Maior gesto contra o ódio é não se isolar, diz filósofa alemã

Intelectual queer, Carolin Emcke aponta ascensão do ódio como motor do avanço da extrema direita, como visto nos protestos em Berlim

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São Paulo

Numa era em que conflitos políticos, religiosos e culturais são movidos por ressentimentos contra inimigos elaborados a partir de estereótipos e generalizações —ou mesmo de informações falsas— o espaço para o diálogo e o debate parece ter encolhido na mesma proporção em que aumentou o do ódio, demonstrado de maneira pública, sem constrangimentos.

Foi assim nos atos do último final de semana, em Berlim, na Alemanha, quando mais de 20 mil pessoas ligadas a grupos de direita e extrema-direita, incluindo grupos neo-nazistas, protestaram contra as medidas de prevenção ao coronavírus. Os atos foram seguidos de contra-protestos com faixas e banners contra o ódio e o racismo.

É da normalização dessas demonstrações que trata o livro "Contra o ódio" (ed. Ayiné), da jornalista e filósofa alemã Carolin Emcke. Nele, ela explora como a digitalização da vida amplificou as manifestações violentas contra pessoas e grupos, orquestradas de maneira coletiva e ideolótica, produzindo uma representação assimétrica de percepções e sentimentos expressos por uma fração minoritária da sociedade.

"Assistimos à escalada do poder explorador, abusivo e sem controle das mídias sociais. Com apenas algumas companhias controlando todo o mercado de comunicação e o discurso global, precisamos nos perguntar: como podemos garantir a distribuição de conhecimento e informação?", escreveu ela em entrevista à Folha por e-mail.

A filósofa e jornalista alemã Carolin Emcke, autora de "Contra o ódio" (Ed. Ayiné)
A filósofa e jornalista alemã Carolin Emcke, autora de "Contra o ódio" (Ed. Ayiné) - Andreas Labes/Divulgação

Considerada uma das grandes figuras intelectuais de nosso tempo, Carolin já recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, que teve como recipientes prévios grandes nomes do pensamento crítico contemporâneo como Susan Sontag, Ohran Pamuk, Amos Oz e Jurgen Habermas.

Habermas, o grande teórico da Escola de Frankfurt sobre a esfera pública, foi seu orientador mestrado em que desenvolveu tese sobre desobediência civil e o direito de resistir, algo que têm praticado ao longo de sua trajetória profissional e intelectual, cobrindo conflitos em países como o Afeganistão e combatendo discriminações de raça, gênero e orientação sexual com ideias.

"Como uma intelectual pública que se opõe ao racismo, ao antissemitismo e a todas as formas de desigualdades, eu me tornei imediatamente algo de ódio", conta ela. "Ainda, como uma intelectual queer, eu sou odiada. Mas eu ainda acho que eu, pelo menos, sou odiada pelo que penso e escrevo e pela forma como eu amo, o que é diferente de ser excluído pela cor da sua pele ou por não ter o passaporte certo."

Para ela, o ódio é uma das grandes ameaças civilizatórias da atualidade, está por trás da ascensão de regimes populistas autoritários de extrema direita e, para ser combatido, precisa que seus oponentes elaborem narrativas e visões de mundo " atrativas, desejáveis e divertidas", que sejam divulgadas da maneira mais ampla possível para ganhar mentes e corações.

"O gesto mais importante contra o ódio talvez seja não se isolar. Não se deixar confinar na tranquilidade da esfera privada, na proteção fornecida pelo próprio abrigo ou pelo círculo social mais próximo", escreve ela no livro. "Talvez o movimento mais importanteseja sair para fora de si e avançar em direção aos outros para, com eles, reabrir juntos os espaços sociais e públicos."

*

O ódio é mais prevalente hoje do que foi nas últimas décadas ou é apenas proclamado mais abertamente?

Sempre houve ódio, racismo, antissemitismo, misoginia, homofobia e transfobia. Mas há uma diferença na falta de vergonha e no exibicionismo com que são ostentados agora. E, por conta das mídias sociais, o poder incitar o ódio, de mobilizar a violência e a velocidade de sua distribuição foram transformados.

Como o ódio se tornou uma expressão coletiva e ideológica, como você o representa no livro?

Primeiramente, é importante apontar que não existe nada "natural" no ódio coletivo. Não é algo que está "aí", não é "normal". Trata-se de algo criado e reproduzido por aqueles que se aproveitam dele. Existe toda uma indústria do ódio: editores, movimentos políticos e regimes que identificam e constroem um "outro": um grupo que supostamente "não pertence", que é supostamente "perigoso" ou "perverso", porque tratam-se de pessoas diferentes da alegada norma, ou cujo desejo difere da suposta norma ou cujos corpos diferem daquilo considerado como norma --e o ódio é canalizado para esse "outro".

Como a pandemia pode promover ainda mais ódio?

A pandemia criou uma situação de medo e insegurança. É uma crise com muitos níveis e com impactos sociais, econômicos, políticos e psicológicos assombrosos. E é com essa constelação de inseguranças que os falsos profetas e teóricos da conspiração, mas também os políticos populista-autoritários, tentam fomentar ódio e ressentimento como uma distração contra sua própria insegurança e incompetência. Você não pode simplesmente negar um vírus quando pessoas estão morrendo por conta dele em todo o mundo. Ao mesmo tempo, a pandemia representa uma ameaça a populistas narcisistas como Donald Trump, Bolsonaro e Boris Johnson.

Você argumenta que o ódio se constrói sobre certezas que parecem imunes aos questionamentos. Como ódio se relaciona ao negacionismo e ao anticientificismo?

