Cientistas topam até lambida para estudar sapos e pererecas

Mapa da evolução dos anfíbios é feito com dados como sons, cheiro e gosto

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São Paulo

Alguns acham que sapos, rãs e pererecas são nojentos e têm pavor só de olhar. Outros gostam de apreciá-los, mas à distância. E há quem curta observá-los, escutá-los, pegá-los na mão, cheirá-los e até mesmo lamber seu não tão doce saber, como quem desfruta de um caramelo.

A bióloga e cientista Olívia Gabriela Araújo, com 20 anos de experiência com estes bichos, já provou alguns. Ela conta que o gosto é “meio amargo”, e que cada espécie é de um jeito.

A comunicação dos sapos - Folhinha
Mãe que carrega os filhotes em suas costas, em uma espécie de colmeia embutida - Catarina Pignato

Há até algumas que liberam uma secreção com um quê de pimenta, irritante —tudo para tentar fazer um eventual predador mudar de ideia logo na primeira abocanhada.

Além do paladar, o cheiro, as imagens e os sons também ajudam a saber quem é quem nesse mundaréu de mais de 7.300 espécies de anuros (anfíbios que não têm caudas em suas formas adultas), sendo que mais de 1.000 delas são encontradas no Brasil.

As idas ao campo, seja em uma floresta, uma cachoeira ou um brejo, são essenciais para pesquisas que buscam entender o comportamento e a vida desses animais.

“Muitos trabalhos saem de eventos inusitados no campo: estamos procurando uma coisa e achamos várias outras. E, se achamos, temos que anotar, filmar. Às vezes, só de olhar, os bichos são muito parecidos, mas pelo canto dá para saber que é outra espécie”, descreve Olívia.

O fato de haver poucos nomes populares —sapo, rã e perereca— para tanto bicho pode contribuir para uma certa confusão, mas podemos analisar essa questão.

Em linhas gerais, rãs passam sua vida quase o tempo todo dentro da água e têm até patas adaptadas com membranas entre os dedos, que as auxiliam a nadar melhor.

Pererecas costumam habitar árvores, e têm uma pele adaptada para suportar o vento e não ressecar, além de adaptações como ventosas na ponta dos dígitos (“dedos”).

Isso é bem visível no caso da perereca-castanhola (Itapothyla langsdorfii).

Por sua vez, sapos são muito mais terrestres, e sua pele é seca e enrugada (e com glândulas de veneno, cuidado!).

Para organizar uma espécie de “mapa” das espécies, é necessário analisar um montão delas, fazer medições do corpo dos bichos, estudar o DNA (código genético), além de registrar os coaxos no que os pesquisadores chamam de fonograma —os padrões formam uma espécie de “impressão digital” sonora.

Dá até para usar o som gravado para atrair outros bichos, com o anúncio de um macho em busca de fêmeas, ou suscitar movimentos mais agressivos com os chamados cantos territoriais, em que os machos querem mostrar quem manda no pedaço.

Normalmente os anuros têm um estágio de desenvolvimento na água. Dos ovos nascem as larvas, também chamadas de girinos, que possuem cauda e respiram por brânquias. Com o tempo surgem as patas traseiras, depois as dianteiras, além de uma série de outras mudanças. Por fim, a cauda é reabsorvida.

Mas os bichos que mais interessam a Olívia são aqueles que não obedecem a essas regras, como as rãs do gênero Pipa, que têm a estranha capacidade de carregar os seus ovos nas costas, numa espécie de colmeia. É como se a rã engravidasse ao contrário.

Quando saem dali, os filhotes já são pequeninas rãs —ou seja, nada de girinos por aqui.

Bióloga Olívia Gabriela dos Santos Araújo, 42, que estuda anfíbios

Existem estratégias bem engenhosas como guardar os ovos no estômago, para protegê-los de predadores. As rãs australianas do gênero Rheobatrachus adotavam esta técnica, mas foram consideradas extintas no começo do século.

Na hora de procriar, pode acontecer um perereco (você conhece essa gíria para ‘confusão’?). Todo o esforço de um macho para cantar e atrair uma fêmea pode ser em vão quando vem um espertinho e rouba a cena, depositando seus espermatozoides antes.

Moral da história: nem sempre o mais esforçado leva vantagem, mas o mais esperto.

Olívia se deu a missão de entender como anuros de diferentes regiões se desenvolvem e chegam à fase adulta, e como as espécies evoluíram.

No passado, havia o supercontinente austral Gondwana, que reunia as atuais África, América do Sul e Antártida. Ele começou a se quebrar há cerca de 180 milhões de anos, e os continentes foram se afastando até chegar à disposição atual.

Os bichos que ficaram em cada um dos lados evoluíram à própria maneira, de acordo com as pressões de cada ambiente. E foi para entender diferenças como estas que Olívia visitou Amazônia, América Central, EUA e Alemanha.

Atualmente ela está em Rio Claro, na Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Entre as espécies com as quais já lidou estão a rã-manteiga (do gênero Leptodactylus), que tem patas dianteiras “bombadas”. Como elas costumam se esmurrar na disputa por território, pode-se considerar uma adaptação evolutiva importante.

A perereca-das-folhagens (Phyllomedusa burmeisteri) tem uma performance ensaiada para quando não há saída de uma captura: fingir-se de morta (tanatose). Antes disso ela tenta se camuflar entres as folhas e até pode exalar um aroma de ervas.

Os anfíbios são cruciais para o balanço ecológico, explica Olívia, daí a importância de preservá-los e de preservar também seu habitat.

“Se sapos parassem de comer mosquitos, poderia surgir uma superpopulação desses insetos e mais doenças transmitidas por eles”, diz.

“E essa ausência também afetaria os predadores, como aves e serpentes. É um efeito em cascata: tirando um organismo, vai mexendo em todo o ecossistema e pode chegar até a gente.”

Outra razão para preservar sapos e afins é o potencial para o surgimento de novos medicamentos a partir das secreções da pele e do veneno.

É possível que logo Olívia vá trabalhar na Alemanha, mas, mesmo se rolar, a meta seria voltar para o Brasil. “Quero montar um centro de pesquisa avançado no Nordeste e construir uma grande rede de colaboração. Conhecimento parado não serve para nada.”

O LEGAL DA CIÊNCIA

Série apresenta cientistas e suas pesquisas. Saber como a ciência acontece nos ajuda a entender como o mundo funciona. Da vida de um inseto à matemática, da construção de novas moléculas à psicologia, da exploração espacial aos novos tratamentos da medicina: para onde se olha, há ciência. E nós vamos descobri-la.​

TODO MUNDO LÊ JUNTO
Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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