Buracos negros são limites, mas também pistas para avanços, diz astrofísica

Janna Levin, uma das estrelas do Fronteiras 2019, explica sua visão entusiástica sobre a fase da pesquisa científica

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São Paulo

A física moderna traz limites severos ao que é possível conhecer. Como é o interior dos buracos negros? O que há além do Universo observável? São barreiras que deixam alguns pesquisadores perturbados. Mas não a astrofísica Janna Levin, professora do Barnard College da Universidade Columbia, em Nova York. Na visão dela, os limites são a chave para novas descobertas. 

“Os buracos negros são exatamente assim”, diz, ao referir-se a um dos seus temas de estudo prediletos, esses objetos misteriosos cuja gravidade é tão intensa que nem mesmo a luz pode escapar deles.

Além de pesquisadora, Levin desenvolve atividades inovadoras de divulgação científica. Autora de livros sobre cosmologia e a histórica detecção das ondas gravitacionais geradas pela colisão de buracos negros ocorrida em 2015, ela é diretora da Pioneer Works, centro cultural voltado a artes e ciências no bairro nova-iorquino do Brooklyn.

Levin se revela uma otimista. Reconhece os dilemas centrais da física moderna, como a incompatibilidade entre a teoria da relatividade geral de Einstein (melhor descrição da gravidade) e a mecânica quântica (responde pelas demais forças da natureza), e os mistérios da matéria escura (compõe a maior parte da massa do Universo, mas é detectável até hoje apenas indiretamente, pela gravidade que exerce) e da energia escura (força misteriosa que está acelerando a expansão do Universo, na contramão da realidade). 

Apesar desses dilemas seguirem como enigmas não resolvidos, para a cientista, são pistas que têm permitido avanços notáveis.

“Estamos fazendo avanços interessantes”, diz, ao se referir a ideias radicais, como a de que o Universo tridimensional é um holograma ou de que o cosmos é finito, curvando-se sobre si mesmo numa escala maior que a que podemos ver.

Na conversa que travou com a Folha, ela aborda desde a ideia de transformar buraco negro em fonte de energia até questões mundanas que a mantêm acordada madrugada adentro.

Imagem divulgada em 10 de abril mostra buraco negro ao centro da galáxia M87
Imagem divulgada em 10 de abril mostra buraco negro ao centro da galáxia M87 - AFP/European Southern Observatory

Vivemos uma época empolgante nesse campo de buracos negros, com os primeiros resultados do Ligo, observatório detector de ondas gravitacionais. Finalmente começamos a “ver” os buracos, não? Sim, eu diria que os estamos “ouvindo”. É um momento incrível e uma das experiências mais gratificantes ter sido capaz de estar viva durante o anúncio, depois de ter estado na área por tempo suficiente para entender quão difícil é essa detecção. Não sou experimentalista, sou teórica, normalmente não sigo os experimentos tão de perto quanto fiz com esse, e só de estar ciente dos desafios e das maneiras em que isso poderia dar errado e então ter essa gravação, é maravilhoso.

O que podemos esperar da ciência a partir de agora? Um dos aspectos importantes será isso que chamamos de astronomia multimensageira, esse retrato múltiplo do “som” das ondas gravitacionais e de certos eventos luminosos. A colisão de dois buracos negros pode ser sempre escura, mas detectamos duas estrelas de nêutrons colidindo, e foi incrivelmente luminoso —fogos de artifício. O que alguns de nós mais esperam é que detectemos algo em que nunca pensamos. Mas pode não acontecer por um longo tempo.

E você tem interesse em um evento em particular, a colisão de um buraco negro com uma estrela de nêutrons, por conta da sua ideia da bateria de buraco negro. Sim. A ideia é que o buraco negro se funde com uma estrela morta —uma estrela de nêutrons, que tem um campo magnético 1 trilhão de vezes mais intenso que o da Terra. E ela espirala em órbita e cria um campo elétrico nele, e o sistema todo se torna um circuito elétrico e acende. Amo demais essa ideia, e, no futuro, se tivermos todos esses instrumentos apontados a cada sinal que o Ligo detectar, teremos a primeira chance de ver algo assim.

