São Paulo, sábado, 1 de maio de 2010

Minissérie

Duelo de figurinhas

POR JOSÉ ROBERTO TORERO

São Paulo, 17 de junho de 1962
Como vão as coisas aí em Salvador, tia Lurdes? Tudo certo? Eu aqui estou muito contente, ainda mais depois dessa Copa.
Mas quase não deu para ouvir o último jogo, a senhora acredita? Para variar, a culpa foi da Juju. Não é fácil ter irmã mais velha!
Desde o começo da Copa teve esse problema: a senhora sabe que a gente só tem um rádio, né? Pois então, na hora dos jogos, passava também a radionovela preferida dela. Eu querendo ouvir os gols de Pelé, a Juju querendo ouvir "O Direito de Nascer".
Por mim, eu ia escutar os jogos pelos alto-falantes da praça da Sé. Lá fica cheio de gente. Mas meu pai não me deixava ir. Dizia que era perigoso.
Então eu e a Juju resolvemos fazer um duelo antes de cada jogo para decidir quem ia ouvir o rádio. Mas não um duelo que nem filme de bangue-bangue. Era um duelo de bafo. Sabe o que é bafo? É bater com a palma das mãos nas figurinhas para elas virarem. E eu ganhei todas. Quer dizer, quase todas. Depois eu conto essa história.
Antes eu vou contar que foi ótimo ouvir a vitória do Brasil contra o México: 2 a 0. Já o zero a zero contra a Tchecoslováquia foi ruim, porque nesse jogo o Pelé saiu machucado e não pôde mais jogar na Copa. Mas o reserva dele, o Amarildo, era muito bom e fez dois gols, quando ganhamos da Espanha por 2 a 1.
E a Juju ali, fazendo bico.
Passamos bem pela Inglaterra com 3 a 1, e vencemos os donos da casa, os chilenos, por 4 a 2. Foram dois shows do Garrincha.
E a Juju ali, fazendo bico.
Na final íamos pegar de novo a Tchecoslováquia. Mas, um dia antes da decisão, eu joguei bola com meus amigos da rua. Fui para o gol e fiquei imitando as defesas do Gilmar. Só que uma hora eu pulei e bati no travessão. Pou! Quebrei um dedo de cada mão. Tive até que engessar. Daí, na hora de bater bafo, eu perdi para a Juju. Não é fácil virar figurinhas com a mão engessada...
Eu queria muito ouvir aquele jogo. Muito mesmo. Tanto que não aguentei e fui sozinho até a praça da Sé. Sabia que não podia, mas fui.
E, olha, foi demais! Começamos perdendo, mas viramos para 3 a 1, gols de Amarildo, Zito e Vavá.
Quando o jogo acabou, todo mundo comemorou jogando os chapéus para cima.
Eu estava todo feliz, mas, de repente, quem eu encontro? Meu pai. Ele me olhou feio e eu pensei que ia levar uma surra. Mas ele riu e disse: "Sua sorte é que o Brasil ganhou".
E nós viemos de mãos dadas para casa.

Um aperto de mão engessada do seu sobrinho
Leleco.

SOBRE OS AUTORES
JOSÉ ROBERTO TORERO é escritor, roteirista e santista. É tio do Lelê, um garoto antenado que escreve no blog http://blogdolele.blog.uol.com.br. Para a Folhinha, ele criou esta minissérie, com cartas ficcionais de crianças que vibraram com Copas do Mundo de outras épocas. Nesta carta, Leleco conta como acompanhou pelo rádio a Copa de 1962, realizada no Chile.

FLÁVIA OCARANZA é artista plástica, formada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.


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