São Paulo, sábado, 15 de maio de 2010

Minissérie

O mistério das chuteiras

POR JOSÉ ROBERTO TORERO

Los Gatos, 17 de julho de 1994

Professora, não sei se a senhora se lembra de mim. Eu sou a Teca, que foi sua aluna na escola aí de Governador Valadares. A de óculos e aparelhos nos dentes, lembra?

Pois é, então, como eu lembro que a senhora gostava de futebol, resolvi contar umas coisas que eu vi aqui.

O aqui que eu digo é nos Estados Unidos, numa cidade chamada Los Gatos. Eu e o meu pai mudamos para cá. Ele conseguiu emprego legal: dirige ônibus para turistas.

Bom, aí, um dia, falaram que ia ter uma Copa do Mundo aqui.

Eu nem acreditei: "Uai, gente, deve ser mentira. Os americanos nem gostam de futebol". Mas era verdade.

Depois vieram duas boas notícias. Boas, não. Ótimas! A primeira era que a seleção ia se hospedar na minha cidade. A segunda, que o meu pai ia dirigir o ônibus do Brasil.

Eu pedi para o meu pai me levar nos jogos. Ele falou que não dava, que não podia, que onde já se viu. Aí eu armei minha cara de cachorro triste e disse: "Tudo bem, eu fico aqui sozinha...".

Esse truque sempre dá certo, professora. Ele me arranjou um cantinho no ônibus, junto com as malas dos jogadores, aquelas onde eles levam as chuteiras. Era um chulé danado, mas tudo bem, porque ia escutando a batucada do pessoal. Até conheci o Romário, que era só um tiquinho mais alto do que eu.

Na primeira fase, o Brasil não teve problemas: ganhou da Rússia, de Camarões e empatou com a Suécia.

Depois ganhamos dos Estados Unidos com um golzinho do Bebeto e derrotamos a Holanda: 3 a 2. Aí veio a chata da Suécia de novo. Parece mentira, mas ganhamos com um gol de cabeça do Romário. Ele é baixinho, mas pula bem alto.

A final ia ser contra a Itália. Eu já estava toda feliz, pensando em viajar com os brasileiros, quando meu pai veio com a bomba: "Filha, fui escalado para dirigir o ônibus da Itália".

Aquilo foi terrível! Nem falei com ninguém no ônibus. Fui lá para o fundo e descontei minha raiva nas chuteiras. Teve uma, coitada, que sofreu mais que todas: eu apertei, torci e até mudei as travas de lugar. Fiz o diabo! Bom, como todo mundo sabe, o jogo terminou em 0 a 0, e a decisão foi para os pênaltis.

Então eu olhei para o campo e vi que o Baggio, da Itália, estava trocando de chuteira. E colocando justo aquela que eu tinha maltratado. Depois ele correu, bateu e... errou!

Foi bom demais da conta ajudar o Brasil a ser campeão, professora. Mas não conte isso para o Baggio, tá? Ele ia ficar o maior bravo comigo.

Um beijo da Teca, que agora é tetra!

JOSÉ ROBERTO TORERO é escritor, roteirista e santista. É tio do Lelê, um garoto antenado que escreve no blog http://blogdolele.blog.uol.com.br. Para a Folhinha, ele criou esta minissérie, com cartas ficcionais de crianças que vibraram com Copas do Mundo de outras épocas. Nesta carta, Teca conta como acompanhou a Copa de 1994, realizada nos Estados Unidos.

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