São Paulo, sábado, 1 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brincando com fogo

PAUL SINGER

O plano de estabilização apresentado pelo ministro Fernando Henrique se compõe de duas partes distintas: o chamado ajuste fiscal e a reforma monetária. Como apenas o ajuste fiscal foi concretamente delineado, as discussões têm se centrado nele. E o governo insiste que o ajuste constitui a parte mais difícil e decisiva do plano.
É duvidoso que assim seja: para começar, porque não faz tanta diferença se o Orçamento é equilibrado a partir da lei aprovada pelo Legislativo ou por decisão do Executivo de não gastar além do que arrecada. Do ponto de vista da demanda global, que seria inflada pelo excesso de dispêndio governamental, é indiferente que este excesso seja eliminado antes ou durante a execução orçamentária. Resta a famosa questão das expectativas.
A mídia toda repete sem cessar que sem Orçamento equilibrado a inflação não cai e para tanto o projeto que o governo ainda vai enviar ao Congresso tem de ser aprovado. É possível que muitos venham a acreditar nisso. Mas a verdadeira discussão deveria ser outra, pois não há ninguém no cenário político que defenda o déficit. Os congressistas deveriam discutir a natureza dos cortes propostos, para que prevaleça o atendimento às necessidades mais urgentes da maioria da população. Pois isso o governo não ensejou. Aparentemente, a equipe tentou um corte linear (por igual) das despesas do projeto em tramitação no Parlamento e não contou com reações incontornáveis dentro do próprio governo, sem falar da Procuradoria Geral. Enquanto o governo não abrir seu jogo a respeito do que propõe cortar, a principal discussão do ajuste fiscal não poderá começar.
Do ponto de vista da questão maior, ou seja, do que fazer com uma inflação que está subindo além dos 36% mensais e não mostra tendência de se estabilizar, o que importa não é a forma do déficit ser evitado, mas a perspectiva aberta pela promessa de um novo indexador, a URV, que em pouco tempo se tornará moeda de conta para finalmente ser transformado em meio de circulação, substituindo o cruzeiro real.
No papel, o processo parece simples e elegante: primeiro se unifica a medida da inflação (há poucos anos dispúnhamos da ORTN, depois OTN, depois BTN; é uma volta para trás, mas benvinda, pois a destruição de indexadores promovida pelo Plano Collor 2 de modo algum destruiu a inflação); depois o indexador vira moeda de conta, permitindo-se usá-lo em contratos (assim a inflação vai sendo expulsa das relações contratadas em URV, à medida que os valores na nova moeda de conta serão fixos); finalmente, a desnecessidade da inflação, que continua na moeda velha, se torna evidente, pois as relações econômicas já estão estabilizadas, bastando apenas abandonar o cruzeiro e em seu lugar usar a nova moeda para pagar as contas.
A beleza deste processo é que ele se dá inteiramente sem coerção. Ninguém será obrigado a aderir à URV, mas todos o farão por auto-interesse, pois as incertezas sobre o valor real de recebimento e pagamentos futuros serão muito menores em URV; e todos acabarão descobrindo que podem prescindir da inflação, que acabará sumindo pelo ralo...
Lastimavelmente, a realidade poderá ser muito diferente. Nossa inflação não é mecânica, todos os preços sendo aumentados por igual nos mesmos momentos; ela é conflituosa, desencadeando-se por ondas. Isso significa que os preços convertidos em URV também vão oscilar, embora sua média permaneça constante por construção. É claro que a subida de valores em URV será muito menor do que em cruzeiros, mas os ganhos e as perdas serão mais visíveis. Se alguém receber valores em URV cadentes (que corresponderão a preços em cruzeiros menos que a média) e tiver que pagar valores em URV em elevação (preços em cruzeiros subindo mais que a média) terá, da perda que estiver sofrendo, uma noção muito mais clara do que se estivesse operando com cruzeiros. E esse alguém vai certamente reclamar um aumento de sua receita e se pertencer a algum setor organizado da economia é altamente provável que acabará sendo atendido.
