São Paulo, sábado, 1 de janeiro de 1994
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Livro retoma a conversa com Otto Lara

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Não é que eu tenha o hábito de, no fim do ano, limpar gavetas, jogar fora papéis, como se me preparasse para vida nova. Mas havia um tal acúmulo de jornais, revistas, recorrem à minha volta que resolvi tentar me livrar das sobras de 1993. Comprovei logo que eu não havia sequer me livrado do papelório de 1992, pois o primeiro jornal amarelecido que abri era um número de "Mais!" datado de 6 de setembro de 1992, dobrado na página três, que estampa, lado a lado, dois únicos artigos, um de Otto Lara Resende e outro de Anthony Burgess. Não me lembro porque guardei esse jornal, dobrado nessa página. Só sei que agora me comove ver os dois artigos juntos, já que morreram seus autores.
O artigo de Otto, à esquerda da página onde sempre saía, já dizia no título interrogativo o que buscava: "Qual é a fala padrão do brasileiro, agora?" Burgess, à direita, especulava, sombrio: "Os divórcios podem levar ao naufrágio a Coroa britânica". Otto reclamava: "Não temos até hoje um atlas linguístico do Brasil, mas é certo que temos numerosos falares, ou sotaques, se quiserem, dentro da mesma língua nacional. Mário de Andrade, que tocou em tudo, já em 1936 reunia em São Paulo um Congresso Nacional de Língua Cantada. Em 1956 realizou-se na Bahia um encontro para estudar a língua falada no teatro. (...) Até onde é possível representar Shakespeare de modo que não se veja por trás de um Otelo um cearense, de uma Desdêmona uma gaúcha, de uma Julieta uma paulista". Apaixonado e doidivanas, Burgess, ao lado, prega a sedição, diante da falta de compostura sexual da atual casa reinante inglesa, que se intitula Windsor mas é, na origem, alemã, Hanover: "Um certo número de católicos ingleses, como nós, continua a jurar fidelidade à casa de Stuart. (...) As últimas palavras de meu pai em seu leito de morte, foram: 'Meu filho, nunca confie nesses arrivistas de Hanover' ".
Pensando bem, acho que guardei a página inteira como lembrete: eu sem dúvida queria voltar, conversando com Otto, a um assunto que mais de uma vez havíamos abordado, de que os escritores ingleses não parecem ter religião nenhuma, exceto os católicos. Minoritários no país protestante, vivem ostentando sua fideliade a Roma. Todo o mundo sabe que Evelyn Waugh e Graham Greene eram católicos. Eu talvez matasse, durante uma conversa desse tipo com Otto, minha curiosidade de saber se ele ainda era deveras católico, como quando o conheci aí no fim dos anos 40. Religioso sei que ainda era. No seu livro póstumo "Bom Dia para Nascer" –crônicas que Matinas Suzuki Jr. selecionou entre as que Otto escreveu para a Folha – a crônica "Bem-vindo ao nosso calor" começa assim: "Na minha ração diária da Bíblia, vou ao Antigo e ao Novo Testamento. Uma beleza e uma fonte inesgotável de sabedoria. Estou agora em Jeremias".
Se além da ração diária de Bíblia ainda tinha confiança nos mistérios, onde estará, agora?
A principal virtude de um livro como "Bom Dia para Nascer" é que ao abri-lo, em qualquer página, temos a impressão de reatar uma conversa com o autor. Todos aqueles que conheceram Otto Lara Resende, têm a sensação de que um papo, um diálogo, ficou no meio devido à morte dele dia 28 de dezembro de 1992. Era sempre o Otto quem se despedia, que ia embora, e nós, os outros, que ficávamos, frustrados. Não é menos verdade que, algumas horas depois, o Otto podia estar nos chamando ao telefone. Ou, se ele tivesse viajado, ou nós, podíamos receber uma carta dele, para encerrar a conversa anterior, ou encetar uma outra.