Não se pode odiar sem precisão. Não é possível odiar com dúvidas. Se, em vez de odiar, você olhar cuidadosamente para algum fenômeno ou alguém, descobrirá mentiras, as falsas projeções, o essencialismo contido em manifestações de racismo, antissemitismo, homofobia ou transfobia. E é isso o que assistimos hoje: uma negação do raciocínio científico, como no caso da negação das evidências da Covid-19. Não é uma coincidência que esses movimentos se conectem e incluam ódio e resentimento.

Qual é o papel da mídia em normalizar o ódio?

Toda vez que a mídia deixa de se interessar pela verdade, toda vez que se interessa apenas em criar um show voyeurístico para "entreter", ajuda a normalizar posições que estão nas franjas, trazendo-as para o centro do discurso.

A internet e as redes sociais foram celebradas por democratizar a informação, criando uma esfera pública digital. Em que medida realizaram essa profecia ou a traíram, fomentando o ódio?

Internet e mídias sociais são apenas tecnologias que podem empoderar ou excluir. Eu era muito otimista em 2011 e 2012 com a Primavera Árabe e o papel que as redes sociais tiveram para as vozes críticas e progressistas se unirem, organizarem e comunicarem. Mas, desde então, assistimos à escalada do poder explorador, abusivo e sem controle das mídias sociais. Com apenas algumas companhias controlando todo o mercado de comunicação, com uma oligarquia de empresas de tecnologia dominando o discurso global, precisamos nos perguntar: como podemos garantir a distribuição de conhecimento e informação? Como vai acontecer a formação de uma inclinação democrática? Como protegemos nossas democracias contra ataques internos e externos e contra a manipulação e a subversão do nosso discurso?

Como garantir liberdade de expressão sem promover discursos de ódio ou negacionismos?

Na Alemanha, nós não tomamos a liberdade de expressão como algo absoluto. Há limites, e várias leis que regulam a incitação ao ódio e a reprodução de propaganda nazista ou antissemita. Há leis que proíbem a negação do Holocausto.

Penso que a democracia tem a obrigação de proteger os direitos das minorias, e um equilíbrio entre liberdade de expressão e os ataques incitados, vis e brutais, a certos grupos.

Você escreveu que um dos efeitos do ódio é o de desorientar seus alvos e testemunhas. Como opera esse mecanismo?

Acho que qualquer um que tenha sido marcado como "outro" e discriminado ou excluído, que senha sido atacado, cuspido ou insultado, se sentiu confuso antes de se sentir mal. Somos seres linguísticos e nos desorienta sermos chamados de nomes. É confuso ser atacado por alguém racista ou sexista ou homofóbico. Muitos alcos ficam mudos e sem ar. E abordar esse ódio é reviver o episódio e seus danos, o que pode ser doloroso.

Aqueles que são espectadores de manifestações de ódio não precisam ser trans para se opor à transfobia nem negros ou muçulmanos para se opor ao racismo, nem pobres para se opor à exclusão social. Aqueles que odeiam e são ressentidos são sempre um grupo minoritário, mas seu nível de agressão, sua ambição ideológica e seu poder de mobilizar dão a eles uma representação assimétrica. E é por isso que todos precisam se manifestar e defender uma sociedade aberta e os direitos dos outros.

É possível dialogar com quem pensa muito diferente?

Não acho que podemos sempre convencer os outros. Alguns são muito fanáticos ou dogmáticos para estarem interessados em qualquer discurso razoável. Então há limites quanto ao que o diálogo pode oferecer. Mas eu também acho o foco no convencimento da extrema-direita, dos racistas e de outros radicais está errado. O importante é explicar e defender uma narrativa e uma visão de mundo que sejam mais atrativas, desejáveis e divertidas.

Como a afirmação de novas identidades em termos de raça, gênero e orientação sexual criaram ressentimentos que as tornaram algo de ódio?

Essa é uma lógica estranha que culpa a vítima. Pessoas LGBTI não são responsáveis pela homofobia e transfobia. Feministas não são responsáveis pelo machismo. A luta por direitos iguais não pode ser culpada pelo levante daqueles defendendo velhas hierarquias e desigualdades. Temos de defender direitos humanos universais, temos de tornar nossas cidades mais inclusivas e menos desiguais. Isso vai criar medos e ressentimentos? Sim. Mas não é argumento contrário a essas posturas.

Mas por que cria ressentimento?

Sabemos, historicamente, que cada movimento emancipatório também produziu medo e foi seguido de um "backlash", uma tentativa mais ou menos agressiva de prevenir mudanças sociais. Sempre haverá quem tenha medo de perder algo se outros forem aceitos como iguais. Quem não compreenda que direitos humanos não são um jogo de soma zero. Ninguém perde direitos humanos se eles forem atribuídos a todos, mas alguns podem perder seu status ou privilégio exclusivos. Ou seja, muito frequentemente, diferenças e diversidades e pluralidades são hoje retratadas como se ameaçassem a sociedade democrática. Algumas vozes alegam que suas identidades estariam ameaçadas se confrontadas com um "outro", um LGBTI, um imigrante, um indígena ou qualquer um considerado estranho. O que é interessante nesse processo é que ele faz parecer que a fé, as convicções e até a sexualidade dessas pessoas seriam "infectadas" apenas por enxergarem um outro. Quão inseguras, quão instáveis são essas identidades que se sentem ameaçadas pela mera presença de um outro diferente?

É importante entender: em uma democracia liberal, aberta, não precisamos compartilhar da mesma fé, das mesmas práticas ou tradições. Não precisamos desejar da mesma maneira e não precisamos nem olhar uns para os outros, mas temos de respeitá-los. Essa é a beleza da democracia liberal.

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