O que eu acho mais legal nessa ideia é que talvez buracos negros possam ter um uso prático para civilizações avançadas, com toda essa eletricidade disponível. É, eu fiz o cálculo uma vez para uma palestra que dei, do que aconteceria se você pegasse a Lua e a transformasse num buraco negro, e então usasse o ímã mais poderoso disponível na Terra. Você poderia alimentar a cidade de Nova York. É um circuito muito poderoso, mas apenas nos últimos segundos das órbitas, quando tudo se torna mais dramático, então é na verdade difícil obter boa energia, mas, sim, eu pensei na mesma coisa. Seria uma coisa “sci-fi” legal fazer buracos negros em laboratório e descobrir como miná-los para obter energia.

Alguns detalhes técnicos apenas para resolver, certo? É (risos), mas adoro a ideia de resolver a crise de energia com buracos negros.

O fato de existirem buracos negros mostra que há limites sobre o que podemos aprender. Temos a descrição matemática do que é um buraco negro, mas a teoria falha no interior dele. O que acha deles como metáforas para os limites da compreensão da natureza? Os limites mais intensos ao conhecimento —por exemplo, o limite da velocidade da luz, segundo o qual nunca podemos descobrir algo mais depressa do que um raio de luz pode nos trazer—, embora pareçam severos, sua consequência é o exato oposto. Quando Einstein aceita o limite da velocidade da luz, ele descobre a relatividade. Temos essa sequência extraordinária na história da ciência em que limites severos levaram a incríveis episódios de criatividade e enormes revoluções científicas. Acho que os buracos negros são assim.

Você começou estudando filosofia e então migrou para a ciência, por achar que parecia ser chão mais firme. Mas a ciência, e a física em particular, parece estar se voltando para a filosofia novamente. Brinco com alguns dos meus amigos físicos que estão se tornando filósofos. Eu os provoco por seguir uma direção que percebo errada, mas é um fato que há aspectos da mecânica quântica que não entendemos, e ainda assim é o paradigma mais bem-sucedido e testado na história da física.

Então, não é que não haja um papel para a filosofia, é só que discordo da ênfase da personalidade, em que ficamos trabalhando para analisar o que algum filósofo quis dizer. Isso não tem chance de ser uma verdade transcendente. Quando você sente, vê, cheira e prova uma verdade transcendente, ela é verdadeira para todos, não pode estar trancada na mente de uma pessoa. Quando Einstein nos ensinou a relatividade, ela passou a pertencer a todos nós.

Mas há coisas, especialmente com a mecânica quântica, que não são abordáveis por experimentos. Temos de interpretá-las. O fato de que é incompreensível para nós pode ser uma indicação de que não é uma teoria completa. Por outro lado, pode ser que isso seja simplesmente assim, e que nossas mentes tenham encontrado algo que é um desafio para nós. 

Muitos físicos agem como “não estou nem aí que não entendo esse aspecto da teoria, porque minha máquina funciona e tenho esses dígitos de precisão no meu medidor”, e eles estão felizes com isso.

E você, está feliz com isso? Não, quero entender (risos). Mas estar infeliz não é o mesmo que ter certeza de que há solução. Para coisas como buracos negros evaporando e ter de declarar se a informação que caiu no buraco negro acabou saindo dele ou não, isso precisa ser solucionável. É algo que vamos descobrir. 

Fizemos avanços, e eles produziram ideias muito brilhantes. De novo, aquela conversa de como um limite fundamental leva a essas revoluções criativas. O limite virou uma pista, uma pista que nos provoca desde que Hawking propôs pela primeira vez que buracos negros evaporam, nos anos 1970. É uma coisa que deve ser solúvel, é só uma questão de quando.