Num país como o Brasil, onde tão poucos jamais escreveram cartas, mesmo antes de inventado o telefone, Otto, na era do telefone, do gravador, do vídeo, do fax, escrevia mais cartas do que Mme. de Sevigné, ou o já referido Mário de Andrade. Aliás, na crônica "Cartinha de amor brasílico", Otto fala com ternura nas cartas e conta que, na Terra do Tombo, até acariciou nossa carta inaugural, a de Pero Vaz de Caminha: "Não quero contar vantagem, mas até já peguei nela".
Em que é que Otto não fala, ou não escreve nesse livro póstumo? Escreve, por exemplo, sobre a limpeza de gavetas no fim do ano. "Mais uma vez me encontrava num momento de transição. O fim do ano traz, inconsciente, esse desejo de mudar. Só me dei conta disto há pouco tempo, vendo a minha carteira profissional. Várias demissões no mês de dezembro". Foi demitido da própria vida em dezembro, é o que me digo com exasperação. Mãe e pai longevos. Aquela vitalidade exuberante, física, intelectual. De repente a morte não anunciada, brusca. Demitido da vida pelos médicos e pelos hospitais, como bradou Fernando Pedreira. Otto foi embora de repente, como sempre, mas pela primeira vez porque lhe fecharam a porta.
Com seu infinito tato, e sua conversa para todas as horas, Otto encontrou sempre tempo para os amigos enfermos. E se despedia docemente deles, como se despediu de Rubem Braga na crônica "Um ano de ausência", de dezembro de 1991. O Braga sabia que tinha os dias contados e encarava a morte com um destemor e objetividade, cuidando em São Paulo da própria cremação; "o corpo sou eu", disse ao funcionário do crematório que queria o nome do defunto. Acontece, porém, que, como preferia morar só, o Braga viveu, no fim, horas de espera cansativas, muito diferentes daquelas, que tantas vezes celebrara em crônicas, em que esperava alguma mulher que tinha prometido vir, sem falta. Mas Otto foi presença constante no apartamento do amigo. O Braga passou a vida dizendo que o Otto, a companhia que todos disputavam, era feito passarinho, de quem o pegasse primeiro. E, quando dizia isto, Rubem Braga não estava elaborando imagens artificiais: pensava em passarinho cantor e preso na gaiola, como ele gostava. Pois o Otto ia cantar todos os dias na cobertura do Braga, espontâneo, de graça.
Na crônica "Um ano de ausência", Otto firmou o perfil do amigo: "Era um ser livre e lírico. Seu claro olhar de sabedoria espiava o Brasil com algum tédio. Paisão sem jeito, que trata mal as crianças e os pobres. (...) Tinha uma disponibilidade fundamental para ver e escrever. Um senhor poeta, o cronista Rubem Braga". Me lembrei do Braga, em 1980, se despedindo por sua vez de Vinicius: "Seu nome virou placa de rua, e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi outro dia três garotas de Ipanema. (...) Eu ainda vou ficando um pouco por aqui, a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor".
Estou custando a fechar "Bom Dia para Nascer". Vale relembrar Otto se despedindo de Severo Gomes e forjando uma frase de alta nostalgia: "Dali saímos para a noite boêmia. Era o tempo do bar do Jaraguá. Mais que jovens, todos os amigos estavam vivos".
Otto escrevia isto, desejando que os amigos continuassem sempre moços e, acima de tudo, vivos, quando Severo Gomes e Maria Henriqueta acabavam de morrer, ao lado de Ulysses Guimarães e sua mulher Mora, a bordo de um helicóptero. Evocando Ulysses Guimarães, Otto fez questão de acentuar a juventude do líder idoso. E ensinou o segredo dela: "O tédio jamais o anestesiou. Morreu jovem, jovem e velho. Velho e jovem. Sua ausência amplia o deserto, que é preciso deter. E reanimar". Otto escreveu esta crônica, "Uma época, um herói", em outubro de 1992. Quase um epitáfio.
Não me desfiz da página amarelecida de "Mais!" Vou guardá-la, como guardei até agora. O Anthony Burgess continua lá, mas meio sem juventude, sem vida. Foi grande escritor e me dizem que grande boêmio mas nunca foi visitar o Caminha na Torre do Tombo, Rubem Braga em sua cobertura e jamais esteve, com Severo, no bar do Jaraguá.

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