Isto significa que poderá haver inflação em URV. Uma inflação bem menor do que a que a da moeda velha, mas cuja dinâmica a rigor é imprevisível. E não adianta a autoridade econômica alegar que sem expansão fiscal não haverá demanda que sustente aumentos de valores em URV. Isso, que parece uma promessa, na verdade é uma ameaça, pois a nossa experiência indica que mesmo recessões severas não foram obstáculos à reaceleração inflacionária.
Basta recordar o ocorrido em março de 1990, quando o Plano Collor 1 acarretou a paralisação quase total da atividade econômica: ainda no primeiro semestre, o IPCA subia de 7,3% em maio a 11,7% em junho e a 12,9% em julho. Ao mesmo tempo a "Conjuntura Econômica", de setembro de 1990, comentava que "o PIB do segundo trimestre de 1990 ficou em 6,04% negativos, o que se compara com os também negativos 3,84% do primeiro. (...) o PIB acumulou taxa negativa de 3,3%, o que representa o pior desempenho do Produto Interno Bruto brasileiro na década." Foi uma recessão para ninguém botar defeito, o que não impediu (apesar das esperanças da equipe econômica de então) que a inflação retornasse com ímpeto.
Se a estratégia é estabilizar a economia não pela troca da moeda, mas pelo corte da demanda, então conviria avisar disso o país. Mas o plano anunciado pelo ministro Fernando Henrique Cardoso foi outro, sinalizando para uma passagem "negociada" a um novo regime monetário, com pouca ou nenhuma inflação. Se as palavras são para valer, é preciso que o governo abra negociações e não apenas sobre o ajuste fiscal.
O segredo da estabilização não é (se der certo) a troca de moeda, mas a mudança de comportamento das classes e frações de classe aceitando a renda real que a conversão dos valores em URV proporcionar a cada uma. José Serra, em sua coluna na Folha (em 21 de dezembro de 93), pôs o dedo na ferida: "... a Unidade Real de Valor não se generalizará se a nova forma de indexação pela inflação corrente não for aceita por empresários e trabalhadores. Nem será estabilizadora se todos os agentes econômicos quiserem ingressar no novo regime econômico com seus rendimentos nominais no 'pico' dos valores."
Só há um jeito de fazer os agentes econômicos renunciarem à conversão de suas rendas pelo "pico" –valor máximo que elas atengem no momento em que são reajustadas em função da inflação passada– para logo a seguir começarem a ser desgastadas pela inflação, que nunca pára: é negociar alguma forma de conversão de preços (que embutem os lucros) e salários que as duas classes considerem equânime, contratando-se futuras reposições de perdas de forma compatível com a estabilidade dos preços. Ou o governo convoca os representantes das classes e frações de classe a sentarem à mesa para negociar a estabilização ou está brincando com fogo. Quando a URV for introduzida criar-se-á imensa expectativa de que se faça o milagre e se não houver negociação e contratação de regras de conversão esta expectativa estará fadada à nova frustração. É possível que durante um curto período a inflação fique menor, mas sua tendência ascendente matará depressa as ilusões.
O ministro Fernando Henrique Cardoso vem acusando o PT de não querer negociar mas agora a bola está com ele. Negociar a estabilização vai exigir tempo e fôlego. Portanto, seria bom começar logo ou a URV não poderá ser efetivada no início deste ano. E fazê-lo sem um acordo sobre as regras de conversão entre as classes e as forças políticas que as representam seria o cúmulo da irresponsabilidade.

Texto Anterior: Privatização da Telesp; Há descontentamento; Decisão iminente; Sem casa, com telefone; Despesa genérica; Fim específico; De grão em grão; Conta precisa
Próximo Texto: Holding compra 54% das ações da Teba
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.