenvolver inteligência emocional), não se deve mentir para as crianças. "É importante que elas saibam o que está acontecendo e que tenham noção de que papai e mamãe, os profissionais de saúde, estão salvando vidas. Eles são, sim, heróis. Assim como é fundamental que elas tenham consciência de que tudo vai ficar bem, de que isso vai passar."

Que passe logo, porque "quero voltar a abraçar e a beijar a minha mãe", diz Davi Reis Pires, 7, de Itaquera (zona leste). Silene, 38, mãe do menino e de seus irmãos, Kauan, 12, e Keven, 15, é auxiliar de limpeza em unidades e ambulatórios da rede pública municipal.

Até a última terça (31), era o mais velho quem tomava conta da casa enquanto os pais estavam trabalhando. Na quarta (1º), contudo, o serralheiro Roberto, pai dos garotos, foi colocado em férias pela empresa.

"Estou surpreendida com o mais novo. Dá um banho de informação nos irmãos", conta Silene. "Apesar de sentir o distanciamento, ele me alerta sobre o perigo de a gente ficar juntinho."

Com apenas quatro anos, Bernardo Ferrari sabe na ponta da língua os principais sintomas do contágio: "Febre, dores de garganta, cabeça, barriga, tosse e muita falta de ar", responde ele num piscar de olhos. "Deve espirrar e tossir assim, com a cabeça para baixo, perto do cotovelo", ensina. Filho da médica Tatyana, 39, o menino incluiu na rotina o hábito de assistir a telejornais ao lado dos pais e passou a questioná-los sobre tudo o que vê acerca do novo coronavírus.

Perdeu, contudo, a companhia dos avós maternos desde o dia 13 de março. Agora fica com o pai, o publicitário Vinicius. Tatyana atende em duas Unidades Básicas de Saúde e em duas Amas, nas quais mantém contato direto com a população mais carente da maior cidade do país.

Quando chega em casa, antes de subir para o apartamento onde vive, na Barra Funda (zona oeste), ela interfona para o marido. Ele e o filho correm para a sacada e lá aguardam que ela suba e realize todo o protocolo de higienização. "Ele ainda não tem noção dos riscos que a mãe corre", acredita Tatyana. Com a espontaneidade própria das crianças, porém, Bernardo faz a pergunta que a todos angustia: "Já encontraram a cura? Não aguento mais de saudade do vovô e da vovó".

Davi, 5, e João, 3, tiveram que lidar com a ausência da mãe, a enfermeira Maria Beatriz Simões, 42, por nove dias. Devido a suspeitas de contato com o coronavírus, ela se afastou da família. Mudou-se para o apartamento do pai, onde morava quando solteira, na Praça da Árvore, zona sul.

Diariamente, comunicava-se com o marido e os filhos por chamadas de vídeo. Pelo smartphone, eles brincavam de pega-pega ou pique-esconde, ela ajudava as crianças nas tarefas escolares e ensinava o marido a preparar a comida, sempre interagindo com os meninos.

Davi era o mais inquieto. "O coronavírus está com você?" Vez ou outra, o caçula queria saber se era "legal ficar sozinho" ou se a mãe pretendia "ficar por aí pra sempre".

Maria explicava que estava trabalhando, que não poderia voltar para casa, sob o risco de transmitir o vírus para toda a família.

As crianças, lembra ela, cresceram sabendo que a mãe é uma profissional de saúde. "A gente aprendeu desde pequenino que a mamãe cuida de pessoas", conta Davi. Em algumas noites sem ela, o menino se agarrava a Fofinho, como chama uma almofada que abraça para aplacar os momentos de solidão. "Dormia com ele para me sentir abraçado pela minha mãe."

Sem manifestar sintomas, Maria interrompeu a reclusão, com o consentimento médico, no nono dia de isolamento. Difícil foi segurar o impulso na hora do reencontro. "Não pude beijá-los nem abraçá-los."

Na avaliação dos pais, os meninos mostraram amadurecimento. "A adaptação é mais fácil para as crianças do que para os adultos. Eles [os meninos] saíram mais fortes dessa", diz a mãe, sem medo de parecer “coruja”.

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