São Paulo, sábado, 1 de janeiro de 1994
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Fragilidade política

BOLÍVAR LAMOUNIER

Num país que se arrasta em dificuldades desde a década passada, não é extraordinário que se contabilize como "aproveitado" o ano em que algumas coisas boas puderem ser lembradas. Por este critério, 1993 talvez tenha sido razoável.
Na economia, continuamos com o nosso velho apartheid monetário –os ricos têm sua moeda, os pobres que se virem–, mas temos agora uma chance razoável com o plano do ministro Fernando Henrique Cardoso. Sabemos que, sem estabilidade monetária, poderemos ter espasmos de crescimento, mas não teremos recuperação efetiva, nem política social digna do nome.
Temos em marcha a excelente campanha do Betinho, que não resolve o problema da fome (ele sempre foi o primeiro a frisar isso), mas atende ao requisito prévio de lembrar-nos que somos todos cidadãos de um mesmo país. Registre-se, ainda no lado positivo, que avançamos no combate à corrupção.
Mas a questão de fundo é política, no sentido abrangente do termo, e aqui não há dúvida de que 1993 foi um ano perdido. Um aspecto importante da crise brasileira é que não conseguimos fixar uma identidade institucional adequada no momento da transição do regime militar ao civil.
A primeira grande chance foi desperdiçada pela Constituinte de 1987-88. Em sua fúria regulamentadora, os constituintes pretenderam afogar o fluxo criativo do debate democrático num oceano de prolixidades, e aí complicaram ainda mais o problema.
A outra grande chance teria sido o plebiscito sobre sistema de governo, realizado em abril de 1993, mas dessa vez o esperado debate institucional foi substituído pelos disparates do marketing televisivo.
Parte desse indispensável reexame talvez possa ser feita agora na revisão constitucional, mas já estamos no prejuízo, visto que a fase preparatória desta foi atropelada pelas revelações de corrupção na Comissão de Orçamento.
Uma identidade institucional segura é em parte função do ordenamento constitucional e em parte de entendimentos informais que vão evoluindo através do debate público. A redefinição de padrões éticos, embora urgente e fundamental, é apenas um aspecto deste grande problema.
Precisamos também perguntar se nossa estrutura político-institucional (sistemas eleitoral e partidário, modelo de representação dos Estados na Câmara, federalismo fiscal) é adequada aos desafios desta época. Em relação à Presidência da República, precisamos saber se há algum remédio preventivo, ou se devemos tomar como inevitáveis as crises que de tempos em tempos são provocadas pelos titulares do cargo –uns por serem "inapetentes", outros por demonstrarem apetite excessivo.
É claro, que alguns destes problemas comportam soluções jurídico-institucionais, outros não. Mas o debate é essencial em ambos os casos. Muita coisa precisará ser repensada, mais cedo ou mais tarde. Sob este aspecto, não há dúvida de que o país perdeu muito tempo em 1993.

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