Descrição de chapéu Todo mundo lê junto

Nem sempre quem é mais competitivo é mais seguro, diz psicanalista

Competição em si não é nem boa, nem ruim; o importante é saber lidar com os resultados

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São Paulo

Seja nas competições oficiais das Olimpíadas, como a de Tóquio que começa na semana que vem, seja em uma partida de jogo de tabuleiro com amigos, o placar que mostra a pontuação e a colocação dos participantes tem sempre algo em comum: nele, aparecem um vencedor e um perdedor.

É que um não existe sem o outro —se não há alguém para perder a disputa, não tem como alguém ganhá-la. Essa observação muito esperta é de uma menina chamada Valentina. Ela tem 12 anos, mora em São Paulo, e há dois anos tem aulas de balé.

Folhinha pergunta se competitividade é legal, e até que ponto
Você sabe perder e ganhar numa boa? - Catarina Pignato

Um dos desafios das bailarinas é participar de audições, que é quando são escolhidos os nomes para interpretar os papéis de um balé famoso, como “O Quebra-Nozes”, por exemplo. E, nestas audições, sempre alguém vencerá ou perderá a disputa pelo papel principal.

“Eu fico bem nervosa nas audições, é como se várias formigas subissem no meu corpo ao mesmo tempo. Fico com arrepio. Mas eu gosto, e, como sei que é pro papel, eu vou pra ganhar e dou o meu melhor. Estou lá pra competir mesmo”, diz a bailarina.

A vida é cheia de competições. Tem gente que, assim como a Valentina, não se importa em passar por essas provas, mas, por outro lado, tem quem deteste concorrer por qualquer coisa, e desista antes mesmo de tentar.

Será que é porque a competição não é algo saudável? “A competição em si não é nem boa nem ruim, ela é um acontecimento na relação entre as pessoas. O modo como a gente trata a competição e os efeitos do resultado dela sobre os envolvidos, isso, sim, é importante”, explica Ilana Katz, psicanalista de pós-doutorado no instituto de psicologia da USP, a Universidade de São Paulo.

Para ela, é legal refletir sobre por que competimos, em nome de que e para quê. “A ideia de ser o melhor vale qualquer outro valor?”, pergunta Ilana. “Você vai precisar ganhar sempre ou, um dia, a solidariedade vai poder ser maior que o prazer da sua vitória?”.

“Saudável é a gente se engajar em um modo de competir em que o outro conte. Fora que saber perder é tão importante quanto saber ganhar, olhar para como você se posiciona diante daquilo que você perdeu ou ganhou.”

Antonio tem cinco anos e gosta de brincadeiras com a família, inclusive aquelas em que há disputa pelo melhor lugar. “Porque às vezes eu posso ganhar, e às vezes eu ganho”, conta. Sabe como ele se sente quando vence a partida? “Me sinto comemorado!”.

Mas, quando o resultado não é favorável a ele, Antonio não fica muito feliz, não. “Quando eu tô perdendo eu acabo com o jogo, faço o fim e faço que eu ganho”, diz. A mãe dele, Ciça, garante que não é sempre que ele fica chateado tanto assim, só quando joga xadrez com o pai.

“Às vezes eu fico brava quando eu perco, mas nada muito grande”, admite Valentina, que conta que sua reação mais comum quando não é a vencedora em alguma competição é ficar chateada, “com a cara fechada e triste”.

Um dia, ela disputou um cabo-de-guerra na escola, e queria “muito, muito mesmo ganhar”. “Puxei com a corda com tanta força que meu braço ficou ardendo e doendo, mas acabei perdendo. Fiquei muito brava comigo mesma por ter me machucado e ainda ter perdido”, lembra.

Bailarina de 12 anos lê livro com a perna esticada para cima, deitada de bruços
Valentina, 12 anos, estuda balé desde os dez e se sente cada vez lidando melhor com as situações em que perde alguma disputa - Arquivo pessoal

Valentina acha que, quanto mais velha está ficando, melhor está sabendo lidar com a frustração de não vencer. “A gente precisa lidar com isso, nem sempre tudo vai ser como a gente quer, e tá tudo bem. A perda faz parte, se a gente não tem a perda a gente não tem o ganho”, reflete.

Ela jura que, nas audições pelos papéis do balé, sempre que vence ela não tripudia das outras bailarinas. Já no caso do dominó que ela joga em casa, aí as coisas são um pouco diferentes. “Na minha família as pessoas são muito competitivas, então, quando eu ganho, eu fico tirando sarro”, conta.

“Meus filhos foram esportistas, e lembro que eu falava para eles que ganhar o jogo é muito legal, mas é só isso, não é ser melhor no resto todo”, lembra a psicanalista Ilana. Ela diz que, às vezes, quando alguém tem medo de competir, é porque sente que aquela disputa representa muito mais do que ela significa na realidade.

“É como se estivesse em jogo todo o nosso caráter, toda a nossa existência. Mas é só sua competência em matemática, ou sua habilidade em futebol ou em dominó que estão aparecendo ali”, acalma Ilana.

“Todos nós temos nossos limites e limitações”, concorda o judoca brasileiro Tiago Camilo, que ganhou sua primeira medalha olímpica aos 18 anos, nos Jogos de Sydney, em 2000. “O treinamento nos dará ferramentas para evoluirmos e empurrarmos cada vez mais pra cima esses critérios.

Tiago começou no judô aos cinco anos e competiu pela primeira vez aos sete. “Acredito que tudo deve ser muito natural e saudável no início, precisa ser divertido. Acelerar esse processo pode tornar o processo desgastante, e as crianças podem perder o interesse pelo esporte.”

Tiago diz que todos iremos perder um dia, já que não existem nem vitória, nem derrota eternas. “Quanto mais cedo a criança compreender e aceitar isso, mais ela conseguirá evoluir”, acredita.

Ilana conta que, em seu consultório, atende algumas crianças que admitem dar uma roubadinha de vez em quando nas partidas. Nestes casos, ela faz um questionamento importante: “Pergunto se está valendo mesmo ganhar desse jeito, se a criança considera mesmo isso ganhar”, fala.

“Para muitas crianças, basta que o outro acredite que ela é boa mesmo”, resume a psicanalista. “Precisamos por na conta o que a gente perde quando precisa ganhar a qualquer custo. E nem sempre as pessoas mais competitivas são as mais seguras. Pode ser alguém que precisa mostrar para o outro o tempo inteiro o quanto vale.”

Ela explica que o ideal não é tirar a competição do mundo, mas pensar sobre ela sempre que possível. “É importante para que a gente viva em um mundo mais legal, em que ganhar e perder não signifique nada além disso.”

“Sabe o que eu diria para alguém que acabou de perder uma disputa e está frustrado? ‘Vamos jogar de novo?’. Porque essa não é a última cena da sua vida, a gente pode jogar de novo e você pode ganhar.”

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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