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Pandemia coroou pedagogia corporativa, diz pesquisador da USP

Para ex-diretor do Inep, tendência é de que ensino se torne híbrido, com aulas presenciais e a distância, em todas as escolas

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São Paulo

Durante a quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, professores e estudantes foram transformados em “artefatos para a experimentação de modelos pedagógicos que colocam a tecnologia a serviço de processos excludentes, competitivos, estruturados na premissa da eliminação e do sucesso individual”.

Para o pesquisador João Francisco Migliari Branco, da Faculdade de Educação da USP, a disseminação do ensino a distância em larga escala, mas de modo desigual segundo renda e região, é a tradução do triunfo de uma “pedagogia corporativa”, baseada na imitação de paradigmas empresariais, que transformou as casas de educadores e pupilos “em espaço de trabalho e produtividade".

Um em cada quatro brasileiros não possui acesso à rede, de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) divulgada pelo IBGE em abril deste ano, com base em dados do final de 2018. Em números absolutos, isso representa cerca de 46 milhões de pessoas desconectadas. Nas áreas rurais, o apagão digital se estende a mais de 53% da população.

No auge do período de isolamento para diminuir a propagação da Covid-19, em abril, um levantamento da Unesco (braço da ONU para educação, ciência e cultura) mostrou que havia 1,5 bilhão de estudantes sem escola em mais de 190 países. Desse total, 706 milhões (47%) não tinham acesso à internet em casa, e 826 milhões (55%) não possuíam computador próprio.

Os rumos da educação, que passam pelo aperfeiçoamento e pela democratização de ferramentas pedagógicas atreladas à tecnologia, são uma das faces da reinvenção do humano, fio condutor da edição 2020 do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento.

Para o pesquisador Migliari Branco, o saldo de seis meses (no caso brasileiro) de teleaulas, grupos virtuais de trabalho e atividades remotas só é positivo para grandes corporações de tecnologia como Google e Microsoft, que abocanharam fatias graúdas do mercado de educação.

“Não se trata apenas da venda de plataformas virtuais de mediação, mas de mecanismos que oferecem o pacote completo: modelo de aula, currículo trabalhado e avaliação dos resultados. O estudante recebe um mesmo pacote homogêneo, enquanto o professor é somente um aplicador desses programas pré-concebidos em algum lugar do Vale do Silício”, analisa ele.

Já o professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Chico Soares vê o uso da tecnologia sob luz mais positiva. “A pandemia acelerou uma mudança tecnológica. A partir de agora, o ensino será híbrido em maior ou menor grau em todas as escolas. Com ação de governos, isso pode ser uma enorme vantagem. Será possível ter aulas com os melhores professores e materiais”, prevê.

Para ele, as ferramentas digitais devem ser usadas para atacar a desigualdade, explicitada (e turbinada) pela crise sanitária de 2020. “As soluções desenvolvidas para atender a estudantes de escolas privadas podem indicar como todos devem ser atendidos. [...] O país precisa de uma plataforma pública de ensino, aberta, mas com curadoria, que viabilize a ação solidária e mostre diferentes formas de implementar os objetivos de aprendizagem de cada criança.”

Apesar do entusiasmo, o ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) sublinha que a materialização do potencial da tecnologia depende de investimento e determinação política —o que não veio de onde se esperava no enfrentamento aos desafios criados pela pandemia.“O ministro da Educação [Abraham Weintraub e, mais recentemente, Milton Ribeiro] optou por não assumir seu papel de coordenador, de líder na busca de produção de respostas.”

Soares acredita que a ação de gestores da área em tempos de pandemia deveria ter dois eixos: acolhimento e aprendizado. “O acolhimento exige iniciativas de contato com os estudantes usando as tecnologias possíveis. Em alguns lugares, até carro de som foi utilizado. É preciso mostrar que a escola se interessa por todos e por cada um dos estudantes.”

No front do aprendizado, o foco deve estar no essencial —a leitura, no caso do ensino fundamental. O professor lança a ideia de um mutirão em que jovens universitários, por meio de uma plataforma digital, ajudassem no atendimento às crianças.

“Nova” ou “velha”, a escola será cenário de turbulências no pós-pandemia, projeta Soares, da UFMG. “As consequências educacionais deste ano serão graves e duradouras. Uma guerra muda o ecossistema social. A vida é outra. Assim será na educação brasileira”, diz, lembrando que “no maior dos Brasis, onde não há computador nem espaço [em casa para o ensino remoto]”, a quarentena se abateu como “um bombardeio”.

Já para Branco, o futuro está em modelos pedagógicos baseados em experiências comunitárias nos quais o concreto, ou seja, a realidade vivida e percebida, é a base do aprendizado. “Meios tecnológicos são apenas meios, atendem a uma finalidade política definida por um grupo social.”

Enquanto isso, o governo Jair Bolsonaro agiliza a tramitação no Congresso do projeto de lei que regulamenta o ensino em casa no Brasil, conforme prometido pelo então candidato em 2018. A modalidade tem cerca de 8.000 famílias adeptas no país, ou cerca de 15 mil crianças e adolescentes, segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar.

Há um requerimento na Câmara dos Deputados para que a proposta seja analisada com urgência, a fim de aproveitar o bom momento do presidente nas pesquisas de opinião e o fato de ele agora contar com uma base de apoio no Legislativo, graças aos acordos costurados com o chamado “centrão”. A iniciativa é um aceno ao segmento do eleitorado bolsonarista que acusa viés esquerdista no sistema escolar tradicional.

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