Dois amigos fazem um trabalho da escola em que precisam desenhar eles mesmos. Um deles sai para pedir lápis de cor emprestado. O outro avisa: “Lembre-se de trazer o lápis ‘cor de pele’”. Na volta, o amigo traz três cores: amarelo, emprestado por um amigo japonês, um branco e um marrom, emprestados por uma criança branca e negra, respectivamente.
A cena integra o livro “Turma da Goiaba”, lançado no final de 2019 pela editora Avec, de Porto Alegre. O autor, Anderson LadoBeco, 40, levou para a literatura os personagens que antes ganharam fama em uma série dirigida por ele e publicada no Youtube.
Filmada em Santos, no litoral paulista, a séria “Turma da Goiaba” tem no elenco crianças que improvisam diálogos a partir das histórias criadas pelo diretor.
“Elas não decoram textos, inventam na hora. O roteiro é prévio, mas, a construção cênica é delas”, explica o diretor.
Duas amigas se encontram e descobrem que uma contou o segredo da outra. “Como elas reagiriam? Como se expressariam? A filmagem permite essa possibilidade de liberdade de expressão e espontaneidade”, diz.
A identificação do público infantil com os diálogos, que soam naturais, e com os personagens, que cometem erros e acertos, estão entre as razões do sucesso da produção. O seriado também procura mostrar crianças com autonomia e livres para brincar.
Diariamente, a audiência média da série é de 450.000 visualizações. Em tempo de isolamento social por causa da pandemia do novo coronavírus, as visualizações diárias saltaram para 550.000. São 60 episódios, divididos em duas temporadas. A série estreou em março de 2018 e já superou 300 milhões de visualizações.
Porém, para evitar risco de contágio do elenco mirim, as gravações da “Turma da Goiaba” e de outras produções do LadoBeco estão suspensas. O diretor escolheu crianças de origem simples para o elenco, que estivessem familiarizadas com as brincadeiras na praia e pudessem levar essa vivência para os personagens.
A turma de cinco crianças — com nomes que homenageiam figuras históricas como Nelson Mandela, Luiz Carlos Prestes, Anita Garibaldi, Dandara e Olga Benário — precisa resolver problemas com autonomia.
Nas tramas, a compreensão das crianças sobre temas como a morte não é subestimada. O diretor mantém uma preocupação constante em evitar “maniqueísmos”. Uma das personagens mais queridas da audiência, Anita, por exemplo, “pisou na bola”: cometeu discriminação racial ao zombar do cabelo do amigo negro, Nelsinho.
“Nesse momento a reação do público foi com comentários como ‘não esperava isso de você!’. Essa construção é para que se entenda que ela não tinha só o lado legal, mas também o ‘lado sombra’. E que o fato de ter dado tantas mancadas, não significa que ela seja só isso”, explica.
Os erros da amiga resultaram em um episódio em que a turma se reúne para “discutir a relação”. “Juro por Deus que não imaginava que daria tanta audiência um episódio com as crianças sentadas conversando e mais nada. Mas as crianças piraram! Ao longo do episódio se constrói a ideia de que todo mundo erra e para acertar é preciso uma oportunidade para corrigir”, conta.
Alvo de racismo, Nelsinho não participa da discussão. “Na verdade, ele estava muito doente e não pode gravar. Como a gente se vira com o que tem, ele participou pelo telefone”, relembra aos risos.
A produtora LadoBeco, que acabou virando sobrenome do diretor, distribui cerca de 5% do faturamento mensal para cada crianças. Veiculadas no Youtube, as gravações são custeadas com o valor repassado pela plataforma em troca da audiência para seus anúncios.
“Tem meses que chegam a ganhar a R$ 900. Isso é impactante na receita das famílias. A Sophia Rodrigues, que interpreta a Olga, se orgulha de pagar as contas de luz e telefone da casa, mesmo que aproveite também para ir ao shopping e passear”, diz.
O crescimento da audiência em meio à pandemia não aumentou o faturamento da produtora. Isso porque, embora tenha mais visualizações, os anunciantes do segmento de varejo estão investindo menos em propaganda no Youtube ou mantendo o patamar pré-pandemia. Com aumento do dólar, o mesmo valor em reais resulta em menos alcance.
Como o acesso ao seriado série é gratuito — sem exigência de assinatura de um serviço de streaming como Netflix ou GloboPlay por exemplo —, o diretor nota que a “Turma da Goiaba” é bem recebida na periferia.
“Percebo esse recorte econômico também pela maneira como o público se sente familiarizado com o universo das crianças da série, que brincam na rua e mexem no fogão, enquanto o normal seria no máximo usar o microondas”, conta.
“O pico de audiência, entre 18h e 22h, também permite pensar que é o horário em que a família preparara a janta e a criança pode usar o celular, até que chega a hora de dormir”, relata.
Realidade social e econômica também está presente na série. No primeiro episódio, que aborda a Páscoa, uma das meninas está triste porque não vai ganhar chocolate por causa da crise. A amiga explica que “a crise” é “uma mulher que não deixa os pais ter dinheiro”.
LIVRO
Turma da Goiaba
Avec Editora
48 páginas
R$ 24,90
SÉRIE
Turma da Goiaba
Gratuito
https://www.youtube.com/ladobeco
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