Descrição de chapéu Todo mundo lê junto

Cabelos azuis do clarinetista Kaique Iritsu ajudam a 'mudar convenções'

Músico da Orquestra de Câmara da USP fala de preconceito, autoestima e, claro, de tintas

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São Paulo

Essa história poderia começar por vários momentos importantes da vida de Kaique, o músico da foto abaixo, mas acho que a que vai fazer mais sucesso é a que fala sobre quando ele resolveu pintar os cabelos de azul.

Até os 14 anos (hoje ele tem 25), Kaique precisava deixar os cabelos do jeito que os pais queriam -a partir daquela idade, ele estaria livre para escolher o que desejasse. E Kaique desejava, desde muito pequeno, ter cabelos longos. E azuis.

Kaique Iritsu, 25, posa na Praça do Relógio, da USP, fingindo que seu instrumento é um telescópio - Eduardo Knapp/Folhapress

Primeiro ele pintou os cabelos de loiro, com luzes. Em uma madrugada, às 4h da manhã e escondido de todo mundo, ele os tingiu de azul. "Levei advertência na escola e bronca dos meus pais. Foi um fuzuê", lembra Kaique.

"Debati com a coordenação da escola para saber como meu cabelo azul influenciaria nos meus estudos. Eles chamaram meus pais. Meu pai era professor lá na escola e ficou do lado da coordenação. Ele não gosta do cabelo até hoje. Em resumo, me fizeram pintar o cabelo de preto."

Poucos meses depois da confusão, o cabelo dele estava azul de novo. "Daí ninguém falou mais nada", conta Kaique. E só isso tudo já daria uma história e tanto, mas ela fica ainda mais interessante quando a gente descobre que, hoje em dia, Kaique trabalha como músico profissional de uma orquestra de música clássica.

E, se você já assistiu orquestras assim se apresentando, deve ter reparado que, no geral, as musicistas e os músicos sobem ao palco sempre com estilos parecidos, muitas vezes de cabelos presos ou curtos.

No caso de Kaique, quando ele aparece com sua roupa preta elegante, segurando seu instrumento, pronto para a ação, não é raro que alguém na plateia repare em seus cabelos e se surpreenda.

"O mundo da música clássica é muito formal, então, aparecer no ensaio ou no concerto com um acessório diferente pode ser muito chocante. Já toquei em muitos grupos, e a maior parte deles é bem conservador, com pessoas conservadoras. A pessoa pensa que tem que estar ali de terno, cabelo curto, mulher de vestido, cabelo preso, e, desde que comecei a tocar, eu tento ser eu mesmo e não ter esse filtro", diz.

Kaique começou a aprender música aos 8 anos. Sua escola tinha uma banda, e sua mãe perguntou se ele se interessaria em participar das aulas. "A princípio fiquei resistente, mas acabei concordando e fui. Na banda toquei um monte de instrumentos, trompete, trompa, percussão."

Ele acabou escolhendo o clarinete como seu instrumento do coração. "Eu achava bonito, com um som aveludado. A parte mais legal do clarinete é que eu posso tocar o que eu quiser, fazer o som que eu quiser, seja ele bonito ou feio", avalia.

"E a parte que eu não acho muito legal é que tentam te restringir pra tocar de um jeito só. Dizem que tem que ser limpo, claro, o ‘som dos anjos’. E o instrumento não é só isso, ele pode ser tudo: áspero, agressivo etc."

Para entrar na sua primeira orquestra, Kaique passou por um teste. "Quando fui fazer a prova eu tava com cabelo preso porque temi não passar. Senti muitos olhares de reprovação, mas acabei passando", conta.

O músico lembra que, nesse trabalho, era comum se sentir isolado dos colegas. "Lá na orquestra eu tinha pouquíssimos amigos, talvez por causa do cabelo. Mas nunca deixei de me vestir como eu queria ou de ter o cabelo que eu queria por conta dessas coisas."

Atualmente ele toca na Orquestra de Câmara da ECA/USP, a Ocam. Lá, Kaique diz que se sente confortável para ser quem é, e que há tempos não sofre preconceito no seu ambiente de trabalho. Nas ruas, no entanto, a coisa pode ser diferente.

"Às vezes estou caminhando no metrô e alguém grita algo homofóbico. Não é legal, não gosto. Também quando estou com meu namorado, um rapaz de 2 metros de altura, vem alguém e fala alguma coisa chata. Mas a gente não tem tempo para discutir com gente assim", avisa.

Os cabelos do Bruno, namorado do Kaique, são cor de rosa. Adivinha quem faz a coloração por ele? Kaique, é claro! Além da habilidade com os outros, ele também cuida muito bem dos próprios fios.

"Lavo menos vezes porque quanto mais lavo, mais desbota. E tonalizo a cada mês e meio. Uso uma tinta bem pigmentada, então a cor dura bastante. E por que azul? Ah, porque é minha cor favorita! Sempre procurei roupas azuis, objetos azuis...", explica Kaique.

"As pessoas tentam muito ser similares, mas a gente só consegue entender a diferença se viver a diferença. É muito importante a gente ser quem a gente é independentemente da situação, porque só assim a gente consegue mudar as convenções", acredita.

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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