E você não acha que há problemas que incomodam há um tempo tão longo que talvez não encontremos resposta? Sou mais otimista do que algumas pessoas com quem você possa ter conversado. Tivemos ideias maravilhosas aparecendo, como a holografia do Lenny [Leonard] Susskind, a ideia de que um buraco negro não tolera mais informação do que a que pode ser abrigada em sua superfície. 

A razão pela qual é chamado de holografia é porque um holograma é quando você codifica numa superfície bidimensional toda a informação para criar uma imagem que parece tridimensional. Com isso, você tem uma sugestão de que o Universo deve ser holográfico. Sugere que talvez o Universo inteiro não seja limitado pela tridimensionalidade em que pensamos viver, mas por uma bidimensionalidade, e tudo é uma ilusão tridimensional em que toda a informação que pode ser abrigada corresponde a uma superfície. Eu sei, é um conceito difícil, mas é estonteante.

Você não se sente pressionada pelo fato de não termos uma teoria de tudo? Eu me sinto, mas acho que estamos fazendo avanços. Aqui vai uma ideia radical: se eu olhar para as leis da física, reúno todas as forças da matéria pela mecânica quântica, e o que fica de fora para termos uma teoria de tudo é a gravidade. Então, a teoria que queremos é a que coloca a gravidade junto com as forças da matéria, e a resistência da gravidade em ser quantizada pode ser apenas uma pista de que ela talvez não seja fundamental. 

Talvez seja só um fato da natureza que, quando os fenômenos quânticos são suficientemente complexos, eles criam na escala macroscópica essa ilusão de algo que chamamos de gravidade. Isso pode estar errado, mas é muito louco. Deixe-me dar um exemplo. Quando você fala de temperatura, como a na sua sala agora, parece convincente que exista algo chamado temperatura. Mas não há. Ela é na verdade o comportamento coletivo de muitas coisas criando a ilusão de algo que chamamos de temperatura. A gravidade poderia ser a mesma coisa.

Como vê a relação entre arte e ciência e como esse diálogo ocorre no seu trabalho? Acredito que a ciência é parte da cultura e que, quando a tratamos desse modo, todos nos beneficiamos. Sou diretora de ciências num novo espaço cultural com uma pegada artística. Não é um museu, não é uma instituição: é uma experiência.

No nosso último evento, os filósofos Daniel Dennett e David Chalmers falaram sobre inteligência artificial e consciência, e tínhamos filas, o espaço ficou cheio bem além da lotação. Há uma exibição de arte que, por coincidência, falava sobre tecnologia e o futuro da humanidade. Você chega uma hora mais cedo, caminha pela exposição, pega comida e bebida, há telescópios no jardim, trazemos astrônomos para olharem para o céu, e aí há uma conversa de uma hora e meia que explode sua cabeça e, depois, as pessoas não vão embora. Temos de empurrar as pessoas para fora. O que estamos fazendo é apresentar a ciência como parte da cultura, e isso gera colaborações maravilhosas. As reações, preciso ser honesta, têm sido maiores do que imaginávamos. Essa tem sido uma das experiências mais criativas da minha vida.

Por falar em inteligência artificial, acha que estamos perto de construir máquinas que pensam e sentem? Acho que não vamos escrever um programa que leve a uma inteligência artificial. No ritmo em que estamos agora, isso parece estar muito distante. E ninguém sabe se hardware e software digitais têm longevidade.

Pensando nisso, você acha que estamos registrando mal a história atualmente? Os arqueólogos e historiadores do futuro terão dificuldade em encontrar nossos documentos e coisas porque são quase totalmente digitais a essa altura? Essa é uma questão muito boa e sutil. Acho que sim, embora eu adore, porque é tão conveniente. Mas estou ciente de que 99,999999% das informações serão perdidas para sempre. Alguém poderá achar meus livros na minha prateleira. Mas é improvável que achem minhas cartas, certo? Ou talvez isso signifique que haverá outro tipo de pesquisa acadêmica que se concentre em arquivos digitais, por exemplo, tentando fazer curadoria do que deve ser salvo. Mas, fora isso, é garantido que vamos perder nossas fotos e cartas.

Um dos seus trabalhos mais interessantes é a noção de que o Universo pode não ser infinito, pode se fechar sobre si mesmo. Por que você acha essa uma boa ideia? Sou sempre agnóstica com relação a ideias. Se elas são boas para mim, ou não, não é um bom critério para saber se são verdadeiras. Mas há essa variedade de possibilidades com o que Einstein pensou sobre a relatividade geral e o espaço-tempo. Ele começou a pensar na questão de que há três dimensões espaciais. Mas, por que três? E se há outra possibilidade? Talvez o Universo tenha muitas dimensões.

A não ser que você consiga explicar por que são apenas três dimensões, pode muito bem ser que não sejam três e que apenas três tenham se tornado grandes. Imagine começar com um Universo com uma pegada democrática em que todas as dimensões são finitas e pequenas, e o que você está tentando explicar é por que, digamos, seis delas ficaram tão pequenas que não posso colocar meu cotovelo naquela direção, enquanto três dimensões se tornaram absurdamente vastas para abrigar galáxias e aglomerados de galáxias. Isso de certo modo sugere que, se é possível aceitar isso, é provável que seja assim. A natureza parece descobrir um jeito de fazer tudo que é possível.

Mas, por outro lado, todas as evidências sugerem que o Universo tem uma geometria plana. Como combinar essas ideias com o que vemos no Universo observável? Tenho um artigo chamado “O Universo é infinito ou realmente só muito grande?”. Pode muito bem ser que o Universo seja localmente plano, mas não em toda parte, e a maior parte das teorias de origem do Universo sugere que era bagunçado no começo. O que aconteceu foi que ele foi aplainado pelo esticamento rápido. Pode ser que só nossa região observável seja localmente plana.

Ao pensar em coisas além do Universo observável, você não está voltando à filosofia? Estaríamos voltando à filosofia se não tivéssemos nada para calcular. Se você está fazendo a matemática, não está fazendo filosofia. Veja, não estou dizendo que minhas questões não são filosoficamente motivadas. São. É só que eu achei respostas melhores para questões filosoficamente motivadas na matemática, e se a matemática pode também ser testada, tanto melhor. Mas aceito se só puder ser testado matematicamente. A maioria das nossas teorias morre no papel, antes de chegarem a qualquer lugar próximo de um experimento. 

Certo, e quanto a questões que poderemos responder em alguns anos ou décadas, quais suas maiores expectativas? Bem, obviamente, acho que matéria escura e energia escura são questões realisticamente solucionáveis. Eu ficaria muito empolgada com a teoria quântica da gravidade, mas pode ser algo que está 300 anos no futuro, e é difícil de avaliar quando vai aparecer.

Há questões que a deixam acordada à noite, que você gostaria de resolver? Sim. Algumas vezes são coisas mundanas como: “Ligamos a lava-louça?”. Mas algumas vezes também fico acordada à noite e me pergunto se a energia escura não é uma observação de que há dimensões espaciais extra, e de que a energia escura é a energia quântica que está presa nessas dimensões espaciais extra. Isso se encaixa muito bem como uma ideia, embora haja furos, coisas que ainda não sabemos como entender teoricamente. Mas é algo sobre o qual eu reflito.

E, definitivamente, holografia e buracos negros. O Universo é mesmo holográfico e, se é, por quê? Essas coisas me perturbam e me agitam, e também me fazem me sentir ótima, porque me sinto conectada ao resto do mundo que está usando essas mesmas ferramentas, independentemente da língua, do pano de fundo cultural... Todos podemos compartilhar isso. É um modo muito significativo de estar conectada ao Universo.

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