Saramago tinha um jeito carrancudo, mas era o maior brincalhão das palavras

Textos que ele escreveu para adultos ganham publicação em livros ilustrados e são lidos por crianças

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São Paulo

Este texto vai começar de um jeito diferente, com um desafio: faça uma pausa, dê um um pulinho rápido no Google e pesquise fotos do José Saramago. Eu espero.​

Notou como ele sempre aparece meio sério nas imagens, até um pouco carrancudo, talvez de mal com a vida? É verdade que a careca e os óculos gigantes não ajudam muito. Mas, mesmo quando ele tenta sorrir um pouco, surge com um risinho amarelo, meio tímido, como se fosse obrigado a dizer "xis" para o fotógrafo.

José Saramago participa do Brasil Fórum Social Mundial, em 2005. Pela foto não parece, mas ele era um grande brincalhão - Jorge Araújo/Folhapress

Pois é aí que mora a surpresa –ele não é nada disso. Pode até não parecer, mas Saramago é um brincalhão. Um dos maiores. Ou, melhor dizendo, ele era alguém divertido, porque morreu faz um tempinho, em 2010. Aliás, neste ano são comemorados os cem anos do seu nascimento, que aconteceu em 1922, numa cidadezinha bem pequena de Portugal, chamada Azinhaga.

Mas, calma, quem foi José Saramago? Para essa pergunta não precisa ir ao Google, eu conto agora. Ele é considerado um dos maiores escritores da língua portuguesa, o único representante do nosso idioma a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, que é como a Copa do Mundo para quem escreve –com a diferença de que só é possível vencer uma vez.

E ele ganhou esse troféu justamente porque brincava. Não de fazer piadas ou gracinhas, nada disso. Saramago jogava, se divertia, fazia charadas e entortava o que existe de mais importante para um escritor: as palavras.

Muita gente gostava de tirar um sarro e dizer que ele não sabia escrever em português. É verdade que, se você fizer uma redação na escola usando frases iguaizinhas às dos livros de Saramago, muito provavelmente vai receber uma nota baixa. Bem baixa. Isso porque, em muitos de seus textos, ele não usa a pontuação como aprendemos nas aulas. Não existe travessão, dois pontos, nada de nada. Tudo é separado por vírgulas. De vez em quando aparecem uns pontos.

Mas vou contar um segredo: se você tirar uma nota baixa ao escrever sua redação desse jeito, o problema está no seu professor. E não no Saramago.

Porque existe um pulo do gato nessa história, que era justamente a brincadeira favorita do escritor. Não é que ele não soubesse português. Ele conhecia tão bem a língua que passou a jogar com ela, testar seus limites, inverter suas ordens, aproximar o texto escrito do jeito que a gente fala. E vamos combinar que não existe sinais de pontuação quando a gente conversa, né?

Só que a brincadeira não parava por aí. Saramago também jogava com as histórias. Suas obras são como charadas. Elas têm vários significados escondidos e nada é exatamente como parece.

Quer um exemplo? Em um de seus livros mais famosos, ele conta a história de pessoas que ficaram cegas de repente. Em outro, fala da viagem de um elefante da Ásia até a Europa. Mas nenhum deles é apenas sobre cegueiras ou mamíferos pançudos –as histórias abordam coisas mais profundas, sentimentos humanos, problemas políticos. Seus textos são como uma cebola. Existe o que está escrito na casca, mas há várias outras camadas internas. Cabe ao leitor decifrar esse jogo de adivinhas, como se fosse um detetive.

Acho que é por isso que ele escreveu pouco para crianças. Chegou a dizer até que não sabia fazer livros para os mais novos. Seu único título declaradamente infantil se chama "A Maior Flor do Mundo", publicado aqui no Brasil em 2001. Nele, um menino faz nascer a maior flor de todas, capaz de dar sombra como uma árvore. Mas lembra? Essa é só a casca da cebola, porque, lá no fundo, estão escondidas outras coisas. Quer um spoiler? Ele fala do impossível e da própria literatura.

Mas a brincadeira fica ainda mais maluca agora. Algumas das coisas que ele escreveu para adultos estão começando a ser publicadas em livros ilustrados e sendo lidas por crianças.

Começou com "O Lagarto", de 2016, sobre um réptil gigante que atravanca uma cidade. Mas já entendeu, né? Não é uma aventura biológica. O que pode representar essa criatura que surge do nada? Por que ela paralisa as pessoas e causa medo?

E agora dois novos livros fazem a mesma coisa. Um é "O Silêncio da Água", sobre um menino que sai para pescar, mas o peixe consegue romper a linha e fugir com o anzol. O outro é "Uma Luz Inesperada", em que um garoto viaja com o tio para vender porcos numa feira distante e dormem no caminho, sob as estrelas.

Saramago escondeu muitas coisas nessas duas histórias, provavelmente pensando nos adultos que iriam decifrar as suas charadas. Mas agora são as crianças que leem esses contos. E o que elas vão achar nas camadas mais profundas dessa cebola literária?

Acho que nem o escritor saberia responder essa pergunta. E aí que mora a graça –e o desafio– da literatura.

'O Silêncio da Água' e 'Uma Luz Inesperada'

  • Preço R$ 49,90 (32 págs.) cada um
  • Autoria José Saramago
  • Editora Companhia das Letrinhas
  • Ilustradores Armando Fonseca ('Uma Luz Inesperada') e Yolanda Mosquera ('O Silêncio da Água')
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