Prédios tortos de Santos foram construídos sobre argila e causam curiosidade e preocupação

Rotina de moradores tem portas que abrem sozinhas, bolo que cresce desigual e visitantes com tontura

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Prédios tortos da orla de Santos Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Portas de armários que abrem sozinhas, todo mundo sabe, fazem isso porque são parte de uma casa mal-assombrada. Mesma coisa as bolinhas que, quando colocadas no chão, saem rolando para o outro lado do quarto sem que ninguém as tenha empurrado. Acontece que, no apartamento de Ana Lúcia Caetano, não tinha fantasma nenhum, e o clima não era de terror, mas de felicidade pura.

Era 1984 quando a pedagoga se mudou para a esquina da praia em Santos com o marido. Pouco tempo depois nasceu a filha deles, e tudo na casa da família parecia bem normal, tirando o fato de que ela, a casa, era inclinada para o lado. Ana Lúcia foi moradora de um dos cerca de 500 prédios tortos da cidade litorânea paulista.

Fachada de dois prédios inclinados em Santos, no litoral paulista - Karime Xavier/Folhapress

A história da porta do guarda-roupas e da bolinha no chão acontecia diariamente, junto com uma "apresentação" que eles guardavam para quando recebiam visitas. "A gente sempre acabava a noite com os amigos mostrando o ovo na frigideira. Ele nunca ficava no meio! Ríamos muito", lembra Ana Lúcia.

Os prédios tortos da orla de Santos são uma atração turística da cidade. Quem passa de navio tira foto, quem anda pelo calçadão, também. Segundo o engenheiro Paulo de Mattos Pimenta, professor titular do departamento de engenharia de estruturas da Escola Politécnica da USP (Poli), são cerca de cem as construções mais inclinadas.

"Prédios não são feitos para inclinar", diz. "Eles vão inclinando, inclinando, e um dia caem. Pode levar séculos. É um problema de longa duração e de solução difícil."

O professor explica que o solo de Santos é composto de areia, como a da praia, e que embaixo dela há uma argila bem mole, depositada ali pelo mar no último milhão de anos. "Imagine uma esponja, como as de lavar louça, cheia de água. Se você apertá-la, a água vai saindo. Em Santos, a esponja é o solo, que está sendo apertado pelos prédios", ensina.

É como a Torre de Pisa na Itália, diz Paulo. Lá, uma obra foi feita há algumas décadas para desentortar a torre e dar a ela uma vida mais longa. Em Santos, o certo seria corrigir todos os prédios inclinados, como foi feito em 2001 com o edifício Nuncio Malzoni, de 17 andares.

"Fizemos uma fundação nova, colocamos o prédio em cima de 18 macacos hidráulicos tipo de carro, só que um pouquinho maiores, e colocamos o prédio de pé novamente, no prumo. Hoje os apartamentos valem o dobro do que valiam", lembra Paulo.

Ele diz que uma reforma desse tamanho não é nada trivial, e por isso custa caro. Então, os donos de apartamentos nos prédios tortos precisam se organizar e juntar dinheiro para que a mesma coisa seja feita por lá. "Alguns prédios estão bastante ativos nisso, fazendo poupança", tranquiliza o professor.

Ele é consultor de um grupo de profissionais ligados à prefeitura da cidade de Santos que monitora a situação dos prédios, medindo constantemente a inclinação deles e sugerindo providências aos administradores e moradores deles.

De volta a 1984, ano em que Ana Lúcia se mudava para o apartamento do prédio torto, em outro ponto da orla, no térreo do também entortado edifício Excelsior, era inaugurado o Bar Torto, que foi de Michel Pereira por anos até seu fechamento, em setembro de 2017.

"Muita gente se negava a entrar no bar por fobia ou receio de que o prédio fosse afundar", lembra. Na época em que a fachada do prédio passou por uma reforma, sem relação com a estrutura torta, pessoas que passavam em frente achavam que o prédio estava caindo de vez, conta Michel. "Foram anos difíceis."

Tirando esses momentos de perrengue, o Bar Torto foi um sucesso e virou ponto de encontro de moradores e turistas. Para facilitar a vida, Michel então se mudou para um apartamento no mesmo prédio do bar.

"A inclinação nunca me incomodou, mas muita gente que subia para me visitar, fazer uma entrega ou prestar algum serviço, sentia tontura e às vezes até passava mal", relembra.

"Para a porta do meu box de vidro do banheiro correr bem tivemos que adaptar uma base com um lado maior que o outro. Mudamos o ralo de lugar para que a água pudesse escoar. Para a TV ou um quadro parecerem retos, tinha que improvisar. As mesas, camas e principalmente o fogão precisavam ser calçados."

Ana Lúcia também colocava calços nos móveis, na máquina de lavar roupas e até no berço da filha. Uma parte engraçada da rotina era quando ela decidia fazer um bolo —colocava a massa na assadeira, a assadeira dentro do forno, e um lado do bolo sempre saía mais alto que o outro.

Hoje, ela mora em outro bairro de Santos mas diz que, sempre que passa em frente, sente saudades daquela época "inesquecível". Michel também se lembra com carinho de todos os momentos vividos tanto no Bar Torto quanto na sua casa no Excelsior, que atualmente está 1,80 fora de seu prumo, de acordo com o engenheiro Paulo Pimenta.

Hoje em dia, ele explica, os métodos de construção em Santos mudaram, depois que uma lei foi modificada e transformou o jeito com que se fazia a engenharia na década de 1960. Para subir um prédio agora, é preciso fazer sua fundação de outro modo, apoiada quase na rocha abaixo da superfície.

"Esse problema existiu em menor grau em toda a costa paulista. Em São Vicente, Praia Grande, Guarujá. Mas em Santos a inclinação dos prédios é pior, realmente", resume, lembrando que, além da Torre de Pisa, os prédios tortos santistas também são primos de outra construção famosa.

"Na Cidade do México, as coisas foram construídas pelos astecas em cima de um lago. Algumas construções mais antigas, com construção não muito profunda, sofrem desse problema, como é o caso da Catedral do México, que hoje em dia já está bastante inclinada